A hermenêutica testamentária

A autora analisa a importância de se interpretar adequadamente os testamentos e as tormentosas questões suscitadas quer pela doutrina quer pela jurisprudência e, ainda faz uma correlação com o Novo codex Civil.

Gisele Leite

Como interpretar os testamentos? Precisamos lembrar que o testamento é a derradeira manifestação de vontade do testador, de caráter patrimonial ou pessoal que pode total ou parcialmente decretar o destino da massa hereditária.

Como bem salienta Ney de Mello Almada: “ ato mediante o qual se materializa uma atribuição do bens, tanto pela instituição de herdeiro como através de legado, ou exclusivamente, por uma ou por outra (...).”

Predomina assim o seu aspecto dispositivo que corresponde a tônica de sua definição legal(art. 1.626CC e art. 1.857 caput e art. 1.858 do NCC)e ressalta a importância da hermenêutica testamentária.

Entre as disposições patrimoniais testamentárias deixam-se: a instituição de herdeiro ou legatário, o pagamento de obrigações, o gravame de bens deixados, a deserdação , o perdão à indignidade.

Já as disposições de caráter pessoal são: a nomeação de tutor, o reconhecimento de filho, à educação ou profissionalização de filho ou de legatário, as recomendações quanto atos funerais e o destino de corpo ou parte dele, entre outras.

Não se admite quaisquer disposições outras que se encontrem materialmente fora do corpo testamental, mesmo que em documento autêntico e mencionado expressamente.

Tais disposições são tidas como não-escritas e não integram e nem complementam as disposições testamentárias.

Também as de caráter ilícito, não prosperam ou mesmo as imorais. Ensina Caio Mário da Silva Pereira que não produzem efeito as cláusulas derrogativas ou derrogatórias(pelas quais o testador de qualquer forma, direta ou indireta, contraria o princípio da revogalibilidade dos testamentos ou dispensa suas formalidades) são, portanto, nulas de pleno direito. Ademais pois são preceitos de ordem pública inderrogáveis pelas partes.

A instituição de herdeiro é apontada pelos vários doutrinadores com um típico habitat do testamento, prova da eficácia da vontade humana post mortem, pois que, por intermédio do testamento pode afastar, neutralizar ou minimizar a sucessão legítima, fadando outro destino ao acervo hereditário.

A instituição de herdeiros poderá ocorrer de forma simples e pura, ou seja, sem qualquer imposição de cláusula, admitindo a eficácia da vontade do testador logo no instante da abertura da sucessão(do óbito do testador).

Também poderá ocorrer a instituição condicional, isto é, deixando a nomeação de herdeiro ou legatário condicionada à ocorrência de evento futuro e incerto, quer seja para operar o início da vigência(condição suspensiva) ou para delimitar-lhe o término(condição resolutiva).

Poderá ainda ocorrer a instituição de herdeiro de maneira modal ou com encargo, onde a nomeação de herdeiro ou legatário estará atrelada ao cumprimento de uma contraprestação exigida pelo testador, e, finalmente, que possa se dar a referida nomeação em razão de certa causa, efetiva razão de sua determinação.

O herdeiro instituído ou legatário que aceitarem a deixa testamentária modal, são pois, obrigados ao cumprimento do referido encargo, bem como a prestar a caução muciana, se a exigirem os interessados no cumprimento de tal encargo.

Se não houver a estipulação de prazo para o referido cumprimento do encargo, este poderá ser exigido a qualquer tempo pelo interessado, desde que respeitando a possibilidade financeira do beneficiado.

Se sobreviver,sem culpa do instituído, a impossibilidade jurídica do cumprimento do encargo, não ocorrerá a invalidade da disposição testamentária, mas ao revés, permanecerá válida como livre de determinação acessória, isentando-se o beneficiado do mencionado encargo.

Não se deve confundir modo ou encargo com nudum praeceptum(que é uma simples recomendação) sem relevância jurídica, ao passo que o modo ou encargo é uma limitação imposta à liberalidade, quer por se dar destino a seu objeto, quer por se impor ao beneficiário uma contraprestação.

Deixará de valer a disposição testamentária que estipular encargo ilícito, o que a converterá fatalmente como uma disposição testamentária pura e simples.

