CONTOS DE MACHADO DE ASSIS: O CASO DA VARA, HISTÓRIA DE UMA LÁGRIMA e JOGO DO BICHO
O CASO DA VARA
DAMIÃO fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano, foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava, finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não, lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria cousa útil.
Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor: Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.
— Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom.
A verdadeira grandeza é chã. Moço...
Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou: — Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário... Talvez assim...
Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas idéias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no Largo do Capim.
— Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na marquesa, onde estava reclinada.
Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar à casa, vira passar um padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a chave nem ferrolho.
Depois de entrar espiou pela rótula, a ver o padre. Este não deu por ele e ia andando.
— Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novamente a dona da casa, que só agora o conhecera. Que vem fazer aqui! Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo.
— Descanse; e explique-se.
— Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro, mas espere.
Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que estavam sentadas ern volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado.
Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.
— Como assim? Não posso nada.
— Pode, querendo.
— Não, replicou ela abanando a cabeça, não me meto em negócios de sua família, que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado! Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.
— Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela casa.
Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia... Não nada, nunca! redargüia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos, e repetia que era a sua morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho.
— Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém...
— Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende ou não...
Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamá-lo, já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente.
— Anda, moleque.
Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens, explicou ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo: — Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.
Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a: — Lucrécia, olha a vara! A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste.
Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar "pessoas estranhas", e em seguida afirmou que o castigaria.
— Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar a seu compadre.
— Não afianço nada, não creio que seja possível...
— Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, Senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...
— Mas, minha senhora...
—Vá, vá.
João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de forças opostas. Não lhe importava, em suma que o rapaz acabasse clérigo, advogado ou médico, ou outra qualquer cousa, vadio que fosse, mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra era ameaçadora: "digo-lhe que ele não volta". Tinha de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de súplica, mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra cousa? Por que lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá? Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! se o rapaz caísse ali, de repente, apoplético, morto! Era uma solução — cruel, é certo, mas definitiva.
— Então? insistiu Sinhá Rita.
Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um recurso. Deus do céu! um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os trêssetes.
Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado continuava cosido à parede, olhos baixos esperando, sem solução apoplética.
— Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.
Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado. Sinha Rita puxou-lhe desta vez o queixo.
— Ande jantar, deixe-se de melancolias.
— A senhora crê que ele alcance alguma coisa? — Há de alcançar tudo, redargüiu Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa está esfriando.
Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve, Damião esteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caráter mole do padrinho.
Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã. A sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.
— Hão de ser as moças.
Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.
As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram ecos tão mundanos, tão alheios à teologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento, mas passou depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia.
— Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora. Vocês vão gostar muito.
Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação, que serviam a diminuir o chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas das moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia.
Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite . Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dous negros, foi à polícia pedir um pedestre, e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos, correu ao quintal e calculou que podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O pior era a batina; se Shlhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esquecimento de João Carneiro.
— Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está com esses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.
Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita.
O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor que o peralta havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na presiganga. João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resolvesse logo, qne dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha, mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía dizendo que o moço fosse para a casa dele.
Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. Não tenho outra tábua de salvação, pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta escreveu esta resposta: "Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos".
Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no capuz da humildade e da consternação.
Disse-lhe que sossegasse, que aquele negóclo era agora dela.
— Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras! Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os, todas as discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.
— Ah! malandra! — Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu.
— Malandra! Nossa Senhora não protege vadias! Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e agarrou-a.
— Anda cá! — Minha senhora, me perdoe! — Não perdôo, não.
E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.
— Onde está a vara? A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista.
— Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor? Damião ficou frio. . . Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha Jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho...
— Dê-me a vara, Sr. Damião! Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor.. .
— Me acuda, meu sinhô moço! Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.
Fonte: www.dominiopublico.gov.br
HISTÓRIA DE UMA LÁGRIMA
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1867.
Que é uma lágrima? A ciência dar-nos-á uma explicação positiva; a poesia dirá que é o soro da alma, a linguagem do coração. Bem pouco avulta essa leve gota de humor que os olhos vertem por alguma causa física ou moral. É nada e é tudo; para os ânimos práticos é um sinal de fraqueza; para os corações sensíveis é um objeto de respeito, uma causa de simpatia.
Alexandre Dumas comparou eloqüentemente o dilúvio a uma lágrima do Senhor, lágrima de dor, se a dor pode ser divina, que a impiedade arrancou dos olhos do autor das coisas.
Mas a lágrima cuja história empreendo nestas curtas e singelas páginas não foi tamanha como essa que produziu o grande cataclisma. Foi uma simples gota, derramada por olhos humanos, em hora de aflição e desespero. Quem tiver chorado achar-lhe-á algum interesse.
Conheci um homem de trinta anos que era o homem mais singular do mundo, começando por parecer sexagenário. Era alto, e daquela severa beleza que consiste em mostrar nos traços do rosto os sulcos de um grande e nobre sofrimento. Os cabelos eram todos brancos, caídos para trás sem afetação nem cuidado. Tinha os olhos fundos. Era pálido, magro, curvado. Vivia só, numa casa escondida lá para as bandas de Catumbi, lugar que ele próprio escolhera para não dar muito trabalho aos amigos que quisessem levá-lo ao cemitério. Poucas vezes saía; lia algumas vezes; meditava quase sempre.
