Ser ou não ser Pelé? Eis a questão (publicado originalmente em 30/6/2004)

“Muito prazer. Sou Jimmi Carter, presidente dos Estados Unidos da América. Você não precisa se apresentar”. Foi exatamente assim que o ex-homem mais poderoso do mundo cumprimentou um mineiro da cidade de Três Corações, na época beirando os 40 anos. A excelência com a qual Carter “depreciou” o próprio cargo para apertar a mão do melhor atleta de todos os tempos, Édson Arantes do Nascimento, não é novidade. Pelé estava acostumado com estas reverências, mas ficou surpreso ao ser recebido daquela forma pelo norte-americano. É mais ou menos dessa forma que está o filme-documentário “Pelé Eterno”, que estreou sexta passada no cinema: ajoelhado diante de tal adoração. Dirigido por Aníbal Massaini, filho do também cineasta Osvaldo Massaini, a película, cuja duração é de duas horas, resgata as várias facetas do autor de mais de 1.200 gols; sejam elas na música, ao lado de Elis Regina; nas parcerias tecelãs com Coutinho, Dorval e Pepe e até mesmo na carreira esportiva.

Para organizar e colher todo material necessário para a cirurgia dos cortes do cinema, gastaram-se 60 meses. Aníbal percorreu alguns países e conseguiu imagens raríssimas, como, por exemplo, Pelé usando camisas 13 e nove. Não deu para colocar todos os gols, mas aproximadamente 400 estão lá. Porém, “Pelé Eterno” não é só isso. Documenta para todo sempre os feitos de um ser humano que, devido ao esforço mourejante adicionado ao “dom divino”, como Édson costuma dizer, passou pela emoção, frases pernósticas e passagens de vida morais. Desde seu primeiro, em sete de setembro de 1956 contra o Corinthians de Santo André (estava na reserva, entrou na etapa final e marcou o sexto da vitória do Santos por sete a um) até a despedida oficial, em dois de outubro de 1977, no amistoso Santos 1 x 2 Cosmos (clube-empresa dos EUA que não existe mais), onde o “Rei” atuou 45 minutos em cada time, esteve sempre no centro das atenções. Nunca descansou seriamente. O assédio ficou.

Mas entender Pelé é sinceramente impossível. O pagador de impostos Édson do Nascimento o enxerga apenas no espelho e o trata como se fosse mero parente íntimo. Fala na terceira pessoa se é para conversar sobre o ganhador de três Copas do Mundo. Filho do casal pobre Celeste e João Ramos do Nascimento (este também jogador de futebol), Édson nasceu em Minas Gerais a 23 de outubro de 1940. Assinou seu primeiro contrato como profissional no Santos Futebol Clube em oito de junho de 1956. Três meses depois, fazia seu primeiro gol. Dez meses depois, era convocado pela seleção para enfrentar a Argentina em jogo amistoso. Estufou a rede na derrota brasileira por 2 a 1. Aos 29 anos, quando os centroavantes almejam chegar aos 100 ou 200 gols, o ex-camisa 10 santista se consagrava ao assinalar o milésimo tento, contra o Vasco da Gama, em cobrança de pênalti, no maior estádio do mundo, o Maracanã. Como traduzir e expressar isso num documentário? Aníbal nos deu a resposta.

Demonstrações de reconhecimento vem de todas as partes do mundo. Na Copa do México, em 1970, o comércio fechava cerca de uma hora antes dos jogos do Brasil. Nas portas, o cartaz: “Hoje não abriremos. Veremos Pelé jogar”. Outro caso de amor: um jornal dos EUA, durante o campeonato mundial número nove, definia o atleta do século. Estampou na capa: “Como se escreve Pelé com três letras? Resposta: God” (Deus). Dois dos mais lindos gols do “rei”, cujas imagens foram perdidas ou sequer existem, foram reconstituídos através do computador. Um aconteceu em 1959 contra o Juventus, na Rua Javari, no Campeonato Paulista. Édson deu sucessões de chapéus nos adversários, entre eles o goleiro. De cabeça, botou nos barbantes grenás. O outro ocorreu em 1961. O Fluminense foi a vítima. Pelé driblou vários jogadores também. Por este gol, recebeu placa do jornalista Joelmir Beting, presente no palco da mágica “pelenista”, de novo o “Maraca”. Homenagem a todas as provas.

Altares – Narrada pelo ator Fulvio Stefanini e com textos do magnânimo Armando Nogueira, no filme predomina singeleza. Os namoros da realeza vêm à tona. Ficou com a apresentadora infantil Xuxa Meneguel por 70 meses (de 1980, quando a loira tinha 17 anos, a 1986), teve um flerte com a ex-miss Brasil Deise Nunes de Souza ainda em 1986, e manteve tabelinha afinada com a atriz Magda Cotrofe. Casou-se com Rose Cholby em 1966 e teve filhos, entre eles Edinho, ex-arqueiro de Santos e Ponte Preta. Separou-se em 1978. Primaveras depois, trocou as alianças com Assíria Lemos Seixas, reverteu a vasectomia e o casal “deu a luz” a gêmeos. O homem que conseguiu interromper a guerra civil na Biafra, na África, em 1969; foi aplaudido por um árbitro durante uma partida e atuou com a camisa um três vezes quando guarda-metas eram expulsos ou saíam machucados e terminou invicto, foi considerado míope por João Saldanha, ex-técnico. Nada ficou comprovado, no entanto. Que sorte.

Cinco livros foram lançados sobre o Esportista do Século. Data de 1963 o primogênito deles, “Viagem em Torno de Pelé”, de Mário Filho. Na seqüência, “A Verdade Sobre Pelé”, de 1975, sobre sua ausência da Copa de 1974 em razão da ditadura militar brasileira, escrito por Adriano Neiva. O fotógrafo Domício Pinheiro lançou em 1984 “Era Pelé”, com participação do crítico teatral Décio de Almeida Prado. “Pelé, o Supercampeão”, cujo autor é o eclético Orlando Duarte, foi para as livrarias em 1993. Por fim, Luiz Carlos Cordeiro batizou de “De Édson a Pelé, a Infância do Rei em Bauru” a obra de 1998. Nestas páginas, é revelado que o menino Édson era corinthiano. E fanático.

Só o pó – As dúvidas sobre quem foi o melhor jogador de futebol agitaram-se tempos atrás. O site da Fifa fez somente a pergunta mais inquestionável do século 20. Os argentinos, até hoje não se sabe porque, invadiram a rede para votar e, evidentemente, deu Maradona na cabeça. Na festa onde a entrega dos prêmios sucedeu, a entidade máxima do futebol amenizou o resultado e declarou empate entre a dupla. O constrangimento atropelou a injustiça. No território argentino, pessoas não admitem discutir o assunto. Criaram a religião “maradoniana” e rezam pelo craque eterno da seleção branca e azul. Certamente comparações são irrisórias. O argentino marcou aproximadamente 350 vezes entre 1976 e 1997. O cidadão de Três Corações, nas proporcionais duas décadas, empurrou a bola para o fundo da rede quatro vezes mais. “Pelé Eterno”, disse o Rei, irá, antes de embarcar para a Europa e EUA, passar pela terra do tango para que Diego possa ter o imenso prazer de olhar a jóia alumbrada.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 24/05/2009
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