A inadimplência do encargo é tema polêmico em doutrina, uma vez que o Código Civil Brasileiro vigente não dispôs especificamente as conseqüências diante do descumprimento acarretaria a resolução da disposição de última vontade.

A única menção na lei codificada cível é no caso das doações onerosas(art. 1.181CC) analogicamente relativo a tais disposições testamentárias, cujo encargo não tenha sido cumprido.

A doutrina majoritária firma entendimento no sentido da permanência eficacial do direito do herdeiro ou do legatário, ainda que descumprido o encargo estipulado.

A não execução do encargo apenas torna a liberalidade anulável. Desta forma, tal inadimplência deverá ser argüida pelos interessados através da ação própria declaratória da ineficácia da referida disposição testamentária, a fim de se promover o deslocamento dos bens da herança ou do legado, em virtude de sentença judicial e passem a quem de direito couber.

Resolve-se a disposição quando esta expressamente menciona que o inadimplemento do encargo acarreta pelo iuris a resolução do direito hereditário ou do legatário.

Pode haver disposição testamentária motivada ou por certa causa(via de regra, como forma de agradecimento ou mesmo de homenagem).

Apesar da relevante rejeição de boa parte da doutrina quanto às disposições restritivas a lei admitem-nas.

É comum o autor da herança imponha cláusulas prescrevendo inalienabilidade ou incomunicabilidade dos bens que comporão o quinhão hereditário de seus herdeiros.

Principalmente quando tais regras restritivas dirigem-se a legítima pois que pertence de pleno direito aos herdeiros necessários ou também denominados de reservatários, devendo passar nas mesmas condições em que encontravam com o autor da herança.

Eis porquê constituem a reserva inalterável, os bens da legítima, tal como se achavam no patrimônio do defunto.

É evidente que o art. 1.676 CC expressamente admite as restritivas como a de inalienabilidade temporária ou vitalícia, constituindo gravame aos bens do acervo e, impedindo sua alienação.

Com poucas exceções como a desapropriação, a execução de dívidas oriundas do não-pagamento de impostos incidentes sobre os mesmos imóveis.

A inalienabilidade vitalícia não quer dizer perpétua, valendo por toda a vida do herdeiro, ou legatário. Desta forma, com a morte do herdeiro ou do legatário que sofre a restrição faz com que o gravame deixe de existir...

E, assim os bens serão transmitidos aos seus sucessores sem qualquer limitação. A proibição de alienar, só diz respeito às alienações inter vivos, podendo quem recebeu tal bem, testar livremente sobre tais bens.

Enquanto que a inalienabilidade temporária apresenta-se como restrição que cessa ou pode cessar com o decurso de tempo. Seja por advento de condição ou termo e trarão para o beneficiário por conseqüência, a faculdade de livre disposição de bem.

Também é aceita a incomunicabilidade a respeito de certos bens da herança(o que alguns nomeiam de inalienabilidade parcial).

Se a proibição de alienação, de todos ou certos bens da herança, não se estender a todas as pessoas, indistintamente, tratar-se-á de inalienabilidade relativa.Caso contrário, será inalienabilidade absoluta.

Tal cerceamento ao exercício voluntário do direito de disposição do bem pode por autorização legal advinda do art. 1.676, 2 ª parte do CC, encontrar seu termo final com as hipóteses de desapropriação ou execução por dívidas da Fazenda Pública.

O art. 1.677 CC dispõe sobre a obrigatoriedade da sub-rogação no caso de desapropriação, que se dará no preço pago pelo expropriante.

A outra possibilidade de alienação de vens gravados por via causa mortis, é prevista pelo Decreto-Lei 6.777/44 que autoriza mediante prova de premente necessidade , a sub-rogação mediante permuta com outros bens livres, como bens imóveis ou apólices da dívida pública.

Também outras restrições podem existir por força do art. 1.723 CC e 1.848NCC. A cláusula de incomunicabilidade consiste ela em impedir que integrem estabelecida pelo casamento.