Os seus passeios ordinários, quando lhe acontecia passear, eram ao cemitério, onde se demorava habitualmente duas horas. Quando voltava e lhe perguntavam de onde vinha, respondia que fora ver casa para mudar-se.
Alguns vizinhos supunham-no doido; outros contentavam-se em chamá-lo excêntrico. Um peralvilho que morava alguns passos adiante concebeu a idéia de ir denunciá-lo à policia, ato que não realizou por lhe terem ido à mão algumas pessoas. Os meninos vadios do lugar puseram-lhe uma alcunha, e de tal sorte o perseguiam às vezes que o pobre homem resolveu sair o menos que pudesse.
Chamava-se Daniel, e, aludindo ao profeta das escrituras, costumava dizer que estava no lago dos leões, e que só por intervenção divina é que o não devoravam. Os leões eram os outros homens.
Não sei por que, desde que o vi simpatizei com ele. Tinha eu ido passar uma tarde em casa de uma família de Catumbi, onde me falaram das singularidades do velho. Tive curiosidade de conhecê-lo. Efetivamente passou ele pela rua, e todos correram à janela como se se tratasse de um urso. Percebi desde logo que aquele homem era uma ruína moral, a tradição de um grande padecimento, sustentada por urna existência precária. Resolvi tratar com ele, e comuniquei a minha intenção às senhoras que me rodeavam. Foi um motivo de chacota geral. Mas eu fiz parar o riso nos lábios das mulheres dizendo estas simples palavras:
— E se aquele homem padece por uma mulher?
As mulheres calaram-se; os homens olharam uns para os outros. Dali a oito dias fui bater à porta de Daniel. Apareceu-me um preto velho que me perguntou o que queria. Apenas lhe disse que desejava falar ao dono da casa, respondeu-me que ele saíra a passeio. Como eu sabia que o passeio era ao cemitério, dirigi-me para lá.
Apenas entrei numa das ruas da cidade dos mortos, avistei Daniel ao longe, sentado numa pedra, ao pé de uma sepultura, com a cabeça entre as mãos. Aquele aspecto fez-me parar. Era positivo que todas as excentricidades de Daniel estavam presas a uma história, que devia ser a história daquele túmulo. Encaminhei-me para o lugar onde o velho estava, parando a alguns passos, e conservando-me ao pé de uma campa, a fim de que lhe parecesse que um motivo, que não o da curiosidade, levava-me até ali.
De quando em quando levantava eu a cabeça para ver o velho, e achava-o sempre na mesma posição. Esperei uma hora que ele se levantasse, até que, perdendo essa esperança, tratei de retirar-me, quando vi ao longe, encaminhando-se para aquele lado, um cortejo fúnebre. Era mais um habitante que vinha tomar posse da sua casa na vasta necrópole. O ruído dos passos dos últimos amigos e conhecidos do novo locatário despertaram o velho, que se levantou rapidamente, lançou um olhar para a sepultura, e encaminhou-se para o lado do portão. Quis ver se a campa ao pé da qual o velho estava assentado tinha algum nome, mas ao mesmo tempo temi perder o velho, que andava rapidamente. Contudo apressei o passo, e pude ler rapidamente na campa estas simples palavras:
Aqui jaz uma mártir
Depois, dobrando de velocidade, pude alcançar o velho no momento em que ele estava já a poucas braças do portão. Ia falar-lhe, mas hesitei. Que lhe diria eu? Como explicar a minha curiosidade? Entretanto o velho andava, e eu atrás dele, até que nos achamos ambos à porta da casa.
— Queria alguma coisa?
— Um pouco d’água para este senhor. Queira sentar-se.
Não sabia que havia de dizer depois de ter pedido a água. O velho, apenas me viu sentado, tomou uma cadeira e sentou-se ao pé da janela. Os últimos raios do sol poente batiam-lhe na fronte encanecida e sulcada pelo sofrimento. Era venerável aquela figura tão humilde e tão resignada.
Veio a água, bebi e dirigi-me ao dono da casa.
— Obrigado, disse-lhe. Sou P... e moro...
— É inútil dizer-me a casa, interrompeu Daniel; o meu reino já não é deste mundo. Entretanto agradeço-lhe...
— Mas por que não é deste mundo?
O velho franziu a testa e respondeu-me secamente:
— Porque não é.
Era impossível tirar-lhe mais uma palavra.
Saí, mas levando a resolução de voltar outra vez até travar relações com o velho.
Com efeito, cinco dias depois fui a Catumbi, e bati à porta de Daniel. Achei o velho com um livro na mão.
Perguntou-me o que queria, e como eu lhe dissesse que era a pessoa que cinco dias antes estivera ali, respondeu-me que se lembrava e mandou-me sentar.
— Quer água outra vez? disse ele sorrindo tristemente.
