Resumo:
O sujeito se questiona, intimamente, sobre sua essência. Afinal, sou sujeito ou objeto. Até onde vai a real liberdade ou somos ditados ciosamente pelas circunstâncias, que vão da genética até geografia. O discurso expele valores ou apenas aquilo que aprendemos ao longo de cada trajetória? A Idade contemporânea é marcada por latente crise identitária. Mas, prossegue escavando o infinito na tentativa de obter uma verdade fatal.
Palavras-chave: Idade Contemporânea. Discurso. Sujeito. Crise. Identidade. Objeto.
Uma reflexão sobre a noção de sujeito do discurso e sua identidade principalmente na Idade Contemporânea e, a consciência do papel da linguagem e exemplos emblemáticos da consciência em razão da linguagem na configuração do mundo e do sujeito enunciante.
O período que vai do modernismo até os presentes dias, pós-modernos que para muitos não se terminou. Investiu-se muito na ruptura dos códigos, na subversão da espera e surpresa constitutiva do acontecimento e, por essa razão, não se pode dispensar o labor de identificar o código rompido e a rotina na qual se apresenta.
É temerário afirmar que pós-modernidade está centrada na revisão crítica do passado tendo em vista a formação do futuro, tal qual aconteceu com as vanguardas modernistas. Lembremos o gesto sintomático de René Magritte[1], ao afirmar: "Isto não é um cachimbo", apesar da representação pictórica do cachimbo que elabora uma desnaturação do signo relevante o caráter mediador e instaurador da imagem, ou seja, sua condição de significante e cujo significado é a figura correspondente na macrossemiótico do mundo natural, também esta, é construto cuja base é Merleau Ponty.
Há uma crise da representação e, ipso facto, a dispersão do sujeito, mas os pós-modernos reconhecem o papel fundante da linguagem tanto na constituição do mundo quanto na de quem o enuncia.
Afinal, o homem reconhece-se como animal symbolicum e não como animal racionale pois os comportamentos criam significações que são transcendentes em relação ao dispositivo anatômico e, todavia, imanentes ao comportamento enquanto tal, já que este se ensina e se compreende. Não se pode fazer economia desta potência irracional que cria significações e que as comunica. A fala é apenas um caso particular desta. (Merleau-Ponty).
Poder-se-ia dizer que a “filosofia primeira” não é a investigação da “natureza” ou da “essência” das “coisas” ou dos “entes” (“ontologia”), nem tampouco a reflexão sobre as “noções” ou “conceitos” da “consciência” ou da “razão” (“epistemologia”), mas sim a reflexão sobre o “significado” ou o “sentido” de manifestações linguísticas (“análise da linguagem”).
Uma vez admitida esta centralidade da linguagem como objeto de reflexão nas mais variadas áreas do pensamento pós-moderno, decidimos fazer uma breve incursão nos modos como a semiótica greimasiana, entendida como teoria da significação, trata as questões com ela relacionadas, isto é, como a teoria semiótica desenvolve as noções de ato enunciativo, sujeito da enunciação, enunciador, enunciatário e identidade do sujeito enunciante.
Sabendo-se que a enunciação é jogo de construção de simulacros, o processo comunicativo não pode ser, portanto, reduzido à mera circulação de mensagens num dado contexto, conforme sustentam alguns adeptos da teoria da informação.
A enunciação examinada sob prisma da narração, tem, no programa a persuasão-manipulação-interpretação intersubjetiva, próprio do processo comunicativo, e construção de simulacros como um dos básicos procedimentos.
O enunciado é, por sua vez, não somente o objeto de transmissão de saber, mas um objeto-discurso construído e manipulado pelo sujeito da enunciação.
O sincretismo dos papéis de enunciador e enunciatário evidencia-se, principalmente, em discursos sem narrador explícito, em que os acontecimentos são apresentados objetivamente, como se se desenvolvessem por si mesmos. Nesses discursos, constrói-se, com efeito, um único lugar de observação em que enunciador e enunciatário se encontram sincretizados.
Trata-se, nas palavras de Fontanille (1998), da figura de um observador, entendido como o agenciador dos pontos de vista que regulam os modos pelos quais o enunciado pode ser apreendido, e os pontos de vista são, para Fontanille, as perspectivações que exploram “a orientação discursiva para fazer face à imperfeição constitutiva de toda percepção”.
A enunciação poética, portanto, constrói simulacros como qualquer outro ato enunciativo e, para Fernando Pessoa, fá-lo de tal modo que persuade o enunciatário da “verdade” da “dor” enunciada. Exímio fingidor, pois domina os mecanismos e procedimentos enunciativos, o poeta se qualifica, então, como aquele que quer, sabe e pode-fazer-crer na verdade enunciada.
É o sujeito da enunciação, o criador do ethos do enunciador e do pathos do enunciatário, ou melhor, o centro gerador do “real” do discurso. Mas, no processo de comunicação do poema, a “dor” enunciada, constitutiva da identidade do enunciador, é efeito de discurso ou “dor” de segunda ordem. E no processo da leitura, por sua vez, cria-se uma “dor” de terceira ordem, a do leitor, já bastante modificada pela mediação instauradora da atividade semiótica.
