VERSOS DE VIDRO &+
VERSOS DE VIDRO I – 13 JUL 20
(Inspirado em poema do Rev. Charles Kingsley,
incluído em seu romance “Water Babies”.)
“Eu tinha uma boneca: era tão linda!”
Corpo flexível, cabelos encarnados
(que eu sabia muito bem serem pintados),
Em meu mundo a figura mais bem-vinda!
Quando a encontrei, julguei que fosse infinda
A duração de seus beijos e cuidados,
Deixei por ela até mesmo meus pecados
E acolheu-me, alegre por minha vinda!...
Passaram-se anos e muito trabalhou,
Sofreu alguns incômodos, os abraços,
Ficaram mais escassos, sofrimento mais profundo,
Já não é mais tão flexível, seu cabelo demudou;
“Mas ainda a amo... e vejo nos seus traços,
A mais linda boneca deste mundo!”
VERSOS DE VIDRO II
De certo modo, sei que a desapontei;
Talvez de mim esperasse muito mais
Do que um poeta, como os há demais;
Somente amor desmesurado eu dei...
E nunca em desavença me afastei,
De mim cobrou promessas siderais,
Nunca a deixasse por motivos materiais;
Foi minha rainha, porém não fui seu rei.
Fui mais seu pagem, fiz vezes de jogral
E nos momentos de esplendor, fui menestrel;
Hoje minha voz enrouqueceu e canto mal;
Mas proteção ainda lhe dou em seu quartel,
Qual sentinela, que jamais fui general,
Zângão apenas na colmeia de seu mel...
VERSOS DE VIDRO III
Meus versos são de vidro e se esmigalham
A cada vez que alguém os descartar;
Alguns queria até eu mesmo pisotear,
Quando em meus dedos tantos se embaralham!
Se algumas rimas aqui e ali me falham
E por instante, me flagro a protestar
Dos fios quebrados de seu projetar:
Na interferência com que tantos amealham...
Em dionisíaco ribeiro eu bebo o vinho
E nessa embriaguez tudo é mais fácil,
Mas se é Apollo que vem algo me exigir,
Meu frasco de cristal é tão mesquinho!
Tão raramente a alegoria brota grácil,
Somente os cacos que busco a reluzir!
PESTE BRANCA I – 14 JUL 2020
Durante a Peste Negra, aos milhares,
Corpos levavam para a Vala Comum;
Os que os transportavam medo algum
Sentiam de contrair sintomas pares,
Pois só dos vivos os traços singulares
Da bubônica se transmitiam; e nenhum
Dos mortos a companha de mais um
Requeria para as tumbas em esgares...
Não se sabia o porquê, no tempo antigo:
Eram as pulgas, através de suas picadas,
Que com a morte presenteavam outros vivos;
E como as vítimas já não traziam consigo
Qualquer sangue com que ser alimentadas,
Logo escapavam em seus saltos tão esquivos...
PESTE BRANCA II
Era crença geral que a pestilência
Fosse causada pelo ar viciado;
E como nada pudesse ser provado,
A transmissão alcançava mais potência;
Usavam máscaras com igual paciência
À de hoje em dia, contra o vapor alado
E ao verem quantos tinha a peste dizimado,
Velas queimavam, a suplicar leniência,
E igualmente em precauções inúteis,
Porque a morte de suas roupas espreitava;
Alguns diziam que quando alguém nadava,
Recolhiam-se as pústulas, como fúteis,
Mas na verdade, era a água que expulsava
Esses seus hóspedes ou então os afogava!...
PESTE BRANCA III
Fico a pensar se este atual flagelo
Corretamente entendeu a medicina;
Talvez não seja o vírus que se inclina
A vida a sufocar com tanto zelo,
Mas por trás dele exista oculto selo
A provocar a reação que nos declina,
Qualquer coisa mais sutil, quase neblina,
A nos beijar, astuciosa em seu desvelo...
Não sei se mortos hoje passam a doença
E que esse descarte com tal finalidade
Um exercício seja de tão só futilidade,
Ou pouco mais que religiosa crença,
Hoje que a ciência transformou-se em religião
E lhe prestamos tão fiel veneração!...
PERFUME IRRADIADO I – 15 JUL 20
De ti preciso, que tolice mais singela!
Amo teu gosto de drusa cristalina,
que em mim se parte, em rachadura fina,
mil fragmentos de cansada estrela.
Preciso a cola recobrar da antiga estela,
que um coração soldava, a parafina,
com outro coração da mesma sina,
que a imaculada bênção refaz bela...
Variados cores teu perfume traz de antanho,
brotam dos cacos que o teu cristal rompiam,
nessa teia iridescente em vasto banho,
condensados no incenso que vertiam,
minhas narinas tão frementes nesse ganho,
que nessa intensa nostalgia se perdiam...
PERFUME IRRADIADO II
Sinto fome do perfume de teus dedos,
mesmo que force a própria natureza,
meu alimento não mais que tua beleza,
sugando a fonte fugaz de teus segredos...
Junto de ti, desfalecem tantos medos,
perdida para mim toda a incerteza,
o desespero a desfazer-se na impureza,
horas perdidas em tais sonhos ledos...
Porém preciso de ti perto de mim,
não entrevista num verso ou num suspiro,
acarinhada em real sonho que respiro,
junto de mim, a sufocar-me assim,
teu expirar a penetrar dentro do peito,
pequena morte em que tanto me deleito!
PERFUME IRRADIADO III
De ti preciso, junto a mim bem-vinda,
seja qual for o nome que hoje usas,
seja qual for o rosto das escusas,
somente teu o olhar da fé infinda...
De ti preciso, de contemplar a linda
voluta de um fanal de esguias musas,
não obstante a ausência em que me abusas,
sou expectativa de tua futura vinda...
Preciso tanto de ti e nem sei quem és!
Quem me provoca a mente em exaustão,
quem me assoprou o perfume farejado,
em tuas mãos de vento as velhas fés
de que ainda exista um meio coração
que junto ao meu possa ser reconciliado...