— Não, não quero. Há de ter compreendido que eu não queria somente um copo d’água me pedir, mas não passe dos copos d’alma e parecia-me que era aquele olhar uma demonstração de sincero afeto.
Unir os meus dias aos dela, foi o meu primeiro e maior sonho. Mas como? Pedi-la ao pai era o meio mais natural, mas repugnava-me, pois que, além de ser eu um simples empregado recebido em casa por prova de confiança, receava que se atribuísse ao meu ato intenções menos puras e confessáveis.
Aqui entrava eu na luta suprema do coração e da consciência, do dever e do amor. Entendia que era decoro reduzir-me, mas esse silêncio era para mim o mais atroz de todos os suplícios.
Os dias corriam assim, e eu, se não podia ainda aspirar à glória de possuir Elisa, gozava ao menos da felicidade de vê-la e viver nos olhos dela.
Durou este estado sete meses. Disposto a sofrer em silêncio, resolvi por outro lado trabalhar muito, de modo a constituir um direito à mão da moça.
Notava eu, porém, que Valadares, até então meu amigo confessado, redobrava de afeto e de atenções por mim. Nos meus sonhos de felicidade conjecturei que o negociante, tendo percebido a minha paixão, aprovava-a do fundo d’alma, e talvez mesmo por inspiração da filha.
Um dia, era em outubro de 185... , estando no escritório a trabalhar recebi recado de Valadares para que fosse lá à casa à noitinha.
Fui.
Valadares estava no gabinete e mandou-me entrar.
— Deram-lhe o recado a tempo?
— Sim, senhor, respondi eu.
— Bem. Sente-se.
Puxei uma cadeira. Valadares limpou os óculos, e depois de algum silêncio perguntou-me:
— Não desconfia do motivo por que mandei chamá-lo?
— Não, senhor.
— É natural. Os velhos são mais perspicazes que os moços. O motivo é perguntar-lhe se não pensa em casar-se?
Olhei para ele com um movimento de alegria; mas ao mesmo tempo cheio daquele medo que acompanha o coração quando está prestes a colher uma grande felicidade.
— Não sei... respondi.
— Não sabe? Responde como se fora uma moça. É verdade que a minha pergunta foi talvez mal cabida. Responda-me, então: Não ama?
Depois de algum tempo respondi:
— Sim...
— Ama minha filha?
— Perdão, mas é verdade.
— Perdão de quê? São moços, podem amar-se; é amado?
— Não sei.
— Ah! mas eu creio que é.
— Ela disse-lho?
— Não, mas desconfio...
— Se fosse verdade...
— Há de ser. Pois se a ama e se quer desposá-la, nada de temores pueris, nem receios infundados. Eu não sou nenhum dragão.
— Mas como poderei aspirar a tanta felicidade?
— É boa! aspirando. Vou consultar Elisa.
— Pois sim...
— Vá para a sala.
Saí entre a alegria e o receio. Se ela não me amasse? Se aquilo tudo fosse ilusão minha e do pai? Ao mesmo tempo pensava eu que era impossível que ambos nos enganássemos, e embalado por tão lisonjeiras esperanças aguardei a resposta definitiva da minha ventura.
Daí a um quarto de hora entrava Valadares na sala com um sorriso animador nos lábios.
Fui direito a ele.
— Minha filha é sua.
Elisa entrou na sala logo atrás do pai.
— Ah! que felicidade! disse eu encaminhando-me para ela.
A moça abaixou os olhos. Estendi-lhe a mão, sobre a qual pôs ela a sua.
Era noite. Tamanha felicidade abafava-me: eu precisava de ar; e além disso tinha vontade de ver se, saindo daquela casa, desfazia-se o que me parecia sonho, ou se realmente era uma realidade bem-aventurada.
Preparou-se o casamento, que devia efetuar-se dentro de um mês. Valadares disse-me que eu entraria como sócio na casa, sendo esse o começo da fortuna que meu pai exigia que eu próprio alcançasse.
Elisa recebeu contente aquela proposta? amava-me realmente? Eu acreditei que sim. Mas a verdade é que a moça não diminuiu para mim o tratamento afetuoso que até então me dava; como não era alegre, ninguém reparava em que nada se lhe alterasse pela proximidade da união.
A diferença que eu notei então na casa foi que Luís, o poeta que lá ia, de alegre que era tornara-se triste e distraído. A mudança foi a ponto que eu compreendi que ele nutria por Elisa algum sentimento de amor. Provavelmente preparava-se para ser seu marido. Quis a sorte que as circunstâncias transtornassem esses planos. A culpa não era minha, pensava eu; é natural amá-la, basta conhecê-la.
Efetuou-se o casamento em novembro. Foi para mim um dia de felicidade extrema, com uma única sombra, é que Elisa pareceu triste logo desde manhã, e indagando eu a causa disse que se achava um pouco doente.
— Adiamos o casamento...
— Não, há de ser já.
— Mas se está enferma?
— Uma dor de cabeça; nada é.
A cerimônia foi celebrada debaixo desta impressão.
