Aplicação da Lei 9.714/98 ao Crime de Tráfico Ilícito de Entorpecentes

A sociedade passa por momentos de agitação, onde a insegurança ao lado do desemprego têm sido a principal preocupação das pessoas, que sentem medo, devido ao aumento da criminalidade. O número de roubos, furtos, assaltos à bancos, a caminhões, segundo dados divulgados pela imprensa aumentou nesse 1.o semestre no Estado de São Paulo, em relação ao mesmo período de 1998.

Os órgãos policiais que são responsáveis pela segurança pública na forma disciplinada pelo art. 144 da Constituição Federal são objeto de críticas, como se estes fossem responsáveis pelo desemprego, fome, e demais situações de infortúnio vivenciadas pela população.

A criminalidade tem como origem um problema estrutural, que envolve questões relacionadas com fatores sociais, passando pela área de saúde, como falta de vagas nos hospitais e pessoas morrendo a espera de um leito, e da educação, onde a qualidade de ensino nas escolas públicas vem decaindo, e a possibilidade de acesso as faculdades do Estado tem diminuindo, cedendo lugar aos alunos provenientes da rede particular.

Mas, o discurso de lei e ordem acredita que a existência de penas mais severas, e leis que venham ou possam violar os preceitos constitucionais, e ao mesmo tempo o "Pacto de São José da Costa Rica", subscrito pelo Brasil, que possui força de norma constitucional em atendimento ao disciplinado no art. 5.o, parágrafo 2.o da Constituição Federal, podem auxiliar no combate a violência e diminuí-la.

As prisões estão cheias, faltam vagas nos estabelecimentos penais, e o Estado enfrenta dificuldades para ressocializar àqueles que são segregados. A lei existe para ser cumprida, mas isso não significa que se possa abandonar preceitos previstos e disciplinados no art. 5.o da Constituição Federal, que trata dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.

A garantia do Estado democrático de direito, que não deve ser uma ficção, se faz com o respeito a norma fundamental do Estado, e às leis por ele editadas, mesmo que muitas vezes seja preciso enfrentar questões que envolvem críticas ao sistema de direitos outorgados aos acusados em processo judicial, penal perante a Justiça Comum, Federal ou Militar, ou administrativo.

A liberdade é o bem supremo outorgado pelo direito, e a possibilidade do seu cerceamento deve ser analisada com cautela, livre de emoções, ficções ou probabilidades, pois as prisões como vem reconhecendo os estudiosos desde Beccaria, passando por Foucault, ou mais recentemente por Dráusio Varella, não tem sido capaz de ressocializar o indivíduo para o seu retorno à sociedade.

2. Penas Alternativas e Tráfico de Drogas.

A Lei Federal 9.714/98 modificou o art. 44 do Código Penal introduzindo às penas alternativas, restritivas de direito, seguindo o que vem ocorrendo nos demais países que tem buscado a introdução de novas penas, como forma de se evitar a prisão do ser humano, uma vez que as cadeias não conseguem alcançar o objetivo para o qual foram criadas.

A lei sob análise permite ao julgador nos crimes que não sejam praticados com violência, e cuja pena privativa de liberdade não seja superior a 4 (quatro) anos, que este ao invés de aplicar a restritiva de liberdade faça a opção por uma pena restritiva de direitos.

Com base nos dispositivos legais fica a seguinte indagação. Poderia o condenado por crime de tráfico de entorpecentes ter a sua pena privativa de liberdade substituída por uma pena alternativa, como por exemplo uma pena de prestação de serviços a comunidade ?

A Lei, e para isto basta uma leitura imparcial, desprovida de emoções, em nenhum momento fez qualquer restrição aos crimes hediondos, mencionando apenas e tão somente os delitos cometidos com violência ou grave ameaça as pessoas. Ao interpretar à Lei, fica vedado ao intérprete criar situações que por ela não foram previstas. Em nosso sistema deve prevalecer a vontade do legislador, que possui competência e legitimidade para disciplinar as matérias que lhe foram previstas pelo Texto Constitucional.

É importante se observar que o julgador analisa os fatos que lhe são apresentados, em atendimento ao princípio da imparcialidade, e ao princípio do devido processo legal, onde deve ser assegurada a ampla defesa e o contraditório e a igualdade entre defesa e acusação, uma vez que cada processo possui a sua particularidade, daí a expressão em direito "cada caso é um caso".

