ABOLEIMA &+
ABOLEIMA (Pasmo) I – 17 jun 09
Sempre me perturbava quando a via:
algo no seu andar, no olhar, na boca,
esse clarão que, às vezes, nos espouca,
como a primeira camélia que se abria.
Fugaz, como a camélia que caía,
qual na velha canção, que lembra pouca
gente hoje em dia; e, com voz rouca,
repete o verso antigo, que noutro dia
era cantado nas ruas com frequência.
É sensação fugaz – vem e reluz
e se desfaz, ao toque do controle...
Só num resquício o coração me bole,
quando ainda a vejo, na sua decadência,
do feminino passageiro a que me expus...
ABOLEIMA II – 28 SET 2020
Tinha no pátio cameleiras às dezenas,
que no passado o meu avô plantara;
vermelha a maioria, outra mais clara:
rosa-camélia; e uma branca, apenas.
Muito apreciava aquelas lindas cenas,
quando suas flores cada pé mostrara,
mas bem depressa ao solo já tombara
cada camélia, a mim causando penas.
Quando o avistava, tinha palpitação,
meu coração taquicardiava de emoção,
cheio de lástima durassem assim pouco.
Porém caíam as flores ainda inteiras,
deixando os ramos para trás, ligeiras,
como se o solo de suas vidas fosse o foco.
ABOLEIMA III
Eu a achava muito bela, com certeza,
alta e elegante, com passo delicado,
seu corpo inteiro esguio e aprumado:
minha visão ela atraía com firmeza.
Mas nunca soube quem fosse essa beleza,
o seu passar por mim era apressado,
o seu olhar para mim não era alçado:
passava apenas, em sua singeleza...
De certo modo, era minha lenda e mito;
não despertava desejo, só meu pasmo
que uma mulher pudesse ser assim tão bela.
Logo se ía, sem me deixar aflito,
pura aboleima, sem querer orgasmo:
sequer busquei saber o nome dela...
ABOLEIMA IV
Mais tarde a vi, a empurrar carrinho,
depois outra criança nos seus braços;
ainda conservava os belos traços,
ainda raramente em meu caminho...
Mais tarde ainda, cada filho já mocinho,
guardava ainda a elegância de seus passos;
depois vi que era avó, muitos abraços
e beijos recebendo de um netinho...
E finalmente, ficou velha como eu...
Todo esse tempo, ela nunca me notara;
de sua beleza já restava muito pouco...
A vida inteira, sem me ver, passara,
Por acaso, um dia soube que morreu,
Como se a tumba de sua vida fosse o foco.
LAGOA PERFUMADA I – 29 SET 2020
Quando outra vez de mim chegares perto,
amputarei teus pés por garantia
de que não partirás, mas noite e dia
ficarás a meu lado; e meu deserto
coração verá em ti seu céu aberto,
a conservar de ti quanto queria,
cristalizada finalmente a nostalgia,
ao te manter firmemente em pouso certo.
Do sangue que escorrer, farei cadeias,
para amarrar ao meu em permanência,
dois sangues como um só na eternidade,
tão transitória como são as veias,
tão permanente quanto fora a tua ausência,
que me esvaíra de toda a veleidade.
LAGOA PERFUMADA II
As tuas mãos, porém, não amputarei,
para que possas, em ódio, me arranhar,
como vingança de um dia te aleijar,
teus pés cortados, me tornaria teu rei.
Mas de remorso, teus pés restituirei,
que dentro ao coração fora guardar
e com beijos de saliva irei colar:
assim íntegra outra vez te deixarei.
Mas o teu sangue já encadeara ao meu,
numa lagoa de perfume avermelhada,
nenúfares bailando na alvorada,
todo o meu corpo arranhado pelo teu,
a conservar-te presa em meu pecado
de conservar-te inteira do meu lado.
LAGOA PERFUMADA III
Naturalmente, existe aqui metalinguagem,
porque teus pés não cortaria de fato,
de tua beleza seria um desacato,
de qualquer mutilação sem ter coragem.
Mas poderia adentrar em tua paisagem,
para na minha te aceitar no mesmo ato,
essa lagoa a coagular com meigo tato,
mas seu perfume de sangue só miragem,
cada figura de linguagem puro escorço,
só buscaria te prender com suavidade,
muito mais de carinho que paixão,
nesse sentido empregando todo o esforço,
até saber que eras minha de verdade,
quando amputasse para ti meu coração!
CHAVE DO AMOR I – 30 SET 20
Já muita vez ouvi falar da chave
capaz de destravar um coração
e nele despertar louca paixão,
escrita uma canção de Sol na Clave.
Porém preciso que o peito inteiro escave
para disso encontrar a explicação;
achada a chave, descobrir sua locação:
escura mata é preciso que desbrave.
Dizem que existem até certas palavras
que levem cada mulher a se entregar:
conquistadores as saberiam pronunciar;
mas em tantos poemas de minhas lavras,
a desvendar as lástimas mais trágicas,
nunca encontrei essas palavras mágicas...
CHAVE DO AMOR II
Será que a chave do amor está nas rosas?
À namorada entregando um ramalhete,
na fechadura talvez óleo secrete,
odor e bálsamo para as mais formosas...
Há sem dúvida, ritualidades prestimosas,
sempre é preciso que paixão se afete,
um convite para jantar que se intromete,
conversas tolas, talvez mais espirituosas...
Com frequência, assim se compra um coração,
mas certamente o de uma única mulher,
todo o processo a repetir se outra se quer,
talvez que anseie por bem diversa sensação...
Mas, afinal, para que múltipla chave,
que cada peito para nós destrave?
CHAVE DO AMOR III
Pois certamente um só amor me basta,
um beijo apenas acorda minha libido,
uma cabeça a descansar perto do ouvido:
constante busca o real amor afasta.
Troca de rostos e nomes nos desgasta,
troca de corpos desencadeia olvido;
melhor que um só se tenha perseguido,
alguém que antes tenha sido casta...
Não qualquer uma que ceda facilmente,
porque, de fato, já perdeu a fechadura,
abre-se a porta sem grande investidura.
Quero uma chave que só abra finalmente
o coração dessa mulher tão pura
que eu possa amar desesperadamente!