Assistiram a ela todos os amigos da casa, menos o poeta, que dois dias antes partira para o interior da província, onde ia, disse ele, ver um parente.
Quando eu me vi casado, senti tamanha satisfação que tive medo de mim. Agradeci mentalmente a meu pai o haver-me mandado para o Rio, onde aquela ventura me esperava.
Não lhe direi como correram os primeiros dias do meu casamento; foi o que costuma a ser, uma lua-de-mel. Elisa nada mudou do que era; à sua índole atribuí eu a circunstância especial de que, ao passo que eu me sentia ardoroso e cheio daquela glória de possuí-la, ela mostrava-se afetuosa, mas reservada, obediente e passiva.
— É natural nela; foi assim educada, pensava eu.
E não havia cuidado nem atenção de que eu não a rodeasse para que ela fosse feliz. A moça agradecia-me com um sorriso. Para mim aquele sorriso era uma luz do céu.
No fim de algum tempo, apareceu outra vez na corte o poeta, que vinha, dizia, de fechar os olhos ao parente, e trazia luto fechado. Ficava-lhe bem o luto, e não somente o luto das roupas, mas o do semblante que estava fechado e triste como uma campa que esconde um morto.
O poeta foi à nossa casa; mas Elisa não lhe falou, por estar incomodada, segundo mandou dizer. O moço voltou lá mais duas vezes sem que pudesse ver minha mulher. Não voltou lá mais.
Pouco depois soube que partira para os Estados Unidos. Ia buscar, disse ele ao major que freqüentava a casa de Valadares, um grande centro populoso que lhe servisse de grande deserto para o coração.
Desconfiei, como era fácil, que o amor de Luís não se extinguira, e que, preferindo o suicídio moral à desonra, buscava assim o esquecimento num exílio voluntário.
Passaram-se três anos quase, e por esse tempo adoeceu Elisa. Foi ao principio moléstia de pouca monta, mas agravou-se com os tempos, e um dia chegou em que o médico me disse que a infeliz estava tísica.
Podes acaso calcular a minha dor?
— Salve-a, doutor, exclamei eu.
— Sim, hei de salvá-la.
Com efeito, o médico envidou todos os esforços; ocultou a moléstia à enferma, por prudência; mas Elisa tinha a convicção da gravidade do mal. Emagrecia e empalidecia a olhos vistos.
Abandonei os interesses da casa a meu sogro, que, por sua parte, entregou-a aos cuidados do guarda-livros, e ambos nos ocupamos exclusivamente em cuidar da pobre enferma.
Mas o mal era fatal. A ciência nem o amor nada podiam contra ele. Elisa definhava; não longe estava a morte. Ao menos salvávamos a consciência de ter feito tudo.
Eu poucas vezes saía, e isso mesmo pouco tempo me demorava fora de casa. Numa dessas vezes, em que eu voltava, não achei Elisa na sala de visitas. A infeliz já poucas vezes se levantava; cuidei que estivesse de cama. Fui para lá; não estava. Disseram-me que tinha entrado no seu gabinete de trabalho.
Dirigi-me para lá pé ante pé.
Elisa estava de costas, sentada numa poltrona com um papel na mão; aproximei-me devagarinho, queria causar-lhe uma agradável surpresa dando-lhe um beijo.
Mas, no momento em que eu aproximava-me dela, vi que o papel que ela lia continha uns versos, e parava para os ler, quando vi cair sobre o papel uma lágrima.
Que era aquilo? De um lance compreendi tudo; não pude reter um pequeno grito, que ela ouviu e que a assustou.
Vendo-me pálido e de pé diante dela, a moça levantou-se a custo e curvando a cabeça murmurou:
— Perdão!
Queria ajoelhar, impedi-a.
Elisa não se perturbou; tinha no olhar a serenidade da inocência; mas o fogo que lhe ardia nas pupilas era já o fogo da morte. O susto que eu lhe causara apressou a catástrofe.
Elisa caiu-me nos braços; removi-a para a cama. À noite tinha dado a alma a Deus.
Compreendes o que sofri naquela funesta noite? Duas vezes fui fatal àquela pobre alma: na vida e na morte. Os versos que ela lia eram de Luís, que ela amava, e com quem não pôde casar porque adivinhara que o meu casamento era do gosto do pai. Fui a fatalidade da sua vida. E não menos fatal fui na morte, pois que a apressei quando talvez pudesse viver alguns dias, talvez pouco para ela, muito para o meu amor.
A dor de perdê-la foi dominada pelo remorso de havê-la sacrificado. Era eu causa involuntária daquele sacrifício tão sereno e tão mudo, sem uma exprobração, nem uma queixa.
Três anos esteve ela ao pé de mim, sem articular uma queixa, pronta a executar todos os meus desejos, desempenhando aquele papel de mártir que o destino lhe dera.
Compreendes que aquela sepultura que ali está perto de mim é a dela. É ali que eu vou pedir-lhe sempre com as minhas orações e as minhas lágrimas um perdão de que preciso.
E toda esta lúgubre história é a história desta lágrima.
