“Lembranças de um Verão” (publicado originalmente em 14/7/2004)

Na avalanche de filmes cujos estouros de bilheteria causaram frisson nos principais estúdios no ano passado e em 2002, uma fita passou despercebida. Eu não a havia assistido certamente por causa dessa propaganda em torno dos estelares roteiros premiados. “Lembranças de um Verão” (2001), ao que se sabe, foi condecorado com prêmio algum, permaneceu rápidos dias em cartaz nos cinemas do mundo todo e colou repercussões frugais ao seu redor. Com Anthony Hopkins no papel principal, a película tem belezas ímpares, pois não se vê mais tanta dedicação nos sets de filmagem como havia antigamente. Dirigido por Scott Hicks, a história parece arroz-com-feijão, mas por detrás dela está o talento da dupla mirim Anton Yelchin e Mika Boorem. Ambos dominam cenas com graça, esbanjam qualidade. Na entrevista de Hicks com Hopkins –vem casada no DVD– o ator diz ter ficado surpreso e espantado com tamanha dedicação dos adolescentes e prevê belo e colorido futuro promissor a eles.

Anthony está correto. O protagonista de “Silêncio dos Inocentes” (1991) e “Hannibal” (2001), onde interpretou o serial killer Hannibal Lecter (ganhou o Oscar pelo trabalho de 91), veste a roupa de Brautigan, ou apenas Ted, como o próprio se define no longa. Ted é culto. Leu vários livros e se muda para uma cidadezinha. Lá encontra Robert Garfield, ou somente Bobby-O, garoto de 11 anos que se diverte com seus dois amigos (entre eles Carol Gerber). A fita se passa em 1960 e Bobby, vagarosamente, dá devida atenção ao amigo mais velho, que agora veio se radicar na parte superior da casa dele. Sob responsabilidade da mãe egocêntrica, vaidosa e perdida (Hope Davis, a mesma de “As Confissões de Schmidt”, de 2001), a senhora Elizabeth Garfield, o menino se encanta com os ensinamentos de Brautigan. Este cita frases de autores literários consagrados e quer transmiti-los ao jovem interessado. Bobby, por fim, quer comprar uma bicicleta e não tem dinheiro para tal consumo.

“Lembranças de um Verão” se retém em três frentes: para-normalidade de Ted e Robert, lições de vida de Ted para Robert e paixão ingênua, infantil e tímida de Robert com Carol. A primeira está reservada a partir da metade da fita, quando Bobby-O descobre quem verdadeiramente é o bondoso senhor Brautigan. A segunda é emocionante, sincera e cheia de esmeros do diretor Scott. A mãe do menino que aspira a bicicleta é irresponsável e egoísta. Não sabe enxergar o valioso amor e amizade existente entre o trio Ted - Bobby - Carol. A terceira frente é os instantes mais apaixonantes do filme. Quem nunca se derreteu por alguém quando variou dos sete aos 13 anos? Render-se sem perguntar à pessoa amada e roubar dela um beijo do tipo selinho e se envergonhar por isso. A ternura específica se concentra na atriz alourada Mika Boorem, na época das filmagens com 14 anos. Também penetra no ator russo Anton Yelchin (12 quando filmava), mas com menor intensidade. Garantia de nuvens.

O enredo é baseado em livro de Stephen King, escritor renomado cujos motes centrais são os acontecimentos de suspense, como, por exemplo, “O Iluminado”, adaptado às telas dos cinemas em 1981, e “Louca Obsessão”, de 1990. A película inicia-se no ano de 2001, quando Robert, fotógrafo de 52 anos, recebe a notícia da morte do parceiro inseparável no fim da década de 1950 e começo da seguinte. Vai ao enterro e lá se frustra ao saber do destino idêntico que teve seu amor pré-adolescente Gerber: estava morta fazia tempo também. Essas duas tragédias sem anestesia para o atual Bobby-O, o leva a recordar tudo de novo. Ted o ensinou a viver qualquer segundo como se fosse último e não perder sua mocidade. Para poder pagar a bicicleta tão desejada (nos anos 1960) o idoso lhe propôs acordo e pagou ao menino um dólar por dia se ele lesse o jornal em voz alta para o senhor Brautigan saber das principais notícias do dia. Enquanto isso, a vã Elizabeth quer subir de posto no emprego.

Lances de astúcia, como na cena no parque de diversões onde Robert adivinha o lugar da carta certa e irrita o animador da brincadeira, são corriqueiros. A importância de um filme como esse, com final incerto e não-comum dentre as outras fitas, repetindo os gestos de boa índole de “A Corrente do Bem” (2000), é puramente transformar em contingência intimista as fraternas amizades existentes no ser humano. “Lembranças de um Verão” se passa num tempo que não vivemos e jamais poderemos viver. Brincar no rio, banhar-se no lago, lembrar o paladar doce do sumbaré na roda-gigante que não pára de rodopiar. A comparação aqui parecerá maldosa, mas existe um conto de Orígenes Lessa, “A Aranha”, no qual este sentimento cor-de-rosa se sobrepõe a tudo. Trata-se de um jovem tocador de viola que tem como admiradora modelo uma aranha, que o ouve balançar os dedos no instrumento e é espectadora-símbolo da passionalidade ferrenha. Prestação de atenção mútua e respeito deferente.

O desespero de Bobby-O ao saber do falecimento da eterna musa é daqueles de dar dó. Com o favônio de Anthony Hopkins ocorre quase isso. Aliás, a carreira do ator tem se pautado por papéis moralmente duvidosos. Nascido no País de Gales, aos 66 anos ele já perambulou por “O Leão no Inverno” (1968), “Oito Badaladas para a Morte” (1971) e o fantástico “Nunca te vi, Sempre te Amei” (1987), película esta que o projetou mundialmente. No bate-papo inserido no DVD, conta sobre sua predestinação acerca dos livros de King. “Queria muito rodar um filme das histórias dele e nunca consegui. Quando pensei nisso, dois dias depois meu agente trouxe o roteiro de ‘Lembranças de um Verão’ e topei na hora, sem lê-lo antes. Sabia que seria sucesso”. A receita é simplória: agrupou-se pré-adolescentes com raro preparo e adrede a isso convocou o franco Hopkins e Scott, diretor de mão leniente que construiu esta peça bondosa para nossos dias vitorianos. Graciosamente original e santo.

Quando a fita termina, tautologia íngreme nos atormenta a cuca. Porque não fizemos tal coisa antes ou estamos desse jeito porquê? O mundo é assim e fim? Nada disso. As soluções, você pode imaginar, estarão no filme. Errado. E a película nos mostra isso com aparatos: estão em nós mesmos.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 25/05/2009
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