A representação da reificação do homem e caracterização das personagens do conto "Pai contra Mãe", de Machado de Assis

O conto Pai contra Mãe (1906) foi escrito por Machado de Assis de forma que provoque no leitor, desde o início com a descrição dos instrumentos de tortura usados em escravos, algum sentimento de repugnância aos atos praticados no período da escravidão no Brasil. Estas ações voltadas às horríveis condições a que estavam submetidos os negros demonstravam a crueldade dos senhores de escravos e o apoio social que recebiam. Exemplo disso é uma passagem no final do conto em que ocorre a luta ente Cândido e Arminda, as poucas pessoas que viam não agiam contra a perversidade que ocorria a sua frente. As atitudes dos senhores e de todos que maltratavam os escravos eram aceitas e fundamentavam-se numa moral social que aprovava o sistema escravocrata, em vigor até o ano de 1888.

“(Machado de Assis) não se eximiu, em seus contos e romances, das questões da política do favor e da violência. John Gledson (2007, p. 13), referindo-se aos contos ‘Pai Contra Mãe’ e ‘O Caso da Vara’, afirma que Machado tratou de ‘um assunto que até certo ponto era tabu naqueles anos’ e não são ‘nada contidos em termos de violência, da injus¬tiça e da força destruidora da instituição que evidenciam’.” (SOUZA, 2009, p. 142)

Este conto nos revela a história de Cândido Neves, um rapaz novo, mas que não se ajustava aos ofícios mais reconhecidos na sociedade. O rapaz pobre, após algumas tentativas de se manter em um emprego adequado, acabou por se entregar a um trabalho de caráter duvidoso: pegar escravos fugidos, recebendo boas recompensas por cada fujão que capturava. Cândido Neves não gostava tanto do ofício, fazia por obrigação, afinal, como homem da casa e futuro pai de família, deveria manter economicamente sua esposa e a tia da moça. Além disso, sua função era necessária na sociedade e, geralmente, assumiam essa posição somente aqueles que não conseguiam “aguentar” outros empregos, como era o caso de Cândido.

Clara, esposa de Candinho, era uma moça órfã, idealista, também pobre, mas com o desejo de constituir uma família, apesar da grande dificuldade que isso suscitava. Os dois casaram-se onze meses depois que se conheceram e não tardou muito para desejarem ter um filho para completar a família, mesmo com o consequente aumento das dificuldades financeiras. D. Mônica, tia de Clara, vivia com o casal e o seu perfil era de uma mulher realista e um pouco amarga, mas que ajudava como podia sua família.

O filho, enfim, estava a caminho e Candinho tentando ganhar a vida com o ofício de gratificações em dias cada vez mais incertos, pois ele não era o único a ver a captura de escravos como um trabalho relativamente fácil, apesar de degradante. Cândido capturava os negros como a animais, entregava ao dono e recebia a recompensa como uma glória concedida por Deus. Quando o filho já estava próximo do nascimento as condições de vida já eram amargas e praticamente insustentáveis, o que gerou um conselho de D. Mônica: Entregar o ser que viria ao mundo para a Roda dos Enjeitados, dessa forma, ele seria tratado com a mesma repugnância e/ou rejeição com que Cândido tratava os escravos fugidos.

No conto, Machado de Assis consegue captar alguns dos diversos conflitos que ocorriam no tempo da escravidão no Brasil, situando tudo no contexto de uma família pobre e destacando um aspecto que já fazia parte de seu estilo como escritor: a análise psicológica dos personagens que, no conto, se veem frente a frente com um futuro incerto e com poucas perspectivas favoráveis. Além disso, a linguagem usada por Machado apresenta-se sempre com imensa naturalidade, contrastando-se com a temática tensa do início ao fim.

“O início de ‘Pai contra mãe’ é bastante atípico na escrita machadiana: quatro grandes parágrafos descritivos. Todos sabemos que a descrição não aprazia a Machado. Seu interesse estava nos fatos, nos acontecimentos, nas ações, enfim, era agindo que o homem se revelava para nosso autor.” (MUNIZ, 1996, p. 03)

Um aspecto importante no comportamento dos personagens era o gosto que todos possuíam pelas patuscadas, mesmo com a vida difícil. O casal, especialmente, divertia-se com tudo, e o riso era uma das características mais marcantes que ambos possuíam. Assim, Machado ironiza a situação vivida por aquela família, ressaltando uma espécie de alienação em que eles viviam.

Além disso, todos os personagens vivem em uma situação degradante e são descritos exatamente dessa forma, até mesmo o filho de Cândido e Clara é referido em certas passagens apenas como “o feto”. Devemos lembrar ainda da humilhante situação do protagonista, identificado como um homem livre, mas que sofria tantas dificuldades quanto um escravo, apesar da condição de liberdade que dispunha.

“Machado, através de "Pai contra mãe", mostra como o negro livre e, no caso, o trabalhador branco pobre estão em situação muito semelhante ao negro escravo. Ganha a liberdade, ou mesmo já a possuindo por uma questão de origem, o trabalhador livre possuía pouca perspectiva num país em que a bipolaridade social e econômica era, ainda, a principal característica. [...] Não é mais (a escravidão) o alvo (de Machado de Assis), mas sim o fruto de seu fim: o trabalhador livre.” (MUNIZ, 1996, p. 10).

Outro aspecto marcante do conto é o sentimento de individualismo quase egocêntrico dos personagens, retratado especialmente na figura de Cândido que, apesar de amar verdadeiramente o filho, não conseguiu sentir piedade da escrava grávida que capturou. O mesmo comportamento podemos perceber em D. Mônica, que pensava no bem da família de forma realista, mas sempre demonstrando que tudo poderia e deveria ser feito para que o pão viesse à mesa. Clara, a moça idealista e sonhadora, obedecia ao que a vida lhe proporcionava, tendo casado com alguém em condição igualmente miserável não pedia muito, mas a família estava acima de qualquer dificuldade e merecia sempre um esforço de trabalho a mais caso isso resultasse em, como queria sua tia, pão na mesa.

Por fim, é importante frisar que através deste conto Machado de Assis demonstra plena consciência dos conflitos sociais daquele período. Em relação à temática da escravidão, o escritor manifestava suas opiniões principalmente através das crônicas que publicava nos jornais, bem como através de seu trabalho como funcionário público. No entanto, como o bom contista que foi não poderia deixar de abordar essa temática também em seus contos.

REFERÊNCIAS:

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Contos Escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2011.

MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Uma leitura possível de "Pai contra mãe", de Machado de Assis. Revista de Estudos Acadêmicos Unibero, São Paulo, v. 4, p. 25-31, 1996.

SOUZA, Valmir de. Discurso liberal e cativeiro na cena literária de Machado de Assis. Revista USP, São Paulo, n.81, p. 141-147, março/maio 2009.

Jéssica Catharine
Enviado por Jéssica Catharine em 03/01/2015
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