A cláusula de administração poderá determinar que os bens da legítima podem ser confiados à administração exclusiva de mulher herdeira. E em geral,acompanha a cláusula de incomunicabilidade, o que não significa, a supressão da outorga marital quando se tratar de herdeira casada no momento de alienação de bens imóveis.

Prevalece o preceito geral que obriga à outorga conjugal para as alienações feitas por um dos cônjuges, inerente ao regime matrimonial(arts. 235, I e art. 242 I e II CC).

A cláusula de conversão(art. 1.723CC) diz respeito à autorização que a lei concede ao testador de interferir no assegurado direito dos herdeiros necessários à legitima, permitindo que sejam tais bens convertidos em bens de outra espécie.

Alguns doutrinadores julgam a cláusula de conversão, taxando-a, de absurda por alterar o princípio da legítima(por ser parte reservada sobre os bens da massa hereditária) e, daí, deveria guardar identidade específica.

Outros doutrinadores, no entanto, ratificam tal faculdade concedida pela lei ao autor da herança, sob a alegação de que a reserva legitimária deve existir em função do espólio, resguardando sua identidade apenas valorativa.

O valor da legítima não poderá ser diminuído sob nenhuma hipótese, ainda que ocorra a conversão determinada pelo testador, dos bens originais em outros.

A conversão só poderá ser eficaz no interesse dos herdeiros, sem causar prejuízo, dano ou diminuição dos direitos destes sucessores.

A cláusula de impenhorabilidade registrando que o gravame com o escopo de excluir certos bens da possibilidade de penhora.A lei determina(art. 649 I CPC) serem absolutamente impenhoráveis os bens que são também inalienáveis.

Humberto Theodoro Junior esclarece que “a inalienabilidade de um bem, seja ela convencional ou legal, o exclui do campo de incidência da responsabilidade patrimonial do devedor”.

A cláusula de impenhorabilidade pode ser instituída independentemente da cláusula de inalienabilidade. A Súmula 49 do STF que expressa claramente: “A cláusula de inalienabilidade inclui a incomunicabilidade dos bens”.

Toda vez que o testador dispuser além da sua quota disponível faz-se necessária a redução, pois a disposição abusiva excessiva não invalida o testamento.

O escopo é proteger e valorizar a legítima. Se o testador dispuser em limite inferior à sua cota disponível, o percentual remanescente integra a cota legítima dos herdeiros necessários.

Qualquer desequilíbrio entre a legítima e a quota testamentária que afetam a legítima são contrários à lei, mas não causa a anulação do testamento, permanecendo este válido.

Será ajustado com a redução das disposição testamentária, será pro rata art. 1.717 , parágrafo primeiro do CC. Já o parágrafo segundo dispõe que o testador , se quiser, poderá prevenir a ocorrência do desequilíbrio, predeterminando que eventuais reduções, se necessárias, processar-se-ão , primeiro, na quota de certos herdeiros ou certos legatários.

Sua vontade será respeitada, operando-se na ordem d lei, isto é, primeiro na cota dos herdeiros indicados e, depois se ainda necessários, na quota dos legatários.

O art. 1.728 Cce art. 1.968 NCC que recaiam sobre um prédio, sendo bem divisível, far-se-á a redução proporcionalmente, sem maiores dificuldades.

Se indivisível distintas são as soluções oferecidas pelo primeiro parágrafo do art. 1.728 CC , a saber:

a)se o excesso for maior que ¼ do valor do prédio, o legatário deverá devolvê-lo ao espólio, ficando com o direito de pedir aos herdeiros o valor do legado, que couber na metade disponível.

b) se o excesso não for maior que ¼ (um quarto) do valor do prédio, neste caso, então o legatário ficará com ele, obrigando-se a repor, a favor dos herdeiros, e em dinheiro, a parte excedente.

O segundo parágrafo do art. 1.728 CC ainda prevê a hipótese de se reunir na mesma pessoa(a qualidade jurídica de legatário e de herdeiro necessário) em caso de legado excedente, neste caso, poderá este inteirar a sua legítima no mesmo imóvel, de preferência aos outros, sempre que ela e a parte subsistente do legado lhe absorverem o valor.

È nula a doação quanto à parte que exceder aquela de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.

