Análise do livro “Fazendo Ana Paz” de Lygia Bojunga

O livro de Lygia Bojunga, “Fazendo Ana Paz”, publicado em 1991, traz um enredo interessante sobre o processo de construção da escrita literária, relatando inclusive os pensamentos e divagações de um escritor. A narradora nos apresenta três Ana Paz: a criança, a jovem e a idosa (do tempo presente). E essas personagens fictícias que vão sendo apresentadas aos poucos, inacabadas, se entrelaçam com a vida da própria escritora (não sabemos se é de fato a escritora Lygia, ou se é uma escritora narradora). Mas há semelhanças da personagem Ana Paz com a escritora Lygia, como serem do Rio Grande do Sul e também ser a Lygia escritora da obra Bolsa Amarela que aparece na história.

O aparecimento e desaparecimento de inspiração para escrever e a tentativa da narradora em terminar os personagens estão presentes na narrativa do início ao fim. Assim, Lygia mostra aos seus leitores o quão é natural esse processo de escrita: Ela é a autora, mas também a leitora e como leitora, corrige a sua escrita e os seus personagens. A novidade é contar ao leitor sobre esse fazer e desfazer e o diálogo do personagem inacabado (ficcional) com a narradora (que parece real, talvez a própria Lygia).

Esse texto instaura entre nós leitores um desconforto, um inconformismo e uma vontade de continuar a leitura da história porque eles são revelados e construídos aos poucos. E o desfecho é surpreendente: Ana Paz revela à escritora que quer “ir para fora”. Ou seja, uma personagem que tem consciência de ser personagem e que não aceita ser engavetada e nem tão pouco esquecida, então propõe sair da ficção para a realidade. Como ressalta Barthes (1987, p.35), é um texto que te deixa à deriva e “lendo-o, sou arrastado a levantar a cabeça, ouvir outra coisa.”

Outro aspecto interessante, são as visitas que as personagens fazem à narradora em momentos comuns do dia a dia. Isso ocorre de maneira aparentemente inesperada à quem está justamente elaborando a escrita, a narradora. Há ainda a presença do pai e a carranca que são também revelados aos poucos, à conta gotas, e mesmo quando termina o livro, várias lacunas continuam presentes deixando o leitor cheio de imaginação e aberto a possibilidades. Essas construções são condizentes com a natureza dos textos literários que “Dir-se-ia que ele tagarela.” BARTHES (1987, p.9) e que, ao contrário dos textos utilitários, faz os saberes girarem (quantos não vem à tona e nos inquieta durante a leitura desse texto?), dialoga com o leitor, traz o prazer e a fruição:

"Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem. (BARTHES, 1987, p.21,22)

Outra parte que merece destaque, é o início da obra que nos reapresenta a personagem Raquel e com esse recurso intertextual, o leitor que ainda não leu a obra Bolsa Amarela, certamente tentará ler, pois a personagem Raquel é apresentada em Ana Paz como forte e determinada, entretanto, também aparece e some quando quer e por isso será também inacabada na obra “Fazendo Ana Paz”.

Outro aspecto a ser abordado, é o retorno de Ana Paz, já velha, para a sua cidade natal e que ao contrário do que as pessoas fazem: construções arquitetônicas modernas, Ana Paz se propõe a restaurar a “casa velha” e depois doá-la à cidade (anti-capitalismo?). Nesta passagem, mesmo que sutilmente ou até casualmente encontramos um discurso próximo ao utilitário.

A obra “Fazendo Ana Paz” de Lygia Bojunga é um exemplo de livro que ilustra bem o que é uma obra evidenciada como estética, não só pelo enredo que nos é apresentado, mas também pelos recursos que a autora utiliza para compor a obra, como uso de repetições de palavras, aliterações, descrições imagéticas, gradações.

A obra nos traz durante e após a leitura vários “vazios” que são preenchidos pelo leitor. Barthes (1987, p.26) nos inquieta com a seguinte questão “Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com frequência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de ideias, excitações, associações? Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça?” Uma obra mais estética produz esse levantar de cabeça, uma inquietude, ao permitir que o leitor imagine várias possibilidades interpretação, o preenchimento de vazios. Barthes (1987) afirma que há interação entre leitor-autor-texto.

A noção de discurso estético, é caracterizada por Perroti (1986) como aquele que

privilegia o campo ficcional, polifônico, permitindo vários modos de perceber o dito, “é a narrativa aberta, polifônica, multidirecionada, artística, que poderá levar o leitor a alcançar o espírito crítico” (PERROTI,1986, p.63).É pelo discurso estético que valoriza-se a fantasia, o sonho ,a emoção e o encantamento.

Já o discurso utilitário apresenta uma “literatura” com discursos voltados a intenções didáticas e moralizantes. Perroti (1986) afirma que o discurso utilitário em um texto de Literatura Infantil, por exemplo, é de um adulto para uma criança, ou seja, é o discurso do saber. Em “Fazendo Ana Paz” essas características não são facilmente percebidas. Não se verifica a preocupação em trazer valores morais ou saberes (utilitários) na obra, embora possam casualmente vir à tona como já citamos. Além disso, a faixa etária classificada como infanto-juvenil pode ser desconsiderada, uma vez que o público de qualquer idade poderá se interessar pela leitura desse livro.

Verifica-se ainda a presença nessa obra, segundo Barthes(1977), as três forças da Literatura: a mathesis, a mimeses, e a semiosis .Por mathesis o autor considera que a literatura “ faz girar os saberes, não fixa” [...] e que “ o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor; que ela sabe algo das coisas — que sabe muito sobre os homens.”( BARTHES 1977, p.17). A mimesis, a força da representação, “Que o real não seja representável — mas somente demonstrável — pode ser dito de vários modos” (BARTHES, 1977, p.20). A semiosis que joga com os signos e que “Seus objetos de predileção são os textos do Imaginário: as narrativas, as imagens, os retratos, as expressões, os idioletos, as paixões, as estruturas que jogam ao mesmo tempo com uma aparência de verossimilhança e com uma incerteza de verdade.” (BARTHES,1977, p.38). Todos esses conceitos se encaixam perfeitamente na obra de Lygia Bojunga: podemos reler o texto várias vezes e teremos nessa nova leitura, algo a mais que tinha passado desapercebido, a realidade da obra está ligada ao real e ao mesmo tempo ao imaginário e a semiosis pode ser percebida no enredo e na escolha das palavras que em vários trechos tornam-se poéticos, além da presença de várias figuras de linguagem. Essas três forças é que conduzem o leitor a ler simplesmente pelo gosto e prazer em ler.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix.1977.

________________. O prazer do texto. 1ª ed., São Paulo: Perspectiva, 1987.

NUNES, Lygia Bojunga. Fazendo Ana Paz. 2ª ed. Rio de Janeiro: AGIR, 1993.

PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo:

Icone,1986.

Marcela Cristiane
Enviado por Marcela Cristiane em 08/06/2019
Código do texto: T6668239
Classificação de conteúdo: seguro