Roçzeiral: um viés concreto

No texto Vanguarda e seus limites do livro Indagações de hoje, Ferreira Gullar discute o conceito de vanguarda, refutando a universalidade, que segundo o próprio, se faz usual às aplicações do termo. Para tanto, ele sai do panorama “estético-formal para situá-lo histórica e socialmente”:

Se é verdade que o caráter internacional da cultura contemporânea coloca num mesmo plano de atualidade as diferentes manifestações nacionais de cultura, é menos certo, em cada país em cada região, a experiência de vida e os problemas concretos que agem sobre essa experiência exigem do escritor e do artista um modo específico de lidar com a matéria artística e formulá-la: o novo nasce da relação concreta com a vida (GULLAR, 1989, p.18).

Com isso tem a intenção de esclarecer, talvez, o seu próprio traço vanguardista na literatura. O que Ferreira percebe nesse movimento são essencialmente as influências culturais sendo importadas e exportadas, transformando-se, adaptando-se para uma realidade própria de cada lugar onde aquela obra está sendo realizada. Toda essa percepção descrita por Ferreira é considerada e desenvolvida por Oswald (1928), citado por Eneida Maria de Souza (2002, p.100), “O conceito de antropofagia por Oswald de Andrade em 1928 (Manifesto antropófago), desdobrado em nome de revista do movimento (Revista de Antropofagia), e retomado nos anos 1950, em termos de ‘cosmovisão filosófico-existencial’, em A crise da filosofia messiânica, mantém-se ativo até os dias atuais seja através de sua apropriação pelo tropicalismo dos anos 1960, seja pela releitura da dependência cultural realizada pelos recentes estudos comparativistas no Brasil”.

Um bom exemplo desse diálogo entre culturas discutido por Ferreira, gerando um desenvolvimento expressivo de novos meios artísticos, linguagens e códigos sendo usados como inovações, motores do movimento vanguardista, decalcam-se de forma notável na sua obra A luta corporal que é o seu primeiro livro, lançado em 1976. É um dos livros de mais preponderância em sua geração, mantendo até os dias atuais grandes discussões a respeito da ideia da obra e sua linguagem.

Aparece no cenário vanguardista, como uma obra de maneirismo, inaugurando o que se chamou de poesia concreta. De acordo com Ferreira, A luta corporal surge como um urgido em busca de novas formas. É de fato um laboratório de experimentações da palavra, um estudo aprofundado da linguagem por meio de seu uso prático.

Num determinado contexto sociocultural o autor emerge como eixo de transição, trazendo para a sua obra a tão comentada, naquele momento, ruptura moderna.

Assim como o título sugere, os textos assentados nessa obra vêm trazer a sensação da luta travada com a palavra, onde ideias se contorcem tentando evidenciar o seu significado. O livro inclui poemas datados de 1950 até 1953. Entre eles, em especial, destaca-se nesse trabalho, em favor de sua análise, um dos últimos poemas na obra: Roçzeiral.

O que se sabe sobre esse emblemático poema é que foi escrito com base em um denso momento de insight. Ferreira descreve seu processo criativo como “uma loucura”. Roçzeiral foi desenvolvido na seguinte paisagem: em seu imaginário, o autor presencia o instante exato em que um belo jardim frondoso começa a desaparecer de repente, desmanchando-se flor a flor. Diante disso, surge essa metáfora do desejo de criar a partir que foi destruído. Um jardim abstrato em ruínas dá vida a um poema metalinguístico e de concretude própria; um poema sobre o poético.

Eu tinha explodido a linguagem no fim do meu livro A luta corporal. Por que eu explodi a linguagem? Eu não pensava estar fazendo nenhuma inovação. Tratava-se de um problema existencial, de conhecimento, de responder à vida. Eu tinha destruído a linguagem, não foi uma brincadeira, não foi uma atitude (GULLAR, 2000, p.10).

Dentro dessa explicação, podem-se identificar características descritas pelo próprio autor em seu livro Indagações de hoje, de 1989. Onde ele propõe “um problema existencial”, observam-se o contato do escritor com experiências da vida e os problemas concretos agindo sobre essas experiências.

Roçzeiral surge num período histórico onde, do ponto de vista criativo-cultural, a arte em todos os seus veículos de expressão, representa uma negação às estruturas já existentes, uma quebra de princípios estéticos. Nesse poema, Ferreira Gullar explode todos esses padrões, instigando o seu leitor a ir além da forma visual, a compreender uma linguagem que pouco fala sobre si mesma: imprevisível, refeita a cada verso, em cada letra. Escreve quase em código para quem se acostumou a destrinchar um texto completamente facilitado, por ter sido escrito sobre um molde que antes servia para todos, e agora, já não significa necessariamente uma obrigatoriedade dentro do campo literário.

Segundo o pensamento de que o texto moderno não segue uma linha de evolução em relação às manifestações estéticas anteriores, não se pode classifica-los dentro de uma perspectiva de superação. Em A luta corporal, Ferreira Gullar faz esse movimento externa e internamente. Trata-se de uma obra diferenciada e autêntica, com formas e princípios únicos, onde os textos que estão ali contidos fogem a determinado segmento presente em obras de outros autores, e da própria obra. Roçzeiral tem peculiaridades que diferem em termos extremos de todos os outros textos que lhe antecedem.

Ferreira transplanta contextos ideológicos e ampara-os dentro de seu campo cultural, empregando-lhe características regionais, mistura dialetos, reforma-os e insere figuras mitológicas nesse campo linguisticamente miscigenado:

Rozal, ROÇAL

Pancêndio Mino-

Mina TAURUS

MINÔS rhes chãns

sur ma parole –

ÇAR (GULLAR, 2015, p.55)

Destrói a linguagem, a forma, a métrica. Recria-as. Fênix literária.

REFERÊNCIAS

GULLAR, Ferreira. Indagações de hoje. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

CHIARA, Ana. Ferreira Gullar: poeta da alegria. Revista Relâmpago. Fotocópia, 2000.

GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 21ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio. 2015.

Taíse Dourado
Enviado por Taíse Dourado em 10/08/2016
Reeditado em 10/08/2016
Código do texto: T5724081
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.