Habeaus corpus: um direito ou dever?
A construção de um Estado de Direito exige o respeito às garantias fundamentais do cidadão, que são essenciais para o desenvolvimento da sociedade, e o fortalecimento das Instituições. Quando da promulgação da nova Constituição Federal, os representantes do povo buscaram instituir um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (preâmbulo da Constituição Federal de 1988).
A liberdade é um direito fundamental e essencial, que somente pode ser cerceado no caso de prisão em flagrante, ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, não se permitindo prisões para averiguações, ou qualquer outra espécie de procedimento que não esteja previsto em lei. No Estado de Direito, a liberdade é a regra, e a prisão, uma medida de exceção, que poderá ser decretada com o preenchimentos dos requisitos legais.
A preservação da ordem pública é dever do Estado, que deve zelar pela integridade física e patrimonial dos administrados, sob pena de responsabilidade. No cumprimento desta atividade, o Estado utiliza as forças policiais, que estão legitimadas a empregar a força quando esta for necessária para o restabelecimento da paz, e da tranqüilidade, sem que isso signifique a prática de atos abusivos, ou autoritários, contra qualquer pessoa. As garantias do cidadão não estão voltadas para a impunidade, mas para a efetiva aplicação da lei com justiça e eqüidade.
A prisão de uma pessoa não significa necessariamente que esta tenha praticado um ato ilícito que terá como conseqüência a imposição de uma penalidade. A privação da liberdade poderá ter sido um ato ilegal praticado por integrantes das forças policiais, ou mesmo por um cidadão, sendo que a lei prevê a possibilidade desta prisão ser relaxada, ou mesmo afastada. O art. 5o, inciso LXV, da CF, prevê que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”.
No caso de prisão ilegal ou abusiva, desprovida de fundamento para o cerceamento da liberdade, a CF prevê a possibilidade de interposição de habeas corpus, que é uma garantia constitucional, podendo ser pleiteada, por qualquer pessoa. O art. 5o, LXVIII, da CF dispõe que, conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Em nenhum momento, o art. 5o, LXVIII, faz qualquer ressalva em relação aos brasileiros naturalizados, estrangeiros, ou militares.
O art. 5º, caput, da CF, preceitua que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Novamente, a CF não faz nenhuma ressalva quanto à igualdade prevista no art. 5o, caput, em relação aos militares (federais ou estaduais), que também são cidadãos, e responsáveis pela preservação do Estado de Direito.
O regime jurídico dos servidores militares é diverso do regime jurídico assegurado aos servidores civis, que atualmente são regidos pela Lei Federal nº 8.112/90. No campo do direito administrativo militar, existe a possibilidade de o militar ter a sua prisão administrativa decretada por uma autoridade militar sem qualquer autorização judicial neste sentido. O art. 5º, inciso LXI, dispõe que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.
A possibilidade da prisão administrativa ser decretada sem qualquer autorização judicial não significa que o militar tenha perdido o seu status de cidadão, ou que os direitos e garantias fundamentais assegurados pela CF perderam a sua eficácia. O Estado apenas concedeu a possibilidade de cerceamento da liberdade por ato de autoridade diversa da autoridade judiciária nos casos expressamente previstos em lei como crime militar, ou transgressão disciplinar militar.
Deve-se observar que a maioria dos regulamentos disciplinares das forças de segurança são decretos do poder executivo (estadual ou federal) que em tese foram recepcionados pela nova ordem constitucional. Mas qualquer alteração nos diplomas castrenses somente poderá ser realizada por meio de lei provinda do Poder Legislativo, o que não tem sido observado na atualidade, o que torna ilegal qualquer modificação pós-1988 feita por decreto.
A prisão administrativa encontra-se sujeita a controle jurisdicional em atendimento ao art. 5º, inciso XXXV, da CF, segundo o qual a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. O militar preso sob a acusação de ter praticado uma transgressão disciplinar, ou contravenção militar, poderá, caso esta seja abusiva, interpor habeas corpus, na forma do art. 5o, inciso LXVIII, da CF.
O art. 5o, § 2o, da CF, preceitua expressamente que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes de tratados de que a República Federativa do Brasil seja parte. Por meio de decreto legislativo e decreto provindo do Poder Executivo, o Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos-CADH, Pacto de São José da Costa Rica, que passou a ser norma interna de conteúdo constitucional, por tratar de direitos e garantias fundamentais assegurados aos cidadãos da América, que deve ser observada pelos operadores do direito.