Isolei-me, procurei na solidão um descanso; tomam-me uns por doido; outros chamam-me excêntrico. Eu sou apenas uma vítima depois de ter sido um algoz, inconsciente é verdade, mas algoz cruel daquela alma que podia ser feliz na terra, e não o foi.
Um dia em que ali estava no cemitério vi aparecer um homem vestido de preto, encaminhando-se para a mesma sepultura. Era Luís. Viu-me chorar, compreendeu que eu amava aquela que havia morrido por ele. Diante daquela sepultura a nossa rivalidade fez uma paz solene; trocamos um aperto de mão, depois do que saímos cada um por seu lado para nunca mais nos encontrarmos.
Luís matou-se. Não podendo achar o deserto na vida, foi buscá-lo na morte. Está ao pé dela no céu; é por isso que eu não vou perturbar lhes a felicidade.
Dizendo isto o velho curvou a cabeça e meditou.
Eu saí...
***
Ainda hoje uma ou duas vezes por semana quem for ao cemitério de Catumbi encontrará Daniel rezando ao pé de uma sepultura, cujas letras o tempo apagou, mas que o velho conhece porque ali reside a sua alma.
Fonte: alecrim.inf.ufsc.br
JOGO DO BICHO
[AB. 1904.]
CAMILO — ou Camilinho, como lhe chamavam alguns por amizade — ocupava em um dos arsenais do Rio de Janeiro (Marinha ou Guerra) um emprego de escrita. Ganhava duzentos mil-réis por mês, sujeitos ao desconto de taxa e montepio. Era solteiro, mas um dia, pelas férias, foi passar a noite de Natal com um amigo no subúrbio do Rocha; lá viu uma criaturinha modesta, vestido azul, olhos pedintes. Três meses depois estavam casados.
Nenhum tinha nada; ele, apenas o emprego, ela as mãos e as pernas para cuidar da casa toda, que era pequena, e ajudar a preta velha que a criou e a acompanhou sem ordenado. Foi esta preta que os fez casar mais depressa. Não que lhes desse tal conselho; a rigor, parecia-lhe melhor que ela ficasse com a tia viúva, sem obrigações, nem filhos. Mas ninguém lhe pediu opinião. Como, porém, dissesse um dia que, se sua filha de criação casasse, iria servi-la de graça, esta frase foi contada a Camilo, e Camilo resolveu casar dous meses depois. Se pensasse um pouco, talvez não casasse logo; a preta era velha, eles eram moços, etc. A idéia de que a preta os servia de graça, entrou por uma verba eterna no orçamento.
Germana, a preta, cumpriu a palavra dada.
— Um caco de gente sempre pode fazer uma panela de comida, disse ela.
Um ano depois o casal tinha um filho, e a alegria que trouxe compensou os ônus que traria. Joaninha, a esposa, dispensou ama, tanto era o leite, e tamanha a robustez, sem contar a falta de dinheiro; também é certo que nem pensaram nisto.
Tudo eram alegrias para o jovem empregado, tudo esperanças. Ia haver uma reforma no arsenal, e ele seria promovido. Enquanto não vinha a reforma, houve uma vaga por morte, e ele acompanhou o enterro do colega, quase a rir. Em casa não se conteve e riu. Expôs à mulher tudo o que se ia dar, os nomes dos promovidos, dous, um tal Botelho, protegido pelo general
*** e ele. A promoção veio e apanhou Botelho e outro. Camilo chorou desesperadamente, deu murros na cama, na mesa e em si.
— Tem paciência, dizia-lhe Joaninha.
— Que paciência? Há cinco anos que marco passo... Interrompeu-se.
Aquela palavra, da técnica militar, aplicada por um empregado do arsenal, foi como água na fervura; consolou-o. Camilo gostou de si mesmo. Chegou a repeti-la aos companheiros íntimos. Daí a tempos, falando-se outra vez em reforma, Camilo foi ter com o ministro e disse:
— Veja V. Excia. que há mais de cinco anos vivo marcando passo.
O grifo é para exprimir a acentuação que ele deu ao final da frase. Pareceu-lhe que fazia boa impressão ao ministro, conquanto todas as classes usassem da mesma figura, funcionários, comerciantes, magistrados, industriais, etc., etc.
Não houve reforma; Camilo acomodou-se e foi vivendo. Já então tinha algumas dívidas, descontava os ordenados, buscava trabalhos particulares, às escondidas. Como eram moços e se amavam, o mau tempo trazia idéia de um céu perpetuamente azul.
Apesar desta explicação, houve uma semana em que a alegria de Camilo foi extraordinária. Ides ver. Que a posteridade me ouça. Camilo, pela primeira vez, jogou no bicho. Jogar no bicho não é um eufemismo como matar o bicho. O jogador escolhe um número, que convencionalmente representa um bicho, e se tal número acerta de ser o final da sorte grande, todos os que arriscaram nele os seus vinténs ganham, e todos os que fiaram dos outros perdem. Começou a vinténs e dizem que está em contos de réis; mas, vamos ao nosso caso.
