CHUVA FEITICEIRA &+
CHUVA FEITICEIRA I
quando em mim chuva breve se derrama,
alegre então a chamarei felicidade,
talvez amor, quiçá mesmo de ansiedade,
quando algum pingo por meu nome chama.
sobre mim cada pingo que se abana
se entranha facilmente e sem bondade,
até que a alma empape em seriedade
e por momentos até finja que me ama.
porque essa chuva se derrama é para si,
querendo a terra inteira em si tomar
e a desertos só não vai por um capricho.
e quando a penso refrescar-me aqui,
é a própria alma que vem-me retirar
dentro da mente, em malicioso esguicho!
CHUVA FEITICEIRA II
minha chuva és tu e em ti me dessedento
quando estás perto, porém sede eu passo
quando entre nós se expande o triste espaço
a separar-me de meu completo alento.
minha chuva és tu em cada instante bento
em que te encontro no estender do braço,
por mais fugaz que seja esse teu traço,
por mais que o teu carinho seja lento...
pois como a chuva que caia de uma nuvem
nunca se assenta em um único lugar,
meu coração raramente a acompanhar,
empós os raios e trovões que rugem,
logo estás longe e contra a chuva eu peco,
nessa revolta por achar-me inteiro seco!
CHUVA FEITICEIRA III
não sei bem onde estás. sei o que fazes,
que, às vezes, tu me contas... quando queres;
a que lugares foste, teus quereres,
as coisas boas ou más com que te cases.
não sei sequer o leito em que hoje jazes,
só sei não ser o meu. os teus fazeres
a ti pertencem... a mim, os perceberes
de que tua vida gira em estranhas bases.
mesmo que minha gire em torno a ti,
rangendo os dentes perante tuas ausências,
sorriso aberto a cada vez que voltas,
sonhando em vão que estejas sempre aqui,
tu, dama altiva, de tais impertinências,
que um dia me domaste e não me soltas.
LUA FEITICEIRA I
quando meu corpo se for, crescerei flores
ou cenouras, quem sabe, ou então figueiras
e não serei lembrado, mas as jeiras
da terra a que pertenço outros amores
irão gerar (ou talvez, outros horrores,
no derramar do sangue), mas certeiras
essas partículas de mim, alvissareiras,
irão participar de outros fragores,
desde que não me enfiem em gaveta,
consoante o horrendo costume dessa gente,
que prefere criar múmias em caixões,
para esconder de si a visão secreta
de que melhor é ser legume indiferente
do que ossos empilhados aos montões.
LUA FEITICEIRA II
a lua loura lá de cima me observa,
tão transitória qual fora uma mulher;
quatro vezes ao mês muda o mistér,
de seu controle a humanidade serva.
mas sem contar essas fases em que ferva,
quando até brinca brejeira de esconder,
na lua nova, sem brilhar sequer,
bem mais diversa nos mostra outra reserva.
porque é loura só às vezes: amarela
e de outras tantas é ruiva avermelhada
e quando fica pelas nuvens abraçada
é lua morena, como tímida donzela,
mas quase sempre mostra-se grisalha,
quando sua prata sobre nós espalha...
LUA FEITICEIRA III
a lua de verão ser pretende carinhosa:
pelos seus dedos faz rolar a brisa,
entronizada sobre sua sacra frisa,
é lua arcana, sobre as vagas poderosa...
a lua de inverno já é menos generosa,
embora pingue sobre o solo em que se pisa,
mas em sua frialdade os crânios giza,
raios enfia nas mentes, mais curiosa...
então eu penso se me alumbrará,
caso eu tombar à beira de uma estrada
ou balouçar em leves ondas de lagoa?...
até que ponto essa luz me seguirá,
em minha possível viagem estrelada
ou se da alma nem um pouco se condoa...
CHRONOS FEITICEIRO I
na antiga redação da Teogonia,
o sábio Hesíodo nos revelou a geração
dos velhos deuses em sua vasta multidão,
quando um rei a outro rei substituía.
no principio era o Rei Caos, que refletia
somente a si qualquer fora a ocasião,
nada crescia e nem vivia então,
sequer a bruma em seu entorno flutuaria.
mas veio Chronos, o Tempo, do Caos filho
e a cada coisa lhe imprimiu o início,
para bem ou para mal teve o seu vício,
até que Zeus lhe interrompesse o trilho
e resgatasse seus irmãos que devorara,
de novo a história a se iniciar de forma clara.
CHRONOS FEITICEIRO II
o tempo passa e as coisas permanecem,
no mesmo ponto de antes, a não ser
que um fato natural nos surpreender
venha de chofre. é então que desfalecem
todos os tédios... os males já se esquecem
que antes afligiam e até o aborrecer
se esvai depressa... assim, nosso viver
se estraçalha e as aflições se compadecem...
mas há outra maneira de mudar
nosso destino do perpétuo ramerrão:
esta é fazer com que as coisas aconteçam.
somente ao proagir que irás tornar
em concreta tua fugaz abstração
em que os sonhos finalmente coalesçam.
CHRONOS FEITICEIRO III
mas não se pode ao Tempo dar-se corda,
igual que às minúsculas prisões,
em que células do tempo de ilusões
aprisionamos para o momento em que se acorda.
são só retalhos de Chronos que se aborda,
inúteis sendo todas nossas previsões;
o deus antigo tem suas próprias mutações
e com nossos ideais raro concorda...
assim, caso algo quiseres realizar,
o melhor é largar tempos de lado,
pensar apenas no espaço a percorrer;
não conta as horas de teu fatigar,
mas as tijolos de cada resultado,
que o tempo é carne e sangue de teu ser!