Cida Cinderela - um folhetim televisivo

A telenovela brasileira é filha do folhetim do século XIX e descendente direta dos Romances de Cavalaria do século XIV. Mesmo passadas tantas décadas, ainda hoje vemos a estrutura do folhetim e a do melodrama serem utilizadas nas produções. Um exemplo disso é o sucesso que teve a novela Cheias de Charme, da Rede Globo, em 2012.

Os autores Filipe Miguez e Isabel de Oliveira revolucionaram o horário das 19 horas, trazendo inovações (por exemplo, utilizar a internet para lançar o clip que colocaria o trio das empregadas no mundo dos famosos), mas tendo como base uma estrutura dramática já consolidada.

A personagem Maria Aparecida, Cida para os íntimos, é o retrato de uma Cinderela que ainda carrega no peito os sonhos e anseios de uma jovem donzela de folhetim. Donzela moderna, é bom que se diga, apropriada às aventuras do século XXI, mas que ainda procura um príncipe para chamar de seu. Até a escolha do nome da personagem, Cida, parece ser o diminutivo do nome da personagem de contos de fadas, Cinderela, uma nobre que vivia como gata borralheira na cozinha, tendo como ‘carrasca’ uma madrasta má e suas duas filhas insuportáveis.

Cida-Cinderela, no século XXI, é filha de empregada, pobre, mora no quartinho dos fundos, tem como amparo somente uma madrinha que lhe dá o amor de mãe. Cida, como não podia deixar de ser, tem o coração nobre, característica de uma mocinha de folhetim. Vive de favor na casa dos Sarmentos, tendo a carteira profissional assinada, somente depois que completa 19 anos. Antes disso, recebia pelo trabalho apenas moradia, roupas doadas pelas filhas do patrão e comida e tinha que aturar a patroa-má, Sônia. Mais Cinderela não poderia haver.

Na verdade, não é apenas Cida o retrato da Cinderela dos dias atuais, contada por Filipe e Isabel. A novela teve como protagonistas três empregadas domésticas que se veem lançadas ao sucesso depois de ter o hit “Vida de empreguete” vazado na internet. Cada uma com características próprias, têm em comum a busca de uma vida melhor: Maria do Rosário quer ser cantora e compositora, Maria da Penha sonha em ser enfermeira e pagar as contas em dia e Maria Aparecida quer ser jornalista.

Três Marias que trazem para o horário das 19 horas os anseios e sonhos presentes no imaginário da classe C; anseios característicos de todas as classes sociais, é preciso ressaltar, mas principalmente da classe C brasileira, que por anos foi relegada a ter os bens de consumo e hoje sonha também os sonhos da classe média: dinheiro, fama, sucesso e estudo. São mulheres batalhadoras, que trabalham como domésticas e têm que aguentar as patroas-vilãs. Havia em cada personagem uma verossimilhança que fez o público ficar atento ao enredo durante nove meses, sendo sucesso absoluto nas redes sociais (se beneficiando desta modalidade de comunicação) e no Ibope.

Essa verossimilhança é necessária à criação de qualquer história. Cláudia Cristina Maia (UFSC), em Tradição e Modernidade: elementos narrativos na tragédia e no melodrama, lembra que Aristóteles já dizia que, para suscitar o terror e a compaixão, o público precisaria se identificar com as situações apresentadas no palco.

“As peças trágicas, então, na busca de uma identificação do palco com a plateia, constrói cuidadosamente os personagens e a trama das ações. Esses são submetidos a um princípio de verossimilhança e a trama, valendo-se de peripécias e reconhecimentos, apresenta uma mudança de felicidade ao infortúnio, mudança esta que ocorre devido a um erro grave do herói trágico. Toda fábula, então, desde a caracterização das personagens até a catástrofe final, deve ser construída em conformidade com a verossímil”.

Cida desperta essa simpatia, principalmente nas crianças, segundo pesquisa divulgada pela Rede Globo na época da novela, porque traz em si o sonho da Cinderela e de encontrar seu príncipe encantado, num mundo pós-movimento feminista. O desejo de ser amado é inerente à natureza humana e é isso o que ela busca, seja através da busca do amor compartilhado com o príncipe encantado, seja o amor compartilhado pela figura paterna.

Regina Horta Duarte, em seu estudo sobre espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX, definiu quatro tipos de personagens para o melodrama: vilão, heroína, herói e o tolo. Cida se enquadra no perfil da heroína: “fosse ela uma princesa ou plebeia, aparecia sempre como uma segunda figura, bela e extremamente virtuosa”. Cida era assim, não uma heroína chata, incapaz de seduzir o público. A personagem criada por Filipe Miguez e Isabel de Oliveira não foi tachada como ‘alguém doce demais’. Sua ingenuidade e boa-fé no ser humano cativaram quem assistia e torcia para que ela fosse feliz.

