TEMPO INDELÉVEL &+
TEMPO INDELÉVEL I – 22 jan 2020
(Para Tristan Riet)
Somente quando, em verdadeiro amor
se encontram dois, existe comunhão:
mais que do corpo, espiritual reunião,
alma na alma, partilha de calor,
que apenas corpos reunidos em sexor,
ou somente abraçados, sem paixão:
não compartilham de um só coração
e até se guardam de um completo expor.
Mas quando se acha a alma hospitaleira,
esse espírito, de fato, nosso irmão,
é que transcorre a verdadeira união;
porque é só nessa entrega, por inteira,
meio emoção e meio pensamento,
que se encontra algum real conhecimento.
TEMPO INDELÉVEL II
Muito difícil conhecer-se alguém, de fato,
sempre há surpresas ocorridas calmamente
ou outras tantas de caráter surpreendente,
algumas delas só escondidas por recato.
Certas surpresas atordoando como um jato,
num momento de cólera infrequente,
que nos parecer provir de estranha gente,
de nós ocultas até então por certo tato...
Vindas de quem encontramos diariamente,
enquanto outras são frágeis percepções
que aos poucos crescem até cristalizarem
nesse momento em que mais se espanta a mente
perante as nunca pressentidas mutações
que haviam brotado para então nos assaltarem.
TEMPO INDELÉVEL III
Toda mulher é uma caixa de Pandora,
muito melhor não bancarmos o titã,
sua fechadura a arrombar em tolo afã,
cada segredo a se escapar do outrora...
porém se as más emoções se vão embora,
fechar a caixa se torna empresa vã,
resta somente o baraço dessa lã
que alguns chamam de esperança nessa hora.
Sem esquecer que é igualmente um mal,
pois raramente para nós se realiza;
mas caso a alma for de fato hospitaleira,
seus sentimentos brilham qual farol:
dorme a esperança e o surpreender se alisa
só quando a mente nos revela inteira...
negaça I – 23 jan 20
a chuva não cumpriu a promessa que me fez:
apenas rilampiou,
depois tronou,
por trás das nuvens,
sem que sequer me mandasse chuveirada,
mas sobre mim pingou
sabores de salsugem:
o mar nos ares, em plena insensatez,
vi nessa noite de lua afugentada,
que o vento trouxe o cheiro e a pequenez
desta minha vida, que não conduz a nada.
negaça II
santa barba e são jeromo esses antigos,
temendo a tempestade,
nos palpos da ansiedade,
invocavam sem real confiança,
mais com medo dessas celestes potestades
que na esperança
de um pronto alívio:
“santa clara, clariai, santa lúcia, luciai,
santo antonio, pai dos pobres,
faz que essa chuva parai!...”
que eventualmente mas sempre pararia...
negaça III
nestes últimos anos, é inegável,
por aqui chove
acima do costume,
não que me queixe,
muito pior que chuvarada é a estiagem.
e mesmo esfria
a cada vez que escorre.
decerto é efeito do “global aquecimento”,
as geleiras da Antártica talvez se derretendo
que desta forma se fazem tempestade
e no final vão nos trazer a glaciação!
O FATO DO FATO I – 24 janeiro 2020
Eu me lembro de usar antes gravata,
casaco e até colete; e uma bengala,
que foi de meu avô, estranha gala
para quem, a contar da vida exata,
nunca ia a festas. A roupa era sonata
tocada sem piano... Um som de fala,
com a língua desligada. A triste escala
de uma vida mais vazia que abstrata.
Depois lembro desistir, a pouco e pouco:
primeiro da bengala, que guardei,
dos coletes depois, porque engordei
e usá-los sem botões, somente um louco.
guardo as gravatas como um malmequer
e hoje... nem casaco uso sequer!...
O FATO DO FATO II
Em consequência do global aquecimento,
ou quem sabe, pelo aumento da pressão
(se bem remédios me receitados são),
ante o calor sinto maior padecimento.
As minhas gravatas entoam-me lamento,
mas os casacos e coletes em ocasião
já morreram sem qualquer reclamação,
contudo, ao menos, não ficam ao relento.
Ainda os conservo no meu guarda-roupa,
uns contra os outros, bem aconchegados,
quem sabe um dia não irão ressuscitar?
De Lázaro sendo a mortalha coisa pouca,
qual combustível talvez sejam transportados
para minha pira quando o corpo se cremar!
