Um apólogo humilde (Continuação de "Um Apólogo", de Machado de Assis)

Vocês se lembram daquela história impossível sobre a agulha e a linha? Aquela em que as duas, até então cheias de orgulho, discutem para ver qual delas é a melhor? E que no final, a agulha teve que ouvir a bronca de um alfinete enquanto a linha levava vantagem? Gostariam de saber o que aconteceu com elas? Então, deixem eu contar para vocês um pequeno apólogo.

“Mas, afinal, o que é um apólogo?” Vocês talvez se perguntem. Bem, pessoal, um apólogo, é uma história curta que traz uma lição de moral no final. Só que, diferente das outras narrativas, um apólogo também pode ter como personagens objetos inanimados, sabiam disso? É como se fosse uma daquelas histórias do Bidu, onde ele conversa com a Dona Pedra. A única diferença é que não têm animais aqui neste conto. Quer dizer, até tem um animal sim, porém, ele não fala como Bidu . . . Acho que enrolei demais. Melhor eu contar a história de uma vez por todas.

Bom, enfim, depois que a agulha reconheceu que havia perdida pra linha, ela voltou para casa com a costureira. Mas, mesmo estando de volta a caixa de costura, a agulha não se sentia feliz.

Houve outras vezes em que a agulha trabalhou puxando linha – não a que ficou no vestido da baronesa – mas, quando ela estava sendo usada, ficava com um ar profissional e não falava nada, pra dizer a verdade, ela não falava nada em nenhum outro momento, nem que se fizessem cócegas nela, o que seria meio que impossível, já que ela era uma agulha.

Aquela figura pontiaguda viu várias outras agulhas, botões, alfinetes, linhas – algumas delas, bem amigáveis – e viu vários outros utensílios de costura enquanto trabalhava, mas era alheia a todos eles. Até que, num dia bem corrido, a velha costureira estava trabalhando em sua casa quando, sem querer, esbarrou na mesinha em que estava a agulha e outros materiais de costura.

A velha costureira não percebeu o sumiço da agulha, e voltou a trabalhar. E aquela figura pontiaguda ficou lá, sozinha entre um dos espaços das tábuas do chão, esperando que a mulher visse o que era quase imperceptível.

Pobre agulha. Porém, a linha também não estava em melhor situação. Quer dizer, ela tinha conseguido mostrar que era importante à ponto de ir ao baile no vestido da baronesa. Mas no baile, a linha sofreu da mesma forma com que havia feito a agulha sofrer. Os botões e as linhas que uniam as roupas de outras pessoas da alta classe não queriam falar com ela. Tinham um ar de importância maior do que a linha havia demonstrado antes. Eles diziam coisas, como:

- Olhem só a novata! Acha que é a tal só porque está no vestido da baronesa! Nós seguramos a roupa de reis, minha cara!

- Isso mesmo. Nós pertencemos a alta costura, querida. Quanto a você, não passa de uma linhazinha de quinta categoria costurada por camponesa!

- Já vi que deixam qualquer um entrar nesse baile!

Até mesmo no armário onde o vestido era guardado, a linha ouvia essa arrogância vinda de outras roupas, cujas linhas, botões e cadarços a faziam se sentir inferior por ser “a novata.”

“Ah, queria tanto estar na caixa de costura de novo!” – pensava a linha, que não estava feliz, embora a baronesa tenha usado aquele vestido mais três ou quatro vezes antes do incêndio.

Aquele incêndio foi terrível. Foi fogo para todo lado. Não se sabe de onde ele começou, mas ele queimou metade da casa da casa da baronesa, incluindo o armário onde a linha estava.

O barão, a baronesa e os seus empregados conseguiram se salvar, assim como as linhas, os cadarços e botões das roupas e sapatos, mas agora a situação tinha mudado. E a linha? Bom, aquela linha que antes havia se gabado de ser a maior, agora era apenas um fiapo chamuscado em meio aos escombros. E triste, e sem ter aonde ir, propôs-se a vagar sem rumo.

E a agulha? O que aconteceu com ela? Bom, a velha costureira um dia resolveu viajar para a cidade onde seus filhos moravam. Ela pegou tudo, até a caixa de costura – no qual, a agulha não estava – trancou a porta, foi embora, e ficou por lá, junto com os filhos. E a agulha ficou lá dentro da casa, sozinha.

Os tempos se passaram, e o mundo já não precisava mais daquela dupla, daquelas duas personagens esquecidas pelo tempo. Mas, não é que de tanto vaguear, a linha foi parar bem na frente da casa onde a agulha estava?

Quem não gostou de saber disso foi a agulha. Reconhecendo a linha pela janela da casa, ela rompeu o silêncio e gritou:

- Olha, vejam só quem está aqui! O que traz o poderoso imperador à humilde casa do seu batedor? Porque será que ele veio até esse humilde bairro? Será que caiu do trono? – e a linha não disse nada. Sentia que merecia o ressentimento que a agulha tinha dela.