A realidade das ruas brasileiras é diversa da teoria que possa ser formulada a nível de questionamentos doutrinários, uma vez que existem pessoas nos bairros populares, ou mesmo nas chamadas periferias, envolvidas com o tráfico de drogas não por mera opção, mas porque são obrigadas a participarem desse ilícito, sendo instrumentos nas mãos dos grandes traficantes como observa o Desembargador Zulman Galdino, para não perderem suas vidas, ou mesmo terem suas famílias molestadas.

Quando as pessoas que vivem próximas aos traficantes profissionais se recusavam a participarem do comércio de drogas, estas acabam sendo vítimas muitas vezes fatais, como ocorreu no Estado do Rio de Janeiro, Baixada Fluminense, onde uma equipe vinda da Alemanha se emocionou ao saber que ali toda uma família, pai, mãe e três filhos, foram mortos porque se recusaram a servir aos traficantes locais como vendedores de drogas, fato este noticiado pelo Jornal Nacional, 06 de agosto de 1999.

A respeito da possibilidade ou não de aplicação das penas alternativas ao tráfico ilícito de entorpecentes, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais ao apreciar a apelação n.o 148.427-8, que teve como relator o Desembargador Zulman Galdino decidiu que, "Regularmente processado, foi condenado como incurso somente nas sanções do art. 12 da citada lei, a cumprir pena de três anos de reclusão e 50 dias multa, substituída a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, consistente na prestação de serviços à comunidade por igual período, nos termos do art. 44 do CP, com as modificações introduzidas pela Lei n.o 9.714/98 (...)

O inconformismo referente à substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito não procede. A simples alegação de ser crime hediondo não obsta a substituição da pena. Se o legislador não fez qualquer restrição nesse sentido, não cabe ao intérprete fazê-la. Preenchidos os requisitos legais objetivos e subjetivos, previstos no art. 44 do Código Penal, com as alterações da Lei 9.714/98, nenhum impedimento existe para que a pena privativa de liberdade, no caso do crime de tráfico, seja substituída por restritiva de direitos. (...)

A lei apenas exclui da possibilidade de substituição a pena relativa a crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa, dentre os quais não se insere o tráfico ilícito de entorpecentes. É claro que o verdadeiro traficante, que vive desse pernicioso negócio e busca lucros financeiros sem qualquer pudor é perigoso e causa repugnância a todos. Cabe ao juiz, analisando as condições do art. 59 do CP evitar a impunidade, aplicando a pena adequada e não concedendo o benefício da pena restritiva de direitos àquele que representa risco à sociedade. O pequeno traficante, como o do caso presente, muitas das vezes é usado como instrumento nas mãos dos grandes e poderosos, inobstante a gravidade do delito, não deve ser tratado de igual forma, em razão de trazer menor risco à comunidade.

Também não constitui óbice à referida substituição o fato de o regime de cumprimento de pena ser integralmente fechado (Lei 8.072/90, art. 2.o, parágrafo 1.o). Uma coisa é a substituição de pena, outra, diversa, é sua execução., ou seja, a forma como vai ser cumprida. Conforme entendimento da Súmula n.o 7 da jurisprudência predominante desta 1.a Câmara Criminal : ‘A Lei 8.072/90 não veda a concessão do sursis’. Ora, se é permitida a suspensão condicional da pena em crime hediondo, também não há que se negar sua substituição por pena restritiva de direitos, uma vez que preenchidos os requisitos legais". (TJ/MG, Ap n.o 148.427-8, Itanhandú, 1.CCrim., rel. des. Zulman Galdino, j. 29.06.99 v.u), in Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais n.o 81, agosto/99, p. 377. Grifo nosso.

Portanto, a Lei 9.714/98 poderá ser perfeitamente aplicada pelo juiz, após analisar as condições do art. 59 do Código Penal, ao traficante de entorpecentes, cabendo a este conceder o benefício ao pequeno traficante, que não coloca em risco à sociedade, que na maioria das vezes, como bem observou o Desembargador Zulman Galdino é usado como instrumento nas mãos dos grandes traficantes.

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Notas:

O texto foi originariamente publicado no ano de 1999 na Página pessoal de SERRANO NEVES - http://www.serrano.neves.nom.br/

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