O FATO DO FATO III
Falar em “fato” denuncia como antiga
toda essa minha literária formação,
que em Portugal somente ainda usarão
tais expressões que o dicionário me consiga...
Mas para mim é uma palavra tão amiga!
A tantas rimas dando aceitação,
Ipso facto, é para mim predileção,
Tal qual “peúgas” ou mesmo “rapariga”! (*)
(*) Meias
Sei que os “chuís” não me condenarão (+)
por roubar expressões dos lusitanos;
de meu avô, afinal, era a bengala!...
(*) Policiais, “tiras”.
E do outro avô certas gravatas restarão,
se bem duvide que os supérstites humanos (**)
queiram meus trajos guardar sequer em mala!
(**) Sobreviventes
CADEIRAS MUSICAIS I – 25 JAN 20
Não haveria amor se a vida fosse fácil,
Casuais encontros só por reprodução,
Sem romantismos, talvez sem emoção,
Sem celibato ou monogamia grácil.
Só existe amor porque a vida é flébil,
Toda cheia de incertezas sem razão,
Porque o ciúme empapa o coração
Desse verniz que nos recobre débil.
Até parece ser melhor a sociedade
Que enxergamos, olhando ao derredor,
De ligações momentâneas e apressadas...
Embora os excluídos, na verdade,
Sintam talvez a dor muito maior
Ao perceberem todas as cadeiras ocupadas...
CADEIRAS MUSICAIS II
Quando criança, lembro bem desse brinquedo,
Pelas cadeiras invertidas a pular
E quando a música cessava de tocar,
Alguma achava para ocupar bem cedo!
Mas sempre outro teria então degredo;
Dos que restavam desafiando o olhar,
Especialmente quando o último lugar
Era a cadeira que ultrapassava a medo!
Quase sempre, conseguia até ganhar,
O organismo a gozar da adrenalina,
Para a frente apressava-me a chegar
E para trás insistia em me arrastar,
Sentindo, às vezes, uma dorzinha fina
Quando o colega conseguia se assentar!
CADEIRAS MUSICAIS III
Já no amor diverso foi o andar,
Competição já não sendo tão feroz,
Nem a derrota sentindo assim atroz,
Pois contentei-me com quem me quis amar.
E nesta idade, nada mais quero alcançar,
Talvez do amor tenha chegado à foz:
É mais dos versos que permaneço empós:
Queiram os jovens por amor se digladiar!
Não obstante, ainda sinto essa dor fina
Ao contemplar os tantos excluídos,
Sejam velhos, sejam feios, aleijados...
Enquanto a outros tanto se destina,
A cada passo vencedores dos vencidos,
Na exultação de se sentirem invejados!
DRACENAS I – 26 JAN 2020
Têm as dracenas real peculiaridade:
cortado ao caule um fragmento dentro
e as duas metades a se reunir no centro,
logo se unem na maior facilidade!...
Entre os mamíferos diversa a realidade,
quando o nenê ou a cria desse ventre
é retirada se algum fórceps se adentre
ou cesariada por qualquer necesidade,
não morre a mãe quando o feto lhe retiram,
embora sangre e sinta dor potente:
morrer por parto é coisa hoje bem rara,
porém quantas histórias já se ouviram
de nascimento com desfecho diferente,
vinda a criança de maneira mais amara...
DRACENAS II
Dessa dracena a parte retirada
rapidamente irá brotar em novo ser,
ficando o caule sem emurchecer,
mais uma planta para a vida liberada;
mas se acaso precisasse ser cortada
qualquer parte permanente no nascer,
certamente essa mãe iria morrer,
sem que vivesse essa parte ali amputada.
São bem diversos os talhos desse parto,
caso seja mais estreita uma cerviz
e quase sempre bem depressa cicatrizam;
vai o bebê em aconchego para o quarto,
a recompensa maternal que sempre visam,
quando essas dores suportar se quis!...
DRACENAS III
Terrivel seria o caso a dor se recordasse,
em toda a sua excruciante intensidade,
não fosse a biologia artificiosa, na verdade
e tais lembranças velozmente amenizasse.
Não é somente com as mães que tal se passe:
as fortes dores de acidente ou enfermidade
são recordadas com tal peculiaridade,
que ninguém sente de novo esse trespasse.
A gente lembra de ter sentido o horror,
mas esse evento logo passa a ser lembrança,
a não ser que dentro em nós ainda perdure,
do mesmo modo que um falecido amor,
mal percebido esse processo da mudança,
especialmente se um novo amor nos cure...