Se a doação tiver sido feita a descendente que venha a suceder o doador, não se opera a redução na parte oficiosa por ser caso de colação(considerando-se como adiantamento da legítima, até que os quinhões restem nivelados pelo pagamento aos prejudicados da diferença entre as quotas).

Esclarece o Novo Codex Civil em seu art. 1.911 que a cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade, dirimindo uma antiga polêmica.

Ainda seu parágrafo único anuncia que será permitida mediante autorização judicial, a alienação de bens clausulados, se esta for a conveniência econômica do herdeiro.

A colação não se confunde com a redução das doações pois que esta tem como fim fazer que as liberalidades se contenham dentro da metade disponível do doador, quer beneficie algum herdeiro não descendente, quer favoreça um estranho, sendo de ordem pública.

A colação assenta-se teoricamente na vontade presumida do falecido. A inoficiosidade da doação é auferida, portanto, pelo valor dos bens apurado no momento da liberalidade(art. 1.176 CC e art. 549 NCC).

O próprio CC em seu arts. 1.664 estabelece as normas básicas de interpretação, determinando que prevaleça sempre a vontade do testador.

Outro princípio básico é o do favor testamenti que implica na defesa do testamento, in dubio pro testamento.

Se houver disposições contraditórias ou pouco precisas, o intérprete deverá tentar salvar as idéias básicas do testamento. Somente o princípio da defesa do testamento é que explica o extremo rigor da lei e a severidade da jurisprudência em matéria de nulidade testamentária.

Admite-se que valha a disposição em favor de pessoa incerta que deva ser determinada por terceiro, dentro dois ou mais pessoas mencionadas pelo testador, ou pertencentes a uma família ou a um corpo coletivo, ou a um estabelecimento por ele designado.

Considera-se ainda válida a disposição para os pobres em geral conforme ao art. 1.669CC.As nulidades testamentárias prendem-se a falta de capacidade ativa ou passiva do agente(incapacidade para testar ou para receber em virtude de testamento de determinada pessoa), ausência de forma prescrita, objeto ilícito ou vícios da vontade em geral(erro, dolo, coação, simulação).

Pode ser a nulidade do instrumento ou de qualquer das cláusulas. A invalidade só pode ser argüida com prova capaz e perfeita(STF-RE 66.610, RTJ 52/50).

As cláusulas não viciadas são mantidas e em atenção ao princípio de defesa do testamento anula-se o menos possível.

Para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade do testamento, o interessado deverá citar o testamenteiro, se ainda não tiver herdeiros e legatários, por haver evidente interesse por parte dos mesmos. Ainda que antes da partilha, é, aliás, conveniente a citação de todos os interessados.

“Não se exige o rigor das fórmulas, porém, requer-se o mínimo indispensável à validade do ato.”(STF-RE 81.458; RTJ 75/954).

Em síntese as regras interpretativas do testamento deverá ater-se mais à vontade e intenção do testador do que ao sentido literal da linguagem empregada. Aliás, Trabucchi inclusive aconselha desprezar o sentido técnico-jurídico das palavras que foram utilizadas.

Deve-se averiguar a mens testanes atendendo-se a redação do conteúdo testamentário e ainda o seu real significado. Os romanos já diziam: “In testamentis plenius voluntates testamentum interpretantur.”

Trata-se da regra voluntas spectanda, resultante do fato de ser o testamento uma liberalidade e um negócio jurídico mortis causa. Tal princípio requer a determinação precisa e verdadeira intenção do testamento, fazendo que o sentido subjetivo prevaleça sobre o objetivo e reforça tal entendimento Grampiccolo.

Pontes de Miranda já apontava a dificuldade de tal tarefa, “deve-se descobrir o que o declarante quis dizer, enfim atingir a vontade real e não a declarada ”.

Se houver obscuridade no texto testamentário, deve-se considerar as máximas de experiência e as valorações pessoais do testador, como também sua situação sócia-econômica.

Se a cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegurar a observância da real vontade do testador(art. 1.899NCC).

Como já dizia sabiamente Teixeira de Freitas ”os testadores são legisladores” segundo a orientação da Lei das XII Tábuas(diga o testador e o que disser é lei).

Gisele Leite

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 10/02/2007
Código do texto: T376767
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