Carta para Elis Regina (publicado originalmente em 31/8/2005)

Ah, Elis Regina... Como a senhora faz falta aqui. Com suas opiniões precisas, seu sorriso mais que escancarado, sua voz estupenda, seus olhos pingos-de-chuva. Se a “senhora” – e a chamo assim por simples respeito, merecimento – estivesse entre nós, não a veríamos nos programas de televisão estúpidos que existem atualmente por aí, porque, no linguajar da tua terra, “tu não cairias” nessas armadilhas da mídia. Puxa, Elis. Não poderia ter ido embora sem ver este país, que hoje está de novo rodeado por paspalhões do poder, de volta à democracia, que a senhora tanto lutou para resgatar, com as frases que imprecavam justiça e igualdade política.

E, ainda por cima, Elis, nos deixou tão jovem... Ninguém deve morrer aos 36 anos. Mas você (permita-se chamá-la assim agora) teve culpa. Porquê teve de se entregar totalmente à droga? Porquê não resistiu? Agora, não há pessoas suficientes para dar as respostas para estas perguntas. Só você poderia... Não te vi no melhor momento. Nem tinha nascido. Se você não tivesse desaparecido tão precocemente, hoje, quem sabe, poderia ver alguma opinião sua sobre tantos assuntos... Suas lágrimas, sua emoção quando fazia o que melhor sabia, que era cantar... Ah, não me conformo com sua morte. E, pior que isso, é saber que você não volta mais.

Às vezes, ouço suas músicas, vejo seus vídeos, me empolgo com suas risadas. Seu amor pelas pessoas era inacreditável! E como gostavam de você... Nossa! É só escutar de novo a interpretação de “Como Nossos Pais” que fico arrepiado. Além desta canção, há outras também... “Maria, Maria” é uma delas. Existe uma lista na verdade. Sabe, Elis, queria saber o motivo de você, poucos dias antes de morrer, dizer numa entrevista que não podia deixar seus filhos sozinhos. Então por tomou aquela overdose? Nem sei se tem idéia de quantos fãs você deixou órfãos, quantos admiradores você largou sem avisar. Tudo bem, não deveria se importar com eles, só com você. E com seus filhos. Isso não é nada doce, eu sei.

Tá bom. Talvez Elis Regina cidadã não suportasse viver em torno de mentiras ou preconceitos que estavam (ainda estão) instalados neste Brasil gigante, com, no seu tempo, militares pícaros. Tenho dúvidas sobre sua felicidade hoje em dia. Nos anos 1960 e 1970, quando você reinava absoluta, ídolos de barros no meio artístico eram tão poucos, até porque aqueles com menos talento eram logo eliminados do palco. E você, com Chico Buarque, João Gilberto, Nara Leão (dela também tenho tanta saudade...), tantos outros, encantavam os brasileiros. Agora, nos sobram poucas opções.

Mas, graças aos deuses da música, você nos deixou uma herdeira. Que talento tem sua filha Maria Rita. Se aí do outro lado repousa eternamente e tem algum contato com nosso mundo do lado de cá, deve sentir um baita orgulho dela. Como ela canta! E como se parece com você! Será que este DNA se esgotou com Maria Rita? Que privilégio tem essa moça. Possui os movimentos, rosto, olhar pingo-de-chuva. Maria Rita, “menina da lua”, me agrada assim como, penso eu, você, Elis, agradava meus pais, tios. Para Maria Rita, só falta girar os braços para trás como você fazia quando cantava “Arrastão”. E não se preocupe com ela quando afirma não querer interpretar músicas suas. Ela tem razão. A comparação seria inevitável. Quando você se foi, Elis Regina Carvalho Costa, Maria Rita tinha só quatro anos. Quase não se lembra da mãe famosa. Evidente que dizer quem é a melhor entre vocês duas seria ruim, já que você é insuperável. Além disso, você teve toda uma geração que esteve junta durante vários anos. Maria Rita não. Como hoje são tantos os trambiques musicais no Brasil, ela não teve dificuldade em ficar acima deles. Você influenciou. Já pensou que dupla formariam se você estivesse viva? Imaginar isso seria até pecado. Pecado desses deuses da música. Que sensação!

Mas não me contento só com Maria Rita. Você teria de estar aqui. Mesmo que fizesse sombra para a carreira de sua filha, mas teria de estar aqui. Elis, nos abandonou realmente... Eu, que só te vi através de meios eletrônicos, assim como tantos outros milhares, sou seu fã incondicional. Assim como existem fãs de Elvis Presley e John Lennon de 20 e poucos anos. Ou de Renato Russo. Não importa. Você é um mito. Atingiu essa categoria. Seus discos, seus shows, suas apresentações com Jair Rodrigues, o “Cachorrão”, no programa “O Fino da Bossa”, suas coreografias com Luís Carlos Miele... Como você se divertiu nesses 17 anos de carreira! Quando canta – como dizem os argentinos com Carlos Gardel, que canta cada dia melhor, mesmo depois de 70 anos da morte dele – você está plena, absoluta, endeusada com motivos de sobra, “a cada dia melhor”. Tentam te substituir, colocar pessoas no seu lugar, mas não conseguem. “A nova Elis Regina”: essa manchete nunca existirá, pode estar certa disso.

Para encerrar esta epístola, eu sei muito bem que você jamais lerá esta carta. Entretanto, tinha que escrevê-la de qualquer maneira. É o mínimo que posso fazer para te prestar esta homenagem, tão merecida, tão atrasada, tão singela. Pimentinha, minha “Fascinação”, fica aí com suas estrelas. Vou embarcar no meu trem azul. Até mais.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 09/07/2009
Código do texto: T1689781
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