Aplicação do princípio da legalidade na transgressão disciplinar militar
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inc. LIV, prescreve que: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Esta garantia constitucional pressupõe a existência da ampla defesa e do contraditório, e o respeito ao princípio da legalidade para que uma pessoa possa ter o seu ius libertatis cerceado, seja na esfera criminal ou administrativa.
Os militares das Forças Armadas e das Forças Auxiliares (Polícia Militar e Corpo de Bombeiro Militar) no exercício de suas atividades constitucionais ficam sujeitos a dois diplomas pelo cometimento de faltas contrárias ao ordenamento: o Código Penal Militar (CPM) e o Regulamento Disciplinar (RD).
O Código Penal Militar, Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969, foi aprovado pela Junta Militar que substituiu o general Costa e Silva, e traz os crimes militares em tempo de paz e em tempo de guerra, aos quais estão sujeitos os militares das Forças Armadas e Auxiliares. O Regulamento Disciplinar é o diploma castrense que trata das transgressões disciplinares, às quais estão sujeitos os militares, sendo uma norma interna corporis.
No Brasil, cada Força Armada possui o seu regulamento disciplinar que traz suas disposições e particularidades. O mesmo ocorre com as Polícias Militares Estaduais e Corpos de Bombeiros Militares.
Em cada Estado da Federação, as milícias possuem a sua própria organização e, por conseqüência, particularidades que se manifestam em seus diplomas disciplinares.
No Estado de São Paulo, o regulamento disciplinar data de 9 de novembro de 1943, Decreto nº 13.657, que foi posto em vigor pelo interventor paulista nomeado pelo então presidente Getúlio Vargas. Este regulamente nasceu sob a égide de um Estado totalitário e repressivo e continua em vigor, mesmo após a Constituição de 88, e em seu art. 12 traz a definição de transgressão disciplinar como sendo toda violação da disciplina ou da hierarquia passível de sanção administrativa.
A doutrina apoia-se no art. 8º do Regulamento Disciplinar da Aeronáutica, Decreto nº 76.322, de 22 de setembro de 1975, para melhor definir a trangressão disciplinar e diferenciá-la do crime militar. Segundo aquele preceito, transgressão disciplinar é: toda ação ou omissão contrária ao dever militar, e como tal classificada nos termos do presente Regulamento. Distingue-se do crime militar que é ofensa mais grave a esse mesmo dever, segundo o preceituado na legislação penal militar.
Esta definição, em uma primeira análise e devido à ausência de outros elementos, leva à conclusão de que o militar, por suas faltas que não cheguem a constituir crime, estaria sujeito apenas e tão-somente às transgressões previstas de forma taxativa no regulamento a que pertence, respeitando-se desta forma o princípio da legalidade e o due process of law.
Mas, no parágrafo único do art. 10 do estatuto disciplinar mencionado, encontramos a seguinte disposição: São consideradas, também, transgressões militares, as ações ou omissões não especificadas no presente artigo e não qualificadas como crimes nas leis penais militares, contra os Símbolos Nacionais, contra a honra e o pundonor individual militar; contra o decoro da classe, contra os preceitos sociais e as normas da moral; contra os princípios de subordinação, regras e ordens de serviços, estabelecidas nas leis ou regulamentos, ou prescritas por autoridade competente.
Esta norma de caráter geral e abrangente encontra-se reproduzida quase que na íntegra em todos os Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas e das Forças Auxiliares, em flagrante desrespeito ao princípio da legalidade e ao art. 5º, inc. II, da CF.
Parte da doutrina entende, e nesse sentido trazemos à baila os ensinamentos de José da Silva Loureiro Neto, que o ilícito disciplinar, não está sujeito ao princípio da legalidade, pois seus dispositivos são até imprecisos, flexíveis, permitindo à autoridade militar maior discricionariedade no apreciar o comportamento do subordinado, a fim de melhor atender os princípios de oportunidade e conveniência da sanção a ser aplicada, inspirada não só no interesse da disciplina, como também administrativo(1) (grifo nosso).
Deve-se esclarecer que pelo cometimento de uma transgressão disciplinar, dependendo da sua natureza e amplitude (leve, média ou grave), o militar fica sujeito a uma pena de detenção (prisão) até 30 dias, que poderá ser cumprida em regime fechado (xadrez).
Em tema de liberdade, que é um bem sagrado e tutelado pela Constituição Federal, que no art. 5º, caput, assegura que todos são iguais perante a lei, não se pode permitir ou aceitar que normas de caráter geral, que não estavam previamente estipuladas, possam cercear o ius libertatis de uma pessoa, no caso, o militar.
As normas desta espécie previstas nos regulamentos disciplinares castrenses são inconstitucionais, pois permitem a existência do livre arbítrio, que pode levar ao abuso e excesso e poder.
