Inconstitucionalidade da lei que altera o foro militar

As garantias constitucionais possuem eficácia plena e são asseguradas a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, mesmo aos que estejam de passagem pelo território nacional em atendimento ao disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos - CADH.

A organização judiciária brasileira é tratada na Constituição Federal, que reconhece desde 1934 os juízes e Tribunais militares como órgãos jurisdicionais, o que afasta o caráter de Tribunal de exceção pretendido por alguns, o que não existe no país. Apenas no período de 1937 a 1945, Estado Novo, foi que o Brasil conheceu um Tribunal de exceção que era o Tribunal de Segurança Nacional - T.S.N. Por força de lei, das decisões proferidas pelo Tribunal de Segurança Nacional cabia recurso para o Superior Tribunal Militar - S.T.M, com sede na cidade do Rio de Janeiro.

A competência da Justiça Militar Federal é prevista no art. 124, caput, da CF. Segundo a norma constitucional, "À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei". O Código Penal Militar no art. 9.º define quais são os crimes militares em tempo de paz e em tempo de guerra que devem ser julgados pela Justiça Militar (Federal ou Estadual).

Antes do advento da Lei 9.299/96, os crimes praticados por militares e policiais militares, que são considerados militares estaduais por força do art. 42 da CF, contra a vida de civis eram processados e julgados pela Justiça Militar, que afastava a competência do Tribunal do Júri, por ser o juiz natural nesta espécie de ilícitos.

Para alguns setores a Justiça Castrense é um foro privilegiado onde dificilmente os acusados são condenados a pena privativa de liberdade. Deve-se observar, que esta Justiça Especializada nem mesmo admite a aplicação da Lei n.º 9099/95 sob a alegação de que a hierarquia e a disciplina devem ser preservadas. Antes da Lei dos Juizados Especiais Criminais que sofreu modificações que ferem o disposto no art. 5º, caput, da CF, somente o S.T.F por meio de decisões proferidas em recursos extraordinários reconhecia a possibilidade de aplicação dos benefícios da Lei à Justiça Militar.

Em 1996, o legislador federal no exercício do poder constituinte derivado entendeu que no caso dos crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis estes deveriam ser julgados pela Justiça Comum. Por força do art. 5º, inciso XXXVIII, da CF, o juiz natural para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida é o Tribunal do Júri, que possui soberania em seus veredictos.

Ao invés de modificar o art. 124, caput, da CF, que trata da competência da Justiça Militar Federal e o art. 125, § 4º, da CF, que trata da competência da Justiça Militar Estadual, por meio de Emenda Constitucional, o legislador se limitou a editar uma Lei Federal de aspecto processual objetivando modificar o art. 9º do CPM. As modificações introduzidas pela Lei, que é inconstitucional, não afastaram a competência da Justiça Militar para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis.

O crime de homicídio praticado por militar (federal ou estadual) não deixou de ser crime militar impróprio, que também está previsto no CP comum, mas passou por força de lei a ser julgado pela Justiça Comum, o que contrariou o disposto nas normas constitucionais. Apesar das modificações, o inquérito policial para apurar a autoria e materialidade dessa espécie de ilícitos é o inquérito policial militar que continua sendo da competência da Polícia Judiciária Militar.

As alterações que foram realizadas no Código Penal Militar encontram-se em conflito com as normas constitucionais que tratam das atribuições dos juízes e Tribunais Militares. A Lei Federal pode alterar competência desde que não entre em conflito com dispositivos constitucionais. No caso dos crimes dolosos contra a vida, a competência da Justiça Militar (Federal ou Estadual) somente poderia ter sido alterada por meio de Emenda Constitucional.

O texto constitucional permite que cada órgão do Poder Judiciário (Federal ou Estadual) tenha a sua lei de organização judiciária, que não poderá ultrapassar os limites estabelecidos pelo constituinte originário. A Justiça Eleitoral, por exemplo, não poderá julgar matéria que não esteja prevista nos arts. 118 a 121 da CF. O mesmo ocorre com a Justiça do Trabalho que somente pode processar e julgar as matérias relacionadas com os dissídios individuais e coletivos em atendimento aos arts. 111 a 116 da CF.

O Tribunal do Júri possui competência para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida que sejam da competência da Justiça Comum dos Estados-membros da Federação ou da Justiça Federal. No caso dos crimes dolosos contra a vida previstos no Código Penal Militar em tempo de paz ou de guerra estes devem processados e julgados pela Justiça Militar.

A lei que alterou o foro militar é inconstitucional por ferir o disposto nos arts. 124, caput, e 125, § 4.º, todos da CF. O processo legislativo deve obedecer a hierarquia das leis para se evitar a existência de normas que estejam em conflito com a norma fundamental. O cidadão tem o direito de ser julgado e processado por seu juiz natural que no caso dos delitos previstos no Código Penal Militar é a Justiça Militar (Federal ou Estadual).

O reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei n.º 9.299 de 7 de agosto de 1996 não significa a defesa de privilégios que não existem, mas a busca do efetivo cumprimento do texto constitucional, que é a norma fundamental que assegura a existência do Estado democrático de Direito e a prevalência dos direitos e garantias fundamentais asseguradas a todo brasileiro nato ou naturalizado, civil ou militar, ou estrangeiro residente no país.

Disponível na internet: www.ibccrim.org.br, 04.08.2001