O art. 7o, no 6, da CADH, preceitua que toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a prisão ou detenção forem ilegais.
Nos Estados Partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa. Em nenhum momento, a Convenção Americana de Direitos Humanos fez qualquer distinção entre o cidadão civil ou militar, ou mesmo vedou a possibilidade de interposição de habeas corpus nas transgressões disciplinares militares.
A preocupação do Congresso Constituinte com os direitos e garantias fundamentais do cidadão, enumerados no art. 5o, da CF, foi tamanha que, no art. 60, § 4o, inciso IV, elaborou restrições em caso de Emendas Constitucionais, observando que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV – os direitos e garantias individuais. Por mais que o legislador derivado queira modificar as garantias constitucionais previstas no art. 5o, da CF, terá que respeitar a vontade manifestada pelo povo através de seus representantes em 1988, por ser esta matéria integrante das denominadas cláusulas pétreas.
Para fundamentar o não-cabimento de habeas corpus nas transgressões disciplinares, parte da doutrina apóia-se no art. 142, § 2o, da CF, que integra o Capítulo II, da Seção III, do seu Título V, que trata da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, segundo o qual não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares. Esse dispositivo está flagrantemente em conflito com o art. 5o, inciso LXVIII, da CF, e com o art. 7o, no 6, da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Os militares, por força de disposições regulamentares, encontram-se sujeitos aos princípios de hierarquia e disciplina, mas isso não significa que os direitos e garantias fundamentais possam ser desrespeitados. As instituições, no Estado de Direito, devem se submeter aos princípios que regem os direitos e garantias dos cidadãos, os quais são preservados pelo Estado, sob pena de responsabilidade, em atendimento ao art. 37, § 6o, da CF.
A vedação de cabimento de habeas corpus prevista no art. 142, § 2o, da CF, por mais que se conteste, fere flagrantemente o disposto no art. 5o, inciso LXVIII, da própria CF. Caso fosse a intenção do constituinte limitar o seu cabimento nas transgressões disciplinares, tê-lo-ia feito expressamente no capítulo dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, o que não ocorreu.
O militar que se sinta constrangido em seu direito de ir e vir está legitimado a interpor habeas corpus, que é uma garantia assegurada a todos os brasileiros, e até mesmo aos estrangeiros residentes no país, ou que estejam de passagem pelo território nacional, em atendimento às regras da Convenção Americana de Direitos Humanos, e da Declaração Universal de Direitos do Homem, ONU.
Em outros países, o cabimento de habeas corpus nas transgressões disciplinares é uma medida prevista expressamente como direito dos militares, que são os responsáveis pela manutenção da ordem pública, da segurança externa e da soberania nacional.
A Constituição da República de Portugal, promulgada no dia 2 de abril, de 1976, no art. 31o, no 1, preceitua que caberá habeas corpus contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal, a interpor perante o tribunal judicial ou militar consoante os casos.
O militar português tem expressamente assegurado o direito de propor perante o Tribunal Militar o pedido de habeas corpus contra prisão ou detenção ilegal decorrente de transgressão disciplinar, que será apreciado pela autoridade judiciária competente, na forma das leis de organização judiciária.
No Brasil, o militar que sofra abuso ou ilegalidade no seu direito de ir e vir, decorrente de prisão pela prática, em tese, de transgressão disciplinar militar, poderá propor perante o Tribunal Militar competente ação constitucional de habeas corpus, inclusive com pedido de concessão de medida liminar.
Os Juízes-Auditores da Justiça Militar da União, ou dos Estados, não possuem competência para conhecer do pedido de habeas corpus. Se a autoridade coatora for militar federal, o pedido deverá ser distribuído diretamente ao Superior Tribunal Militar – STM, que possui competência originária para apreciar a matéria conforme a Lei de Organização Judiciária. Caso a autoridade coatora seja militar estadual, o pedido deverá, nos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, ser distribuído ao Tribunal de Justiça Militar – TJM; nos demais Estados, ao Tribunal de Justiça, que, se possuir Câmara Especializada, a esta remeterá o pedido para julgamento.
A hierarquia e a disciplina devem ser preservadas por serem princípios essenciais das Corporações Militares, mas os direitos e as garantias fundamentais previstos no art. 5º, da CF, são normas de aplicação imediata (art. 5o, § 1o, da CF), que devem ser asseguradas a todos os cidadãos (civis ou militares, brasileiros ou estrangeiros), sem qualquer distinção, na busca do fortalecimento do Estado de Direito.
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