E assim, os dias se passaram. A agulha descontava a sua mágoa na linha, que por sua vez, ouvia tudo estando triste e calada. Até que um dia, ela falou:

- Perdão, agulha, perdão! Eu errei te tratando mal daquele jeito! Você tinha razão: nenhuma linha é nada sem você. Eu ter sido orgulhosa não me levou a nada, apenas a uma vida miserável. Me perdoa.

- Você não tem nada! – disse a agulha – E só agora você vem aqui na minha casa e me diz isso?

Porém, isso também não durou muito tempo. A casa da costureira havia sido vendida para uma construtora, que derrubaria essa e outras casas para construir um prédio.

As máquinas de demolição vieram na manhã seguinte, e começaram a derrubar tudo, sem a menor piedade. Foi tremor pra todo lado. E a agulha, nem percebeu o que a atingiu. O seu reino também havia caído, e quase ela foi junto. Mas, graças a linha, que tirou ela dos escombros, ela foi salva.

A agulha estava desmaiada e também não era por menos, visto que havia estado debaixo de tantos escombros. Apesar disso, a agulha não havia se machucado muito. Só tinha ficado um pouquinho torta.

- Agulha? – perguntou a linha – Você está bem?

- Hã? O quê? Por que fez isso? – perguntou a agulha.

- Eu não queria errar com você de novo.

- Sei . . . Bom, agora já vou.

- Espere, fique aqui!

- Pra quê? Do que isso adiantaria? Nós fomos esquecidos pelo tempo! Não há mais espaço neste mundo para nós, e tampouco há espaço nele para ficarmos perto um do outro! Um de nós dois tem que sair, e é isso o que vou fazer agora!

A agulha estava determinada a ficar o mais longe possível da linha. Não queria vê-la nunca mais, nem que fosse feita de ouro. As duas estavam seguindo rumos diferentes, cada vez mais distantes uma da outra, até que um acontecimento as fez ficarem perto de novo.

Um gato de rua saiu sabe-se lá de onde e surpreendeu a linha com o seu miado, e daí começou a brincar com a linha, batendo nela com as patas.

E a linha gritava para o felino parar, mas o gato, sendo apenas um bicho, não entendia nada, e continuou deixando a linha atordoada.

Daí, a agulha ouviu os gritos de socorro da linha, olhou para trás e correu para salvá-la. O gato deu uma patada na agulha, mas logo se arrependeu. Ele deu um miado agudo de dor quando espetou a pata na ponta da agulha, fez uma cara arisca para ela e foi embora.

O gato foi esperto ao fugir. Porque? Porque “gato escaldado tem medo de água fria.” Começou a desabar um pé d'água do céu. E foi água pra todo lado. A chuva era forte, mais tão forte, que quase levou a linha pra dentro do esgoto se ela não estivesse amarrada na agulha.

A agulha teve que se fincar nas paredes até a chuva passar. Mas, ela foi feita para furar tecidos, e não concreto, de forma que a enxurrada levou a linha e a agulha ladeira à baixo.

Elas foram levadas pela chuva até uma poça de água parada no meio da rua, mas a chuva não dava trégua. A agulha e a linha precisavam de um abrigo, mas onde? Até que, a agulha viu uma estátua meio difícil de distinguir devido a escuridão da noite.

A agulha escalou a estátua carregando a linha. Foi difícil fazer isso enquanto chovia, mas ela conseguiu achar um abrigo contra a chuva.

Na manhã seguinte, a linha acordou.

- Hã? Agulha? Você . . . me salvou. – disse a linha – Muito obrigado.

- Sou eu que devo te agradecer por você ter me salvado primeiro. – falou a agulha – E me perdoe por ter agido de modo tão orgulhoso.

- Tudo bem. Eu também peço perdão pelo modo tolo que tratei você. Me desculpe.

- Tudo bem. Isso pertence ao passado agora.

É, a agulha e a linha enfim tinham feito as pazes. E permaneceram morando dentro da manga da estátua até hoje, lá na Academia brasileira de Letras. Soube por meio de alguns botões que frequentam esse lugar que a estátua é do fundador dessa academia, um tal de Homem do Machado, ou algum outro nome assim.

Mas, como eu sei de tudo isso? Bom, porque eu sou aquele alfinete que deu bronca na agulha há muito tempo atrás. Provei tanto da realidade que cheguei a defender uma atitude tão orgulhosa como sendo certa. Agora, defendo que o certo não é ser orgulhoso, e sim, sermos humildes, humildes assim como a agulha e a linha foram, a ponto de se ajudarem e de perdoarem uma à outra.

Sabem, eu já fiquei em muitos lugares ao longo da minha jornada como alfinete, mas nunca havia ficado num lugar tão bom como a casa da agulha e da linha, na qual estou até hoje e onde elas me contaram essa história, história essa que, assim como os personagens deste conto, não passaram de pura invenção vinda da cabeça do Homem do Machado.

Além de tudo isso, acreditam que eu contei toda essa história para um professor que estava infeliz, melancólico? Pois é verdade. Sabem o que ele disse?

- Como eu adoro finais felizes!

Tiago Salpin
Enviado por Tiago Salpin em 27/08/2023
Reeditado em 19/09/2023
Código do texto: T7871726
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