Aplicação do princípio da inocência como garantia constitucional no processo administrativo disciplinar militar
O devido processo legal que deve ser observado no processo-crime e no processo administrativo não se limita apenas a observância do disposto na lei na busca da efetiva aplicação da justiça. Somente em um julgamento onde todas as garantias são asseguradas é que se poderá afirmar que no caso sob análise a Justiça foi feita. A lei é uma das principais conquistas da sociedade no decorrer dos anos, que deve ser respeitada pelo Estado juntamente com a administração pública.
O acusado deve estar em igualdade com a acusação na instrução probatória, caso contrário estará sendo negado o direito ao devido processo legal, e as ordálias ou juízos de valor estarão retomando o seu lugar na história. Essa espécie de prova foi afastada em nome dos princípios que foram defendidos por Beccaria em sua obra "Dos Delitos e das Penas".
A legalidade é um princípio que se aplica a administração pública, art. 37, caput, da C. F, e também a administração pública militar. As normas administrativas militares (decretos, portarias, resoluções e outras) foram recepcionadas pela CF de 1988, mas existem dispositivos (artigos, incisos, alíneas) que não foram recepcionados por contrariarem as garantias estabelecidas no art. 5º, da CF.
A defesa da aplicação do princípio da inocência no direito administrativo militar ainda é uma novidade em uma área em que existe o entendimento segundo o qual a autoridade administrativa militar possui discricionariedade no julgamento dos seus subordinados. Na dúvida, quando da realização de um julgamento administrativo onde o conjunto probatório é deficiente não se aplica o princípio in dubio pro administração, mas o princípio do in dubio pro reo, previsto na Constituição Federal e na Convenção Americana de Direitos Humanos que foi subscrita pelo Brasil. No direito penal, ninguém pode ser condenado sem a existência de provas concretas que demonstrem a autoria e a culpabilidade. O jus libertatis é um direito fundamental do cidadão, não admitindo meras ficções ou suposições para ser cerceado. A prova é feita de forma dialética, devendo existir igualdade entre defesa e acusação na busca da verdade dos fatos. No campo disciplinar assim como ocorre no direito penal vige o princípio da verdade real, e não formal, como ocorre no processo civil.
O direito administrativo militar é um ramo autônomo do direito, possuindo seus próprios fundamentos e princípios, mas estes possuem estreitas relações com o direito penal, sendo que muitas faltas administrativas podem levar a um processo crime perante as auditorias militares. O militar que cometer uma transgressão disciplinar poderá ter o seu jus libertatis cerceado por até 30 dias em regime fechado, devendo permanecer no quartel até o cumprimento da punição.
No processo administrativo, a prova da acusação é feita pelo próprio órgão julgador, o que lhe retira a imparcialidade necessária para a realização da Justiça. Para aplicação do devido processo legal seria necessária a instituição da figura do oficial acusador que ficaria responsável pela colheita dos elementos de prova, o que permitiria ao oficial julgador ter isenção no momento do julgamento.
No curso da instrução probatória, pode ocorrer a dúvida quanto aos depoimentos colhidos que não levam a certeza da autoria ou materialidade da transgressão disciplinar, o que não autoriza a prolação de um seguro decreto condenatório. A transgressão disciplinar exige a comprovação da autoria e materialidade, sob pena de se estar praticando excesso ou até mesmo uma arbitrariedade. A manutenção da hierarquia e da disciplina deve ser feita em conformidade com os princípios da legalidade e do devido processo legal, para que o Estado democrático de Direito não seja violado.
A ausência de provas seguras ou de elementos que possam demonstrar que o acusado tenha violado o disposto no regulamento disciplinar leva a sua absolvição com fundamento no princípio da inocência, afastando-se o entendimento segundo o qual no direito administrativo militar vige o princípio in dubio pro administração, que foi revogado a partir de 05 de outubro de 1988.
A Constituição Federal no art. 5.º, inciso LVII, diz que, "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Deve-se observar, que o art. 5.º, inciso LV, preceitua que, "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Com fundamento nos dispositivos constitucionais fica evidenciado que o princípio da inocência é aplicável ao direito administrativo militar. A ampla defesa e contraditório pressupõem o respeito ao princípio do devido processo legal, no qual se encontra inserido o princípio da inocência. As questões administrativas que envolvem punições (sanções) não são mais meros procedimentos mas processos. A C.F igualou o processo judicial e o administrativo e assegurou as mesmas garantias processuais e constitucionais aos litigantes em questões administrativas (civis ou militares).
A autoridade administrativa militar (federal ou estadual) deve atuar com imparcialidade nos processos sujeitos a seus julgamentos, e quando esta verificar que o conjunto probatório estampado nos autos é deficiente deve entender pela absolvição do militar. A precariedade do conjunto probatório deve levar a absolvição do acusado para se evitar que este passe por humilhações e constrangimentos de difícil reparação, que poderão deixar suas marcas mesmo quando superados, podendo se refletir nos serviços prestados pelo militar à população, que é o consumidor final do produto de segurança pública e segurança nacional.
Devido a estrutura adotada nos processos administrativos militares, onde existe uma mistura entre a figura do acusador e a do julgador, fica difícil para a autoridade administrativa entender pela absolvição do acusado com fundamento no princípio da inocência. Além disso, em muitos casos, ainda existe uma confusão entre discricionariedade e arbitrariedade. A primeira fica sujeita ao princípio da legalidade e da moralidade previstos no art. 37, caput, da CF. A liberdade do administrador deve se pautar pelo respeito à lei, porque este foi o sistema adotado por nosso país. Para se evitar possíveis arbitrariedades no campo administrativo militar se faz necessário a edição de uma lei que trate dos princípios e normas que devem ser observadas nos julgamentos aos quais ficam sujeitos os militares (federais ou estaduais).
O princípio da inocência é uma realidade do processo administrativo militar e deve ser aplicado pelo administrador quando o conjunto probatório for deficiente e impeça a prolação de um seguro decreto condenatório. A justiça é elemento essencial de qualquer instituição, pois somente com a observância do devido processo legal e das garantias constitucionais é que se pode alcançar os objetivos do Estado democrático de Direito. O respeito à lei em todos os seus aspectos é condição essencial para a construção de uma sociedade melhor, justa, fraterna e livre da violência e das desigualdades sociais.
Nota:
O texto foi originariamente publicado no Site do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais no ano de 2002 e inserido neste site em 01 IV 2007.
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