Samira Youssef Campedelli, em A telenovela, cita Theodor Adorno ao lembrar que a “indústria cultural tem uma necessidade voraz de novidade para recriar continuamente a mesma coisa”. É verdade.

Apesar de todas as inovações que a novela trouxe, os autores utilizaram ferramentas que o folhetim e o melodrama têm e que são comprovadamente capazes de cativar o público. Eles beberam sua história nos contos dos irmãos Grimm, aliados os instrumentos do melodrama, para cativar o público e manter a audiência elevada.

Cláudia Cristina lembra ainda que esta identificação do público é despertada também pelo sentido de moralidade e justiça e pela simplicidade das intrigas. Ela está certa. Basta lembrar que uma boa parte da novela foi dedicada a Cida deixando de ser capacho da família Sarmento e, depois, quando ela descobriu que na verdade era filha do seu patrão.

A novela teve vários momentos de peripécias (reviravolta completa das ações) e reconhecimento (é o que faz passar da ignorância ao conhecimento) como os capítulos em que Cida descobre quem é seu pai e depois, mais à frente, ela é novamente surpreendida com outra verdade: que o seu patrão não é o seu pai, ele a tinha enganado. A cobiça foi o que motivou o tubarão do Sarmento a forjar o teste de DNA. A importância da peripécia e reconhecimento já se consolidou desde o tempo dos gregos com suas tragédias, como a de Édipo, e desde então tem sido utilizada nos folhetins e melodramas.

Não se pode deixar de citar ainda outro fato importante para a composição desta heroína melodramática: a história da gata borralheira, menina pobre, mas com o coração nobre, já foi contada e recontada de diversas formas e a novela Cheia de charme foi mais uma a utilizar esta estrutura. Um exemplo disso é de onde vieram as três personagens: nada mais, nada menos, do que da Comunidade do Borralho. Rosário lá vivia com o pai adotivo e Penha também, com sua família composta de ex-marido, irmão, irmã e filho. Vale lembrar que Cida não vivia no Borralho, mas sim na casa dos Sarmentos.

Contudo, depois de ter se libertado da família que a explorava e já tendo dinheiro suficiente para morar num imóvel da Zona Sul, foi justamente para a comunidade, sendo vizinha de Penha que nunca saiu de lá, apesar de ter condições financeiras depois do sucesso do clip Vida de empreguete. Cida e suas amigas são pobres, mas têm personalidade, não renegam suas origens.

Até mesmo a busca pelo perfil do príncipe encantado teve sua vez na história das 19h. Entretanto, os autores escolheram trabalhar de forma diferente, não tendo um príncipe tradicional. Cida encontrou Conrado que, a primeira vista, teria todo o perfil do príncipe encantado tradicional: alto, magro, lindo, rico, nascido em berço de ouro.

Contudo, ele se mostrou uma grande decepção para a Cinderela pós-moderna. Seu príncipe encantado estava mesmo era na figura de um jovem advogado, morador também do Borralho, pobre e não tão bonito quando o outro. Não chegava a ser feio, o jovem Helano, contudo, não tinha a beleza clássica do que se imagina como sendo de um príncipe encantado. Mas era outro pobre de coração e ideais nobres. Casal mais perfeito, nunca houve na história deste país.

Podemos afirmar, ao final deste artigo que Maria Aparecida cumpriu seu papel de heroína clássica, sendo feliz para sempre ao lado de seu príncipe encantado na terra do Borralho. Como diria Cláudia Cristina: “ A arte dramática operando com os sentimentos do homem”.

Ninguém resiste uma história bem contada, ou melhor, recontada.

Enquanto houver um ouvido para ouvir, ou um par de olhos para ler e alguém para escrever, as histórias farão parte do nosso cotidiano. Os arquétipos estão aí para comprovar as boas histórias permanecem.

Podem até se modificar na aparência, mas a essência humana continuará lá, porque, como já disse Joseph Campbell, “os mitos são sonhos públicos; os sonhos são mitos privados”.

PS: Este texto foi o trabalho final para a matéria 'Ficção Televisiva' referente ao curso de pós-graduação em Roteiro para cinema e TV na Universidade Veiga de Almeida/2012. O curso teve como professor Rogério Sacchi e as fontes de pesquisas foram os textos dados em sala.

Carla Giffoni
Enviado por Carla Giffoni em 29/12/2012
Reeditado em 04/10/2013
Código do texto: T4058982
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.