AÇÃO POPULAR, TUTELA DO AMBIENTE NATURAL NA OMISSÃO ESTATAL E DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

AÇÃO POPULAR, TUTELA DO AMBIENTE NATURAL NA OMISSÃO ESTATAL E DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

A Constituição Federal de 1988, imbuída de notável espírito democrático, busca estabelecer mecanismos de participação direta dos cidadãos na vida política, com particular destaque para o plebiscito, referendo e iniciativa popular de projetos de lei.

Restaram estatuídos, outrossim, mecanismos corretivos de ilegais atos ou omissões perpetrados por agentes públicos, ou por particulares em prejuízo a bens ou direitos merecedores de particular proteção.

Nessa senda, merece especial destaque a ação popular, prevista no artigo 5º, LXIII, in verbis:

"qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência."

Trata-se, contudo, de mecanismo judicial subutilizado, especialmente em face de atos omissivos, ou empregado com manifesto desvio de finalidade, sob os auspícios de entidades partidárias, com o fito de prejudicar certos e determinados sujeitos, denegrindo sua imagem pública, muitas vezes com irremediáveis prejuízos.

Especialmente em matéria ambiental, e mais especificamente no que diz respeito às omissões estatais lesivas ao interesse tutelado, as dificuldades de manejo da ação popular se tornam ainda mais marcantes.

Não sem razão, cumpre, de pronto, a realização de adequado exame exegético. A partícula ato lesivo, empregada pelo Texto Magno, deve abarcar não apenas atos comissivos, mas também omissões que se revelem lesivas ao patrimônio público e a outros bens jurídicos tutelados pela actio. Com efeito, somente desta forma estar-se-á dispensando eficaz proteção ao interesse jurídico tutelado.

Leciona Hely Lopes Meirelles que a ação popular pode ter finalidade corretiva da atividade administrativa ou supletiva da inatividade do Poder Público nos casos em que devia agir por expressa imposição legal. Arma-se, assim, o cidadão para corrigir a atividade comissiva da Administração, como para obrigá-la a atuar, quando sua omissão também redunde em lesão ao patrimônio público (Mandado de Segurança, São Paulo, Malheiros, 20ª ed., p. 123).

A correta interpretação de uma norma jurídica é, por certo, aquela que leva em consideração a necessidade de se efetivar, adequadamente, o direito tutelado, para além das expressões gramaticais utilizadas no texto.

Com a perfeição que lhe fez ímpar, Pontes de Miranda explana:

"Na interpretação das regras jurídicas gerais da Constituição, deve-se procurar, de antemão, saber qual o interesse que o texto tem por fito proteger. É o ponto mais rijo, mais sólido; é o conceito central, em que se há de apoiar a investigação exegética. Com isso não se proscreve a exploração lógica. Só se tem de adotar critério de interpretação restritiva quando haja, na própria regra jurídica ou noutra, outro interesse que passe à frente. Por isso, é erro dizer-se que as regras jurídicas constitucionais se interpretam sempre com restrição. De regra, o procedimento do intérprete obedece a outras sugestões, e é acertado que se formule do seguinte modo: se há mais de uma interpretação da mesma regra jurídica inserta na Constituição, tem de preferir-se aquela que lhe insufle a mais ampla extensão jurídica; e o mesmo vale dizer-se quando há mais de uma interpretação de que sejam suscetíveis duas ou mais regras jurídicas consideradas em conjunto, o de que seja suscetível proposição extraída, segundo os princípios, de duas ou mais regras. A restrição, portanto, é excepcional."

(Comentários à Constituição de 1967 com Emenda nº 1 de 1969, 3ª ed. Forense, Rio de Janeiro, 1987, t. I, p. 302, n. 14).

Rememore-se, ainda, a dicção do ilustrado Ministro Hannemann Guimarães:

"Não se deve, entretanto, na interpretação da lei, observar estritamente a sua letra. A melhor interpretação, a melhor forma de interpretar a lei não é, sem dúvida, a gramatical. A lei deve ser interpretada pelo seu fim, pela sua finalidade. A melhor interpretação da lei é, certamente, a que tem em mira o fim da lei, é a interpretação teleológica."

(Revista Forense, v.127/397).

Outro óbice reside na, não raro indevida, valorização dispensada pela jurisprudência à discricionariedade administrativa.

Sucede, contudo, que discricionariedade somente existe dentro das balizas legal e constitucionalmente estabelecidas, sob pena de converter-se em indevida arbitrariedade. Muito bem salienta Celso Antônio Bandeira de Mello que discricionariedade é liberdade dentro da lei, nos limites da norma legal. Não se deve confundir discricionariedade e arbitrariedade, eis que, ao extrapolar o autorizativo legal, está o agente agredindo a ordem jurídica (Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Malheiros, 13ª edição, p. 385).

Desta forma, deixando o ente estatal de adotar as necessárias providências na tutela do ambiente natural, pode o cidadão compeli-lo a atuar, desde que a medida pleiteada, por evidente, encontre respaldo legal. Verbi gratia, compelir a entidade competente a exercitar o poder de polícia administrativa em relação à observância das limitações decorrentes da caracterização de áreas como de preservação permanente ou reserva legal.

Há, na espécie, conflito aparente entre valores constitucionalmente estatuídos, quais sejam, a separação e independência entre os poderes e o direito ao meio ambiente equilibrado. A exegese compatibilizadora há de, necessariamente, ser feita à luz da máxima efetividade constitucional na promoção dos direitos fundamentais.

Assim, embora de rara ocorrência na praxe forense, na medida em que traça o autor popular verdadeira luta contra o poderoso Leviatã estatal, sem proveito pessoal direto, mas apenas dispêndio financeiro e desgaste pessoal, há de ser valorizada a ação popular ambiental, seja em face de atos omissivos ou comissivos. Buscou a respeito, a Carta Constitucional, ampliar a atuação do cidadão, não mais limitado ao papel de votante, mas transformado em agente ativo da vida política (na acepção própria do termo), dotado, inclusive, da faculdade de impugnar a atuação estatal que venha a malferir o interesse público.

Lançada fica a semente. O poder emana do povo; munido está o cidadão de mecanismo próprio para zelar pelo adequado agir estatal, a ação popular. Cumpre-nos romper com o paradigma inerte da cidadania (mero exercício do voto) em prol de uma atuação cidadã ativa, que traga ao exame do Poder Judiciário - guardião último do zelo pela Constituição e leis - as manifestações estatais que, por ação ou omissão, representem ofensa às garantias de proteção ao meio ambiente, patrimônio não apenas da presente, mas também das futuras gerações, como assegurado pela Constituição Federal em seu art. 225, caput.

Coloco-me à disposição para discussões e críticas, todas muito bem vindas, pelo endereço eletrônico alexandre-piccoli@uol.com.br.