CEBOLEIRO

Nasci na década de 50, sobre um depósito de lixo de uma pequena chácara. Ali se plantava o que se comia. Trocavam-se os excedentes entre vizinhos. Vi os cultivos de verão durante o tempo chuvoso e quente. E os de inverno, no clima frio e seco — quando ainda podíamos controlar o período de plantio pelas estações do ano.

Depois de pouco tempo, a chácara foi loteada. Cada membro da família ficou com uma parte do terreno. O centro da cidade ia ficando cada vez mais próximo dali. Os sons dos pássaros e do trator iam sendo substituídos por veículos, buzinas e construções.

No lote onde fiquei, foi construído um conjunto de edifícios, com várias famílias, cada uma com a sua história. Assim como eu tinha a minha. Vi nascimentos, bebês carregados no colo, logo se balançando sobre meus braços. Tornei-me parte delas. Consideravam meu valor histórico e emocional. Tornei-me Patrimônio do Estado.

Meus familiares encontravam-se nas florestas estacionais e atlânticas, em praticamente toda a América Latina, das Guianas ao Uruguai. Resistíamos a ventos fortes, à adversidade do tempo e das pragas. Nosso ponto fraco: a podridão, um fungo oportunista de ambientes úmidos. Fui parar naquela chácara não sei como, onde fiquei durante décadas.

A pressão do crescimento da cidade e do confinamento das construções impediram, no entanto, que eu ali continuasse. As alterações do ambiente comprometeram meu sistema de raiz. Fui atacada pela podridão. Foram alguns anos, até que toda a minha estrutura interna adoecesse. Eu resistia. Ainda tentava crescer, tanto para cima como para os lados, expandir minhas raízes, copa, galhos e tronco. Queria esparramar-me pela superfície, ocupar espaços que desejava, mas as construções não permitiam. Fiquei entre elas e a podridão que se expandia, cada vez mais, por todo o meu corpo.

Não era a única doente. Todos adoeciam de forma proporcional ao desenvolvimento da cidade. A maioria das pessoas não vivia mais sem remédios, devido, principalmente, ao ambiente poluído e à alimentação inadequada. A mim, faltava água e sol na medida certa e nutrientes.

Os anos passavam, eu cada vez mais fraca, quando um de meus ramos caiu sobre uma das torres do condomínio construído no meu entorno. Os bombeiros comentavam — só aquele meu ramo possuía cerca de cinco toneladas. Sem contar as raízes, minha parte visível teria mais de 20 toneladas! Estava com 22 metros de altura e mais de dois metros de largura. Pensei várias vezes em sair andando e mudar de lugar. Mas minha natureza não permitia. Fui engolida pela podridão. O diagnóstico eu já sabia, era o meu fim.

Virei notícia. Mais um caso, no qual cedemos ao “desenvolvimento”. Fui reflexo da pressão exercida sobre as comunidades rurais, sobre os remanescentes e elementos naturais. Muitas perdas de registro da memória e do histórico local e, em paralelo, da biodiversidade de espécies e ambientes naturais.

Apesar de tudo, senti todo o carinho e o adeus. Não existe limite para o sentimento e para as trocas de afetos.

Texto publicado na minha coluna semanal do Facetubes:

https://www.facetubes.com.br/galeria/105/convidada-especial-joema-carvalho-ceboleiro-