Pela primeira vez Camilo jogou no bicho, escolheu o macaco, e, entrando com cinco tostões, ganhou não sei quantas vezes mais. Achou nisto tal despropósito que não quis crer, mas afinal foi obrigado a crer, ver e receber o dinheiro. Naturalmente tornou ao macaco, duas, três, quatro vezes, mas o animal, meio-homem, falhou às esperanças do primeiro dia. Camilo
recorreu a outros bichos, sem melhor fortuna, e o lucro inteiro tornou à gaveta do bicheiro. Entendeu que era melhor descansar algum tempo; mas não há descanso eterno, nem ainda o das sepulturas. Um dia lá vem a mão do arqueólogo a pesquisar os ossos e as idades.
Camilo tinha fé. A fé abala as montanhas. Tentou o gato, depois o cão, depois o avestruz; não havendo jogado neles, podia ser que... Não pôde ser; a fortuna igualou os três animais em não lhes fazer dar nada. Não queria ir pelos palpites dos jornais, como faziam alguns amigos. Camilo perguntava como é que meia dúzia de pessoas,escrevendo notícias, podiam adivinhar os
números da sorte grande. De uma feita, para provar o erro, concordou em aceitar um palpite, comprou no gato, e ganhou.
— Então? perguntaram-lhe os amigos.
— Nem sempre se há de perder, disse este.
— Acaba-se ganhando sempre, acudiu um; a questão é tenacidade, não afrouxar nunca.
Apesar disso, Camilo deixou-se ir com os seus cálculos. Quando muito, cedia a certas indicações que pareciam vir do céu, como um dito de criança de rua: “Mamãe, por que é que a senhora não joga hoje na cobra?” Ia-se à cobra e perdia; perdendo, explicava a si mesmo o fato com os melhores raciocínios deste mundo, e a razão fortalecia a fé.
Em vez de reforma da repartição veio um aumento de vencimentos, cerca de sessenta mil-réis mensais. Camilo resolveu batizar o filho, e escolheu para padrinho nada menos que o próprio sujeito que lhe vendia os bichos, o banqueiro certo. Não havia entre eles relações de família; parece até que o homem era um solteirão sem parentes. O convite era tão inopinado, que
quase o fez rir, mas viu a sinceridade do moço, e achou tão honrosa a escolha que aceitou com prazer.
— Não é negócio de casaca?
— Qual, casaca! Cousa modesta.
— Nem carro?
— Carro...
— Para que carro?
— Sim, basta ir a pé. A igreja é perto, na outra rua.
— Pois a pé.
Qualquer pessoa atilada descobriu já que a idéia de Camilo é que o batizado fosse de carro. Também descobriu, à vista da hesitação e do modo, que entrava naquela idéia a de deixar que o carro fosse pago pelo padrinho; não pagando o padrinho, não pagaria ninguém. Fez-se o batizado, o padrinho deixou uma lembrança ao afilhado, e prometeu, rindo, que lhe daria um
prêmio na águia.
Esta graçola explica a escolha do pai. Era desconfiança dele que o bicheiro entrava na boa fortuna dos bichos, e quis ligar-se-lhe por um laço espiritual. Não jogou logo na águia “para não espantar”, disse consigo, mas não esqueceu a promessa, e um dia, com ar de riso, lembrou ao bicheiro:
— Compadre, quando for a águia, diga.
— A águia?
Camilo recordou-lhe o dito; o bicheiro soltou uma gargalhada.
— Não, compadre; eu não posso adivinhar. Aquilo foi pura brincadeira. Oxalá que eu lhe pudesse dar um prêmio. A águia dá; não é comum, mas dá.
— Mas porque é que eu ainda não acertei com ela?
— Isso não sei; eu não posso dar conselhos, mas quero crer que você, compadre, não tem paciência no mesmo bicho, não joga com certa constância. Troca muito. É por isso que poucas vezes tem acertado. Diga-me cá: quantas vezes tem acertado?
— De cor, não posso dizer, mas trago tudo muito bem escrito no meu caderno.
— Pois veja, e há de descobrir que todo o seu mal está em não teimar algum tempo no mesmo bicho. Olhe, um preto, que há três meses joga na borboleta ganhou hoje e levou uma bolada...
Camilo escrevia efetivamente a despesa e a receita, mas não as comparava para não conhecer a diferença. Não queria saber do deficit. Posto que metódico, tinha o instinto de fechar os olhos à verdade, para não a ver e aborrecer. Entretanto, a sugestão do compadre era aceitável; talvez a inquietação, a impaciência, a falta de fixidez nos mesmos bichos fosse a
causa de não tirar nunca nada.
Ao chegar à casa achou a mulher dividida entre a cozinha e a costura. Germana adoecera e ela fazia o jantar, ao mesmo tempo que acabava o vestido de uma freguesa. Cosia para fora, a fim de ajudar as despesas da casa e comprar algum vestido para si. O marido não ocultou o desgosto da situação. Correu a ver a preta; já a achou melhor da febre com o quinino que a mulher tinha em casa e lhe dera “por sua imaginação”; e a preta acrescentou sorrindo:
— Imaginação de nhã Joaninha é boa.
