Análise do poema “A noite dissolve os homens” de Carlos Drummond de Andrade (3ª etapa do PAS)

A noite dissolve os homens

A noite desceu. Que noite!

Já não enxergo meus irmãos.

E nem tão pouco os rumores

que outrora me perturbavam.

A noite desceu. Nas casas,

nas ruas onde se combate,

nos campos desfalecidos,

a noite espalhou o medo

e a total incompreensão.

A noite caiu. Tremenda,

sem esperança… Os suspiros

acusam a presença negra

que paralisa os guerreiros.

E o amor não abre caminho

na noite. A noite é mortal,

completa, sem reticências,

a noite dissolve os homens,

diz que é inútil sofrer,

a noite dissolve as pátrias,

apagou os almirantes

cintilantes! nas suas fardas.

A noite anoiteceu tudo…

O mundo não tem remédio…

Os suicidas tinham razão.

Aurora,

entretanto eu te diviso, ainda tímida,

inexperiente das luzes que vais acender

e dos bens que repartirás com todos os homens.

Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,

adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.

O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,

teus dedos frios, que ainda se não modelaram

mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.

Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,

minha carne estremece na certeza de tua vinda.

O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,

os corpos hirtos adquirem uma fluidez,

uma inocência, um perdão simples e macio…

Havemos de amanhecer. O mundo

se tinge com as tintas da antemanhã

e o sangue que escorre é doce, de tão necessário

para colorir tuas pálidas faces, aurora.

ANÁLISE

Características da composição poética de Drummond (1902 a 1987)

• Os poemas de Drummond são divididos em 4 fases:

* 1ª fase – gauche – anos 30 - eu maior que o mundo – ironia, pessimismo, individualismo, isolamento, inquietude, reflexão sobre a existência, metalinguagem, presença de vários eus, reiteração dos mesmos segmentos a poesia é a manifestação de uma eterna procura.

* 2ª fase- social – anos 40 a 45 – engajamento, interesse pelos problemas da vida social, sentimento de solidariedade ao próximo; interesse pela guerra e sistemas políticos opressores como o fascismo e o nazismo, postura social, defende a coletividade, desilusão diante da guerra, contrastes, discussões dialéticas, sentimento de incompletude, denúncia da alienação da sociedade, mudança do eu numa perspectiva coletiva, tentativa de mudar o mundo por meio da poesia.

* 3ª fase – negação – anos 50 a 60 - eu menor que o mundo o mundo é que é importante (fase da escrita desse poema) temas universais (vida, família, tempo, amor, morte, velhice, tempo, paz, guerra), o fazer poético, existencialismo.

*4ª fase – memória – anos 70 a 80 - retoma temas universais, lembrança da infância, da terra natal, família, ironia, erotismo...

Estrutura e dados gerais do poema:

• Publicado em 1940, no livro “Sentimento do mundo”;

• Dedicou o poema à Cândido Portinari (artista comprometido com o engajamento social e à denúncia), amigo de Drummond;

• Possui 3 estrofes;

• A primeira estrofe é composta predominantemente de redondilhas maiores (versos com 7 sílabas poéticas) e versos brancos (possuem métrica, mas não utilizam rimas);

• A segunda e a terceira estrofe possuem versos livres (irregulares);

• As características do poema são da 2ª fase do autor.

Essa obra tem relação com o contexto histórico vivido pela humanidade naquele período. No Brasil, a Era Vargas; no mundo, a 2ª Guerra Mundial que teve início em 1939. Além disso, governos com práticas ditatoriais como o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha e, aqui no Brasil com o governo Vargas e isso impactou na maneira de cada indivíduo pensar o mundo naquela época.

Diversos artistas de diferentes vertentes publicaram obras com o intuito de refletir sobre o comportamento da humanidade naquele período conturbado e Drummond se posiciona contrário às guerras mostrando neste poema o quão facilmente um ser humano pode envolver-se em causas desoladoras e fadadas ao fracasso perdendo o sentido de existir.

Metaforicamente a noite, no poema, simboliza a capacidade dela estar em todo lugar, tomar conta de tudo, diluir. À noite, todos estão frágeis e possuem as mesmas preocupações. À noite, os comandantes e comandados estão dissolvidos na mesma guerra. As formas de legitimação da violência são questionadas neste poema “nos campos desfalecidos”.

No verso “A noite desceu” como algo inevitável que desce sobre todos. À noite o eu-lírico sente-se sozinho, com medo, sem esperança, não compreende a guerra, as mortes, a destruição. Sente-se paralisado e percebe que todos estão na mesma situação. “A noite dissolve os homens” porque os desarma, mostra o quão são frágeis, à beira de uma morte eminente, não havendo patentes, sentimento patriótico. Nem mesmo os almirantes (que cintilam pelo poder que a eles são dados) podem com a noite. “Os suicidas tinham razão” (desde a queda da Bolsa de Nova York, em 1929, a imprensa mundial divulgou que muitas pessoas desde aquele fato se mataram, fazendo a população pensar que havia tido aumento dessa prática), pois para o eu-lírico, a morte, neste caso, seria melhor que todos os sentimentos vividos por ele e por todos os outros durante a noite.

As reticências mostram que além dos sentimentos descritos, muitos outros de mesma intensidade estão presentes.

O apontamento para a saída, a esperança, surge na 2ª estrofe. Aurora é uma personificação da mulher a transformar o mundo, o novo dia. Ela traz novas possibilidades e mais poder que o sistema opressor “O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,”.

Percebemos uma relação dicotômica entre a primeira e as duas outras estrofes: a primeira estrofe está amarrada à métrica, a segunda e a terceira não; a primeira estrofe possui homens, na segunda, Aurora, a mulher, musa de inspiração aos homens; a primeira estrofe possui apenas atributos negativos que remetem a ideia de pessimismo e morte, a segunda, “vapor róseo, expulsando a treva noturna”- ela veio para trazer a liberdade; a primeira estrofe é a alusão ao nazifascismo e guerra, e, na terceira estrofe, ao comunismo como forma de libertação “Havemos de amanhecer.”

A polifonia (várias vozes no poema) pode ser percebido pelo dizer do eu-lírico na primeira estrofe solitário falando sobre si e todos os sentimentos que possui durante a noite, na segunda, sentindo-se junto com a Aurora e mudando a perspectiva e, finalmente na terceira estrofe está transformado pelas ações da musa “Havemos de amanhecer”, ou seja, não haverá fascismo, a guerra e as noites descritas na primeira estrofe acabaram para o eu-lírico que encontra-se não mais sozinho. E a luta a partir dali faz sentido “e o sangue que escorre é doce, de tão necessário”. A aurora que finaliza o poema está escrito agora com letras minúsculas porque é de fato o amanhecer que surge, não mais como a mulher Aurora, mas como o comum a todos.

Marcela Cristiane
Enviado por Marcela Cristiane em 27/01/2021
Reeditado em 28/01/2021
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