LENDAS E LEGENDAS / ESTROINICE

LENDAS E LEGENDAS I – 19 SET 2020

as notas pingam nesse amor cratera,

desmanchadas em luz e fogo e lava;

a voz eu ouço que me atinge como clava,

ariel e mó de minha longa espera...

mas as notas se dissolvem nessa mera

esfaimação de ti, nem sei se amava

ou se apenas me perdia e te cheirava

nas polpas de meus dedos, garra e fera;

então as notas se derramam como banho

e lavam-me os cabelos e o pescoço

e eu penso em ti desesperadamente,

meu coração tornado em pó de estanho,

a alma inteira acobreada em alvoroço,

sonho de bronze que me amasses realmente!

LENDAS E LEGENDAS II

esse é um amor que me consome totalmente,

do mesmo modo que na lenda antiga;

guiando o Sol contemplo o velho auriga,

que me vem a despertar inutilmente,

pois estás longe de mim e estou dolente,

toda a paisagem ao redor minha inimiga,

em vão Hélios vem puxar a sua quadriga,

não vejo luz ao derredor adjacente;

porque essa luz que um dia me lançaste

requeimou-me por dentro inteiramente

e de meus olhos esgotou quase a visão;

foi como lava que em tal dia me abraçaste,

depois desceste para o mar em fogo ardente,

sem me deixar sequer calor no coração!

LENDAS E LEGENDAS III

em ti relembro os mil contos de fadas,

ilustrações completadas com legendas,

cada quimera a revelar-me prendas,

que revivi em tuas faces encantadas;

só tu és lenda nas minhas madrugadas,

estanho e cobre a iluminar-me as sendas,

com tiras de latão meus olhos vendas,

de azul cobalto teu rosto em alvoradas;

qual alumínio me percorre uma canção,

mil notas brandas de bela sinfonia,

os mil perfumes da quieta maresia,

aço retine no interior do coração;

e por saber que me fugiste um dia,

toco meus guizos no bronze da ilusão!

ESTROINICE I – 20 SET 20

se eu cantar da aranha uma artimanha,

no fio da teia que me enleia atroz casulo,

cada vez mais me prendo enquanto pulo,

ao revelar a artimanha dessa aranha;

se eu percorrer a campanha da ariranha,

amargos globos de ilusão engulo

e meu prazer em tais globos será nulo,

perdendo a pista da ariranha na campanha;

se então buscar o ouro do besouro

ou a seta sutil da borboleta

ou espreitar o urso no seu curso,

só terei o besouro sem ter ouro

e sem a borboleta a dor da seta

e enfim o curso em que me abraça o urso.

ESTROINICE II

se eu espantar de uma rosa a mariposa,

que pelos ares carregue meus pesares

ou numa célula de libélula os espantares,

da mariposa esvaziei a pobre rosa;

não sei se deixo a rosa mais formosa

se gafanhotos ignotos lanço aos ares

ou de louva-a-deus desvencilhar os pares,

comem libélula que sobre a rosa pousa;

se no quintal observar algum pardal,

em seu cantar de simples pipilar,

como um sabiá não saberia gorjear,

não vejo mal no seu humilde carnaval,

nem aos insetos demonstro desafetos,

para o papo do pardal pitéus diletos...

ESTROINICE III

mas se eu roubar potência de uma hortênsia,

os seus corimbos percebendo lindos,

que retintos sob o olhar serão bem-vindos,

terei da hortênsia ramalhete de potência;

se na pimenta eu for buscar ardência

os grãos moendo nos cuidados mais infindos,

bem mais belos acharei esses corimbos

da hortênsia azul e rosa em sua cadência;

mas afinal, por que estas rimas leoninas?

que sejam finas, mas onde está o significado?

no verso alado até podiam ser boninas,

meigas meninas de short alaranjado,

melhor cantados seriam versos de meninas

que estróinas rimas de sentido improvisado...