Jantou triste, por ver a mulher tão carregada de trabalho, mas a alegria dela era tal, apesar de tudo, que o fez alegre também. Depois do café, foi ao caderno que trazia fechado na gaveta e fez os seus cálculos. Somou as vezes e os bichos, tantas na cobra, tantas no galo, tantas no cão e no resto, uma fauna inteira, mas tão sem persistência, que era fácil desacertar. Não queria somar a despesa e a receita para não receber de cara um grande golpe, e fechou o caderno. Afinal não pôde, e somou lentamente, com cuidado para não errar; tinha gasto setecentos e sete mil-réis, e tinha ganho oitenta e quatro mil-réis, um deficit de seiscentos e vinte e três mil-réis. Ficou assombrado.
— Não é possível!
Contou outra vez, ainda mais lento, e chegou a uma diferença de cinco mil-réis para menos. Teve esperanças e novamente somou as quantias gastas, e achou o primitivo deficit de seiscentos e vinte e três mil-réis. Trancou o caderno na gaveta; Joaninha, que o vira jantar alegre, estranhou a mudança e perguntou o que é que tinha.
— Nada.
— Você tem alguma cousa; foi alguma lembrança...
— Não foi nada.
Como a mulher teimasse em saber, engendrou uma mentira — uma turra com o chefe da seção — cousa de nada.
— Mas você estava alegre...
— Prova de que não vale nada. Agora lembrou-me... e estava pensando no caso, mas não é nada. Vamos à bisca.
A bisca era o espetáculo deles, a Ópera, a Rua do Ouvidor, Petrópolis, Tijuca, tudo o que podia exprimir um recreio, um passeio, um repouso. A alegria da esposa voltou ao que era. Quanto ao marido, se não ficou tão expansivo como de costume, achou algum prazer e muita esperança nos números das cartas. Jogou a bisca fazendo cálculos, conforme a primeira carta que saísse, depois a segunda, depois a terceira; esperou a última; adotou outras combinações, a ver os bichos que correspondiam a elas, e viu muito deles, mas principalmente o macaco e a cobra; firmou-se nestes.
— O meu plano está feito, saiu pensando no dia seguinte, vou até aos setecentos mil-réis. Se não tirar quantia grossa que anime, não compro mais.
Firmou-se na cobra, por causa da astúcia, e caminhou para a casa do compadre. Confessou-lhe que aceitara o seu conselho, e começava a teimar na cobra.
— A cobra é boa, disse o compadre.
Camilo jogou uma semana inteira na cobra, sem tirar nada. Ao sétimo dia, lembrou-se de fixar mentalmente uma preferência, e escolheu a cobra-coral, perdeu; no dia seguinte, chamou-lhe cascavel, perdeu também; veio à surucucu, à jibóia, à jararaca, e nenhuma variedade saiu da mesma tristíssima fortuna. Mudou de rumo. Mudaria sem razão, apesar da promessa feita; mas o que propriamente o determinou a isto foi o encontro de um carro que ia matando um pobre menino. Correu gente, correu polícia, o menino foi levado à farmácia, o cocheiro ao posto da guarda. Camilo só reparou bem no número do carro, cuja terminação correspondia ao carneiro; adotou o carneiro. O carneiro não foi mais feliz que a cobra.
Não obstante, Camilo apoderou-se daquele processo de adotar um bicho, e jogar nele até estafá-lo: era ir pelos números adventícios. Por exemplo, entrava por uma rua com os olhos no chão, dava quarenta, sessenta, oitenta passos, erguia repentinamente os olhos e fitava a primeira casa à direita ou à esquerda, tomava o número e ia dali ao bicho correspondente. Tinha já gasto o processo de números escritos e postos dentro do chapéu, o de um bilhete do Tesouro — cousa rara — e cem outras formas, que se repetiam ou se completavam. Em todo caso, ia descambando na impaciência e variava muito. Um dia resolveu fixar-se no leão; o compadre, quando reconheceu que efetivamente não saía do rei dos animais, deu graças a Deus.
— Ora, graças a Deus que o vejo capaz de dar o grande bote. O leão tem andado esquivo, é provável que derrube tudo, mais hoje, mais amanhã.
— Esquivo? Mas então não quererá dizer...?
— Ao contrário.
Dizer quê? Ao contrário, quê? Palavras escuras, mas para quem tem fé e lida com números, nada mais claro. Camilo elevou ainda mais a soma da aposta. Faltava pouco para os setecentos mil-réis; ou vencia ou morria.
A jovem consorte mantinha a alegria da casa, por mais dura que fosse a vida, grossos os trabalhos, crescentes as dívidas e os empréstimos, e até não raras as fomes. Não lhe cabia culpa, mas tinha paciência. Ele, em chegando aos setecentos mil-réis, trancaria a porta. O leão não queria dar. Camilo pensou em trocá-lo por outro bicho, mas o compadre afligia-se tanto com
essa frouxidão, que ele acabaria entre os braços da realeza. Faltava já pouco; enfim, pouquíssimo.