Preleciona Hely Lopes Meirelles que discricionariedade não se confunde com poder arbitrário, sendo liberdade de ação dentro dos limites permitidos em lei(2).
Em nosso ordenamento jurídico, ninguém pode ser punido sem que exista uma lei anterior que defina a conduta, sob pena de violação aos preceitos constitucionais e à Convenção Americana de Direitos Humanos, subscrita pelo Brasil, e recepcionada em nosso ordenamento jurídico por meio de decreto legislativo e decreto emanado do Poder Executivo.
Esta posição é compartilhada por Luiz Flávio Gomes que entende que não existe diferença ontológica entre crime e infração administrativa ou entre sanção penal e sanção administrativa(3).
Assim, para este jurista, todas as garantias do Direito Penal devem valer para as infrações administrativas, e os princípios como os da legalidade, tipicidade, proibição da retroatividade, da analogia, do ne bis in idem, da proporcionalidade, da culpabilidade, etc., valem integralmente inclusive no âmbito administrativo(4).
O Direito Militar, penal ou disciplinar, é um ramo especial da Ciência Jurídica, com princípios e particularidades próprios. Mas, como qualquer outro ramo desta ciência está subordinado aos cânones constitucionais.
Nosso ordenamento jurídico, que segue a tradição da família romano-germânica, não admite que uma norma infraconstitucional se sobreponha ao Texto Fundamental.
Os regulamentos disciplinares foram impostos por meio de decretos federais (Forças Armadas) e estaduais (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares) não podendo se sobrepor à Constituição, em respeito à hierarquia das leis, preconizada pelo jusfilósofo alemão Hans Kelsen.
A Magna Carta consagrou o devido processo legal como sendo a única forma para que uma pessoa possa perder seus bens ou ter a sua liberdade cerceada.
Na transgressão disciplinar, o militar está sujeito a perder sua liberdade, e portanto esta conseqüência somente poderá ser aplicada e considerada válida se respeitar o princípio da reserva legal e o art. 5º, inc. LIV, da CF.
As autoridades administrativas militares ainda não recepcionaram e não aceitaram a questão do princípio da anterioridade da transgressão disciplinar militar, pois entendem que a autoridade deve ter discricionariedade para impor punição aos seus subordinados.
Mas, o respeito à hierarquia e à disciplina não pressupõe o descumprimento dos direitos fundamentais assegurados ao cidadão, uma vez que a Constituição Federal em nenhum momento diferenciou, no tocante às garantias fundamentais disciplinadas no art. 5º, o cidadão militar do cidadão civil, uma vez que o miliciano, antes de estar na caserna foi um dia civil, e após a sua aposentadoria voltará novamente a integrar os quadros da sociedade.
A não observância destes princípios significa o desrespeito às regras do jogo, rules of the game, que em um Estado Democrático de Direito, como observa Luiz Flávio Gomes(5), é previamente estabelecido, e se aplica a todos os cidadãos, sejam eles civis ou militares, tanto na esfera judicial como na administrativa.
O processo administrativo, pós-88, passou a ter todas as garantias previstas para o processo judicial, conforme preceitua o art. 5º, inc. LV, da CF. Com base neste dispositivo, para que a ampla defesa e o contraditório com todos os recursos a ela inerentes possam ser exercidos, é preciso que o acusado tenha conhecimento do ilícito que teria em tese violado, e que este já se encontre previsto em norma anterior de forma específica.
A Constituição Cidadã trouxe modificações, que ainda estão sendo incorporadas gradativamente ao nosso sistema, como ocorreu com a norma do art. 125, § 4º, que já vem sendo aplicada pelo Egrégio Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo(6), mas que recentemente recebeu interpretação diversa do Supremo Tribunal Federal, contrariando precedentes existentes na Corte Constitucional.
Quanto ao princípio da legalidade na transgressão disciplinar militar, este se faz necessário para a efetivação das garantias individuais, e deve ser observado tanto no aspecto judicial ou administrativo em cumprimento à Constituição Federal de 88.
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Notas
(1) Neto, José da Silva Loureiro, Direito Penal Militar, São Paulo, Ed. Atlas, 1993, p. 26.
(2) Meirelles, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 28.
(3) Gomes, Luiz Flávio, Responsabilidade Penal Objetiva e Culpabilidade nos Crimes Contra a Ordem Tributária, RIOBJ nº 11/95, p. 3.
(4) Ob. cit., p. 3
(5) Idem, ibidem.
(6) Tribunal de Justiça Militar, MS nº 080/95, Diário Oficial do Estado, 30 de maio de 1995, C.1, parte II, p. 35.
Boletim IBCCRIM nº 87 - Fevereiro / 2000