Trata-se, portanto, de um deslizamento do sentido posto em ação pelo fazer enunciativo, no qual são construídos simulacros actanciais tanto na instância da enunciação quanto na do enunciado, processo do qual o enunciador de “Autopsicografia” demonstra ser sabedor
No dicionário de semiótica, Greimas e Courtés (s/d) dão o termo identidade como um não definível que se opõe ao termo alteridade, igualmente não definível. Claro está que, ao procederem assim, os autores esquivam-se de fornecer-lhes uma definição positiva e os colocam no rol dos primitivos semióticos indefiníveis.
Desejam, com efeito, destacar o seu valor relativo a fim de torná-los interdefiníveis, porque pensam na relação fundamental de pressuposição entre os termos da estrutura elementar da significação: as relações de conjunção e de disjunção.
No mesmo verbete, os autores fornecem outras definições para os termos, todas fundamentadas no seu caráter relacional e interdependente. Assim, “a identidade serve para designar o traço ou conjunto de traços (em semiótica: semas ou femas) que dois ou mais objetos têm em comum” (s/d, p. 223).
Ainda neste verbete, identidade se define como permanência na mudança, isto é, como a persistência de um indivíduo no seu ser ao longo das transformações narrativas lato sensu.
Na identidade, o indivíduo se mantém o mesmo, não obstante as modificações de que é sujeito ou que o afetam. Nessa definição, observa-se novamente a relação de mútua dependência entre os dois termos, a identidade correspondendo à permanência, e a alteridade, à mudança.
De modo semelhante é concebido o processo de construção da identidade por muitos poetas modernos. Mário de Sá-Carneiro, por exemplo, demonstra a plena consciência deste fenômeno quando, em um de seus poemas, diz “Eu não sou eu nem sou o outro. / Sou qualquer coisa de intermédio”. Também Fernando Pessoa parece aderir a igual ponto de vista quando admite “Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela / E oculta mão colora alguém em mim” (1996, p. 61).
Esses versos são prova de que os dois poetas estão plenamente cônscios da dinâmica implicada no processo de edificação identitária e servem como mostra de que os dois escritores fizeram da reflexão acerca do tema matéria de sua poesia.
Nestes termos, não há como enunciar senão construindo e marcando posição, isto é, constituindo-se transitiva e reflexivamente em relação a alteridades: sujeitos (sujeito/destinador/destinatário) e objetos, e os dois poetas portugueses não pensam de outro modo. Para eles, a identidade do “eu sou” passa necessariamente pela relação com as alteridades que lhe são constitutivas.
Pode-se concluir que: a) se a constituição da identidade é processual e dependente do discurso-enunciado, como defende a semiótica, o sujeito do discurso se faz conhecer na e pela própria atividade enunciativa, como um simulacro; b) este simulacro, na qualidade de objeto semiótico, reconstituível a partir da leitura dos textos de um dado corpus, tomado como totalidade discursiva, é o resultado das operações de abertura e fechamento e de triagem e mistura agenciadas em discurso; c) essas operações se dão em razão de uma base axiológica e de um fundo tensivo, presentes em todas as fases do percurso de geração do sentido; d) a base axiológica e o fundo tensivo, presentes em todo discurso, simulam o sujeito na sua dimensão sócio-histórica e individual, respectivamente; e) no percurso gerativo do sentido, a base axiológica e o fundo tensivo ganham gradativamente maior densidade sêmica, e, no nível discursivo, sobremodo através da seleção dos temas e das figuras, o sujeito revela-se em sua porção ideológica.
A identidade do sujeito enunciante se faz, então, na dinâmica que envolve os objetos-valor, sobretudo os valores-modais, e as relações que ele, sujeito enunciante, entretém com outros sujeitos.
Do ponto de vista da extensidade, é pelas operações básicas de conjunção e disjunção que o efeito de centro do discurso se faz; e, do ponto de vista da intensidade, é o valor tônico ou átono das grandezas que as aproxima, ou as afasta do centro do discurso. Essa dinâmica identitária torna-se tanto mais apreensível quanto mais a enunciação é simulada no enunciado.
Referências
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[1] René François Ghislain Magritte (1898-1967) foi um dos principais artistas surrealistas belgas, ao lado de Paul Delvaux. René Magritte praticava tanto o surrealismo realista, como o realismo mágico. Começou a imitar a vanguarda, mas precisava realmente de uma linguagem mais poética e viu-se influenciado pela pintura metafísica de Giorgio de Chirico.Magritte tinha espírito travesso, e, em A queda, os seus bizarros homens de chapéu-coco despencam do céu absolutamente serenos, expressando algo da vida como conhecemos. A sua arte, pintada com tal nitidez que parece muitíssimo realista, caracteriza o amor surrealista aos paradoxos visuais: embora as coisas possam dar a impressão de serem normais, existem anomalias por toda a parte: A Queda tem uma estranha exatidão, e o surrealismo atrai justamente porque explora a nossa compreensão oculta da esquisitice terrena. Mudou-se para Paris em 1927, onde começou a envolver-se nas atividades do grupo surrealista, tornando-se grande amigo dos poetas André Breton e Paul Éluard e do pintor Marcel Duchamp. Quando a Galerie la Centaure fechou e seu contrato encerrou, Magritte retornou a Bruxelas. Permaneceu na cidade mesmo durante a ocupação alemã, na Segunda Guerra Mundial. O seu trabalho foi exposto em 1936 na cidade de Nova Iorque, Estados Unidos, e em mais duas exposições retrospectivas nessa mesma cidade, uma no Museu de Arte Moderna, em 1965, e outra no Metropolitan Museum of Art, em 1992.