— Hoje respiro, disse Camilo à esposa. Aqui está a nota última.
Cerca das duas horas, estando à mesa da repartição, a copiar um grave documento, Camilo ia calculando os números e descrendo da sorte. O documento tinha algarismos; ele errou-os muita vez, por causa do atropelo em que uns e outros lhe andavam no cérebro. A troca era fácil; os seus vinham mais vezes ao papel que os do documento original. E o pior é que ele
não dava por isso, escrevia o leão em vez de transcrever a soma exata das toneladas de pólvora...
De repente, entra na sala um contínuo, chega-se-lhe ao ouvido, e diz que o leão dera. Camilo deixou cair a pena, e a tinta inutilizou a cópia quase acabada. Se a ocasião fosse outra, era caso de dar um murro no papel e quebrar a pena, mas a ocasião era esta, e o papel e a pena escaparam às violências mais justas deste mundo; o leão dera. Mas, como a dúvida não
morre:
— Quem é que disse que o leão deu? perguntou Camilo baixinho.
— O moço que me vendeu na cobra.
— Então foi a cobra que deu.
— Não, senhor; ele é que se enganou e veio trazer a notícia pensando que eu tinha comprado no leão, mas foi na cobra.
— Você está certo?
— Certíssimo.
Camilo quis deitar a correr, mas o papel borrado de tinta acenou-lhe que não. Foi ao chefe, contou-lhe o desastre e pediu para fazer a cópia no dia seguinte; viria mais cedo, ou levaria o original para casa...
— Que está dizendo? A cópia há de ficar pronta hoje.
— Mas são quase três horas.
— Prorrogo o expediente.
Camilo teve vontade de prorrogar o chefe até ao mar, se lhe era lícito dar tal uso ao verbo e ao regulamento. Voltou à mesa, pegou de uma folha de papel e começou a escrever o requerimento de demissão. O leão dera; podia mandar embora aquele inferno. Tudo isto em segundos rápidos, apenas um minuto e meio. Não tendo remédio, entrou a recopiar o documento, e antes das quatro horas estava acabado. A letra saiu tremida, desigual, raivosa, agora melancólica, pouco a pouco alegre, à medida que o leão dizia ao ouvido do amanuense, adoçando a voz: Eu dei! eu dei!
— Ora, chegue-se, dê cá um abraço, disse-lhe o compadre, quando ele ali apareceu. Afinal a sorte começa a protegê-lo.
— Quanto?
— Cento e cinco mil-réis.
Camilo pegou em si e nos cento e cinco mil-réis, e só na rua advertiu que não agradecera ao compadre; parou, hesitou, continuou. Cento e cinco mil-réis! Tinha ânsia de levar à mulher aquela notícia; mas, assim... só...?
— Sim, é preciso festejar esse acontecimento. Um dia não são dias. Devo agradecer ao céu a fortuna que me deu. Um pratinho melhor à mesa...
Viu perto uma confeitaria; entrou por ela e espraiou os olhos, sem escolher nada. O confeiteiro veio ajudá-lo, e, notando a incerteza de Camilo entre mesa e sobremesa, resolveu vender-lhe ambas as cousas. Começou por um pastelão, “um rico pastelão, que enchia os olhos, antes de encher a boca e o estômago”. A sobremesa foi “um rico pudim”, em que havia escrito, com letras de massa branca este viva eterno: “Viva a esperança!”. A alegria de Camilo foi tanta e tão estrepitosa que o homem não teve remédio senão oferecer-lhe vinho também, uma ou duas garrafas. Duas.
— Isto não vai sem Porto; eu lhe mando tudo por um menino. Não é longe?
Camilo aceitou e pagou. Entendeu-se com o menino acerca da casa e do que faria. Que lhe não batesse à porta; chegasse e esperasse por ele; podia ser que ainda não estivesse em casa; se estivesse, viria à janela, de quando em quando. Pagou dezesseis mil-réis e saiu.
Estava tão contente com o jantar que levava e o espanto da mulher, nem se lembrou de presentear Joaninha com alguma jóia. Esta idéia só o assaltou no bonde, andando; desceu e voltou a pé, a buscar um mimo de ouro, um broche que fosse, com uma pedra preciosa. Achou um broche nestas condições, tão modesto no preço, cinqüenta mil-réis — que ficou admirado;
mas comprou-o assim mesmo, e voou para casa.
Ao chegar, estava à porta o menino, com cara de o haver já descomposto e mandado ao diabo. Tirou-lhe os embrulhos e ofereceu-lhe uma gorjeta.
— Não, senhor, o patrão não quer.
— Pois não diga ao patrão; pegue lá dez tostões; servem para comprar na cobra, compre na cobra.
Isto de lhe indicar o bicho que não dera, em vez do leão, que dera, não foi cálculo nem perversidade; foi talvez confusão. O menino recebeu os dez tostões, ele entrou para casa com os embrulhos e a alma nas mãos e trinta e oito mil-réis na algibeira.
Fonte: www.cce.ufsc.br