O “Mineirinho” de Mel Gibson (publicado originalmente em 3/4/2004)

Não vou perorar aqui e defender amargamente o nevrálgico “A Paixão de Cristo”. Assisti ao filme alguns dias atrás e temo perder tantas linhas com relatos sobre a obra não-holográfica de Mel Gibson. A história todos estão fartos de saber. O fim também. Porém, existe naqueles 127 minutos algo a mais sobre outros longas-metragens sobre a vida de Jesus Cristo: a conflagração escaramuçada. Isso mesmo. O diretor nova-iorquino conseguiu juntar numa mesma seqüência sangue e emoção contagiante, chicotadas e olhares piedosos sem forças para contra-atacar. Essa violenta agitação, revolução causadora de agitação, ensina-nos a pensar sobre o sofrimento vil. Querer derramar lágrimas e não poder. Querer ajudar e ser impedido com golpes dolorosos. A sabedoria misturada com arrogância pode refletir os ateus questionadores das palavras cristãs mágicas, não seria motivo para uma morte criminosa.

Os milagres postos a prova. Se não conseguir salvar um moribundo, terá uma crucificação requintada. James Caviezel, 33 anos (iniciais JC e idade que tinha Jesus quando subiu aos céus), ficou com vestes católicas. Olhos cor de mel claro, dificuldade com pronunciar as palavras, barbas e cabelos longos, frases consoladoras e inspiradoras são componentes para ser um verdadeiro salvador. O ator topou o desafio. Sofreu como um animal nos sets de filmagem. Foi até atingido por um raio. Carregou uma cruz pesadíssima, teve incômodos diversos com os espinhos da coroa, que o machucaram, e aprendeu na marra um outro idioma. A arena estava montada. As pancadas começam. Na cena das chicotadas, as marcas no corpo impressionam. O choque é inevitável. Espectadores mais sensíveis tapam os olhos nas poltronas do cinema. E a intenção era essa mesmo: dar um impacto bruto para mostrar tal sofrimento.

Dá dó ver Cristo ser tão atingido. Os soldados riem, cospem nele, a majestade repleta de bravatas. Quando o filho de Deus inicia a peregrinação rumo ao ressurgimento, cai várias vezes e levanta, corajoso. Pode ser comparado a Mel Gibson nos tempos de “Mad Max” (1979, 1981 e 1984) e “Máquina Mortífera” (1987, 1989 e 1992). Os tiros iam e nada o atingia. Nunca. Gibson, novo Cristo! Não, claro que não. Apesar de ganhar o Oscar de melhor filme e diretor por “Coração Valente”, em 1995, Mel é de se preocupar com os detalhes. É católico quase dominado pelo fanatismo e por isso se abateu ao surgirem dúvidas sobre possíveis sentimentos anti-semitas e preconceituosos da película. Os números recordes de “A Paixão de Cristo”, todavia, só aumentaram. E como subiram. Só no Brasil, onde estreou há 16 dias, já foi visto por mais de 2,5 milhões de pessoas. Ingressos vendidos como água potável.

As sensações de James são sentidas por nós. A cada batida de pau, somos nós que caímos no chão, mergulhados na areia suja. A cada sílaba dita por Jesus, somos nós que acreditamos e oramos para se ver completamente livre dos pecados. Isto não é um depoimento de um devoto fervoroso da religião, nem é este o caso. Mas o filme é de um enternecimento bravo acoplado a uma série de manchas de feridas pelo corpo. Recorro a escritora Clarice Lispector, tema desta coluna dias atrás, para fazer um paralelo entre o roteiro de “Paixão...” e o poema “Mineirinho”, da ucraniana. Explico o contexto do poema: existiu um bandido cujo apelido era “Mineirinho”, que foi assassinado pela polícia com 13 tiros. Clarice afirmava que bastava um só disparo, o resto era “vontade de matar, prepotência”. Assim, escreveu sobre o moço, devoto de São Jorge. O traço marcante deste poema é sinceridade entristecida com os acontecimentos.

“O primeiro tiro me espanta (...) / O décimo segundo me atinge / O décimo terceiro sou eu” são trechos deste poema que expressa toda a revolta de Lispector. Podemos então transportar todo esse conteúdo de “Mineirinho” para a saga alternativa de Cristo. A cada humilhação, nós nos comportamos de maneiras diferentes. No momento em que é crucificado, titilamos a dor ultrajante a cada martelada no prego nas mãos e nos pés de Jesus. Somos o bandido crente em um santo, baleado. Os pingos de sangue caem e ele não morre. Torcemos para o sofrimento acabar logo e ele ficar em paz, se é que do outro lado encontrará um conforto aconchegante. Ficamos do lado contrário de Judas de do Demônio tentador. Quase vamos com eles, mas não, preferimos sempre um passo bondoso. É hipocrisia levada a sério. Todos cometem pecados a qualquer instante. Ninguém está livre disso. Somos Faustos, de Goethe.

Vendemos a alma ao diabo se desejamos algo. “Vivemos em uma rasa a vã mediocridade, que é o que nós merecemos”. Tropeçamos no filme de Mel Gibson como poetas trovadores, bardos e exaltamos os grandes heróis sem conhecê-los. Nesses dias atuais, não temos mais o discernimento do que é certo ou errado. Deus existe? Não sei. Dostoievski dizia: “se Deus não existe, tudo é permitido”. E tudo é permitido? Com essa confusão, pode ser. Matar, roubar, estuprar... A cada segundo temos denúncias disso. São políticos tirando comida dos pobres, ladrões comuns que atiram simplesmente porque querem. E nada acontece com eles. A justiça deve estar cega realmente. Cristo também. O choro de Maria é intenso e cheia de soberba. Sabe que perderá seu único filho, mas tem consciência de que o terá rapidamente de volta.

Não vivemos na pureza. O mundo planejado pelo Senhor é de mentira. E eu, cheio de vontade, resisti à “A Paixão de Cristo”.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 11/05/2009
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