Arte e Autenticidade: Deserto em Alto-Mar

Adoraria chamar este texto de ensaio, quiçá posso chamá-lo de esboço. Trata-se apenas do simulacro de caráter muito introdutório, materializado em palavras que fazem mais ou menos algum sentido. A ideia para escrevê-lo veio a partir da conjugação dos textos que recentemente li(1) com as discussões que tive com meu amigo, Pedro Vinicius, a quem considero um co-autor quase que acidental deste texto.

Como afirmo, a partir de Walter Benjamin, a arte em seu sentido clássico sofreu, nas primeiras décadas do século passado, de uma imensa crise com o advento das tecnologias que permitiram sua reprodutibilidade técnica. Uma nova crise, vivida em menor intensidade, ocorreu a partir do advento das tecnologias digitais: o computador, a internet, o celular… a metamídia tomou conta da arte de tal maneira que hoje fala-se de um arte digital, e aponta-se para uma quase indissociabilidade entre essas duas forças. Alguns autores, como afirma Santaella, apontam para esse xeque da tecnologia sobre a arte como o fim da arte e de sua história, de tal forma em que se fala de uma era pós-artística, ou pós-aurática.

A realidade é que hoje vivemos uma hiperinflação da arte, ela está tão violentamente presente no nosso cotidiano que perdeu a capacidade de nos encantar, desprendeu-se completamente da sua raíz mágica e teológica, da sua possibilidade de sublimar a percepção, de nos fazer vivenciar seu aqui e agora a partir do nosso próprio. A reprodutibilidade técnica (e digital) permitiu que todos fossemos autores e artistas, de tal modo que estamos a todo momento utilizando na mídia a fotografia e o design aliadas a noções de composição e harmonia que nem sabemos que temos. A arte se tornou banal, comum, deixou de ser arte. Ao menos isso é o que parece.

Eu diria, olhando por um outro lado, que essa nova ecologia da arte, que agora existe através do digital, permitiu não somente sua hiperinflação, mas também uma abertura radical para novas formas não só de se fazer a arte como de vivenciá-la no cotidiano. As mídias digitais permitiram formas avassaladoras de decalcomania, de repetição, de logaritmização do fazer artístico clássico, ao passo em que a neblina de sua condição permite a nova procriação de todo uma nova espécie de arte.

E entre essas espécies de arte que nascem da subjetividade pós-moderna urge o surgimento de uma arte de si, de uma criação de si-mesmo enquanto movimento do fazer estético, apontado por Santaella a partir das reflexões de Agamben.

Como apontado em meu texto “Produção de Produção de Produção de Produção…”: hoje faz-se subjetividade como faz-se a arte: através de uma produção serial. A reprodutibilidade técnica enquanto forma de produção atinge o campo do Eu, a indústria cultural, mecena de toda forma do fazer artístico na metamídia, inunda como água o pensamento, o comportamento, a sensação, e assim, a nossa relação com a arte, e a relação da arte conosco (vetores diferentes). Como produzir, em meio a hiperprodução da arte e do eu, uma linha de fuga? É preciso estar à margem, transitando entre os dois mundos.

Diante disso, a concepção de Peirce sobre ética e estética pode nos dar as coordenadas para navegar nas águas turbulentas da indústria digital pós-moderna. Peirce propõe uma estética fundamentada não no belo, mas sim no admirável, uma estética que encontra potência ao se preocupar com aquilo que toca o coração humano, que causa admiração, independentemente de sua beleza ou não-beleza; quanto a ética, Peirce fala da direção e afirmação do fazer, que pensa o certo e o errado de longe, metaéticamente, uma ética que pensa para onde a força da vontade se dirige. Esses conceitos põem em viravolta os conceitos clássicos de ética e estética, levando-os a um ponto de inflexão, onde são, ao mesmo tempo, o mesmo e algo novo, criando uma concepção arenosa deste termos, uma neblina que mancha com certa negritude o bem e o mal, o feio e o belo. No entanto, não é justamente isso o que queremos? Percorrer terrenos arenosos e maleáveis, construir um deserto do singular no alto-mar da homogeneidade?

O cuidado de si enquanto criação de uma subjetividade que se singulariza, cria por consequência inevitável uma forma de resistência. Por falar em formas, trata-se de uma viravolta ética, pensar a prática de si, não como uma disciplinarização da vida, mas como forma vitae: vida como forma de vida. Um tal pensamento, uma tal ética permite uma certa marginalização da existência, permite um certo devir-menor, que se dirige para dentro. Estar dentro quando a indústria e as formas da biopolítica gritam que você precisa estar para fora (sendo “você mesmo” todo o tempo o tempo todo, expondo sua faceta através do hedonismo das mídias sociais) é produzir uma certa autenticidade, é enxergar a própria face sem filtros (sem “rosto”, em termos deleuze-guattarianos).

A produção autêntica do eu enquanto uma ética-estética não produz, por consequência inevitável ou redução ao absurdo, uma autenticidade em si mesma da produção? Não é o produto da arte da autenticidade uma autenticidade da arte? Não é isto criar um deserto em alto-mar?

Precisamos ser realistas e desejar o impossível, resistir molecularmente, num movimento que vai sempre para dentro, para dentro, para dentro, cada vez menor, que cada vez mais afirma um Eu que se perdeu no consumo, no exagero, no narcisismo de um “Eu” que é na verdade um perfil rostificante.

É possível, como os fantasmas que os cabalistas contactavam por necromancia, viver como um cadáver sideral: entre os dois mundos. A ilha deserta ainda é banhada pelo alto-mar, por todos os lados, mas permite uma nova vista, um novo horizonte, permite, na adubagem de seu solo arenoso, a existência de nutrientes que levam a formas rizomáticas de ser, fazer e resistir. Ousar ser a si mesmo, quando a indústria insiste que o nosso perfil seja um perfil de consumo, ousar criar arte a partir de si mesmo, quando a indústria baliza as formas de arte a uma direção ensurdecedoramente unívoca: eis a nossa aura, eis o nosso sublime!

(1) Os capítulos 10 e 14 do livro “Temas e dilemas do pós-digital. A voz política” de Lucia Santaella; O livro “A arte na era de sua reprodutibilidade técnica” de Walter Benjamin; artigos sobre o “Manifesto Ciborgue” de Donna Haraway bem como meu próprio pensamento estético contido sobretudo no meu ensaio “Novas Considerações Sobre a Arte”.