DORILÉGIO & MAIS

DORILÉGIO & MAIS, 18-27 MAIO 2018

Novas séries de William Lagos

DORILÉGIO I – 18 MAIO 18

Para que servem minhas dores, afinal,

senão lirismo para mais poemas?

O reumatismo transforma-se em verbenas,

dor de ciático em doce madrigal!...

Das dores dos quadrís faço um coral,

pés doloridos um dueto de açucenas,

uma enxaqueca a ser cordel apenas,

dores no peito rubro drama triunfal!

Os tornozelos viram alexandrinos,

dores nas costas em sonetos revivi,

as queimaduras a transformar em hinos,

Sai da tosse contínua uma cantata,

da miopia longo oratório construí,

a dor de dentes transformei numa toccata!

DORILÉGIO II

Já aconteceu que o que faço comentasse

com uma amiga, a se queixar das suas,

que me fitou com expressões bem cruas:

“Que minhas dores em poemas transformasse?”

“Quem sofre dores que a um amor se abrace.

mas essas dores agudas como puas,

dos calos de meus pés, penúrias nuas

diversas são da que a alma me perpasse!

“Entendo bem que tuas penas morais

sejas capaz de transformar em arte:

pungentes penas são as espirituais;

“ou que sejam quaisquer mágoas mentais

que dêem origem as versos de tua parte,

de forma alguma as dores corporais!...”

DORILÉGIO III

Não quis mais discutir com a doce amiga,

especialmente agora, que não sente

qualquer dor física mais impertinente,

talvez alguma espiritual ainda consiga.

Maugrado meu, é preciso que aqui diga

que só a encontro com o olhar da mente.

Seguiu o destino comum de toda gente,

com uma réplica não é justo que a persiga.

Eu só espero que, das dores corporais

estando libertada noutro plano,

não sofra agora de outras mais espirituais.

Como avaliar as dores que sentiu?

Ou comparar às minhas, dote arcano...

Somente posso lamentar o que a feriu!

DORILÉGIO IV

Com mais de um livro chamado “Florilégio”

já deparei. Alguns deles mesmo li;

bem diversos tais poemas descobri,

não me possui semelhante sortilégio;

mas nesta idade, as dores em arpeggio,

com frequência assaltar-me percebi;

quando uma passa, sua amiga surge ali

e por que não fazer delas “Dorilégio”?

E enquanto em versos as decanto, uma a uma,

cada mágoa vira sonhos de latão,

cada tristeza flutuando como pluma!

E quando as dores do corpo fortes são,

mais as transmuto de poema em ruma,

por mais que doam as costas de minha mão!

LUNILÉGIO I – 19 MAIO 18

A Lua desce no banheiro, qual fantasma,

em cintilante cromado amortalhada,

sem impertérrita visão de alma-penada,

nenhuma inquietação sequer me pasma!

Estende os dedos, etérea, um quase nada,

qual ilusão a produzir-me no quiasma,

numa figura esguia, que me orgasma,

por um instante de loucura apaixonada!

Quase suspeito seja mesmo selenita,

a estratosfera cruzando, a me encontrar,

madeixas frias os seus raios de luar;

como alumínio, um dedo seu se agita,

para à frente dos demais se apresentar,

numa visão monótona e infinita!...

LUNILÉGIO II

Não esperem de mim que hoje a descreva

como a dama gentil dos namorados,

metáfora comum, sem dons alados...

Só a imagino como estando presa

nesses ladrilhos e, com certa gentileza,

tanto apanhar do chão dedos gelados,

para deixá-los nos meus acalentados,

pobre avatar bramânico de uma deva!

Se satisfeito estivesse esse luar,

ao debruçar-se em telhados e calçadas,

por que viriam em meus ladrilhos se arrastar

essas alpacas de estanho maculadas,

riscas de luz ante mim estilhaçadas,

como a pedir perdão por me afagar!

LUNILÉGIO III

Já no passado tantos descreveram

esse luar que molha o coração

com sua estranha e fria compaixão;

e quantos outros ao luar temeram!

No plenilúnio muitos se envolveram,

cálido gelo provocando queimação,

níveo palor arcano de emoção;

quantos ainda nele se perderam!

Porque há perigo sobre aléia deserta,

quando o luar se escorre lentamente,

numa tocaia que ninguém aguarda!

Consigo leva quem lhe mostre a alma aberta,

as suas crateras a preencher, contente,

pois quem a adora para sempre guarda!

LUNILÉGIO IV

Tampouco assim se sente satisfeita,

é tão fácil deglutir alma tristonha

ou alma ingênua de paixão bisonha

que facilmente sob o luar se deita!

busca voar, devorada nessa feita,

toda esquecida já dessa medonha

rejeição desse amor com que mais sonha,

quando às gavinhas da Lua se sujeita!

Telhados cobre como luzes de alumínio,

só os gatos sentem a dor desse amianto,

uivam os cães perante o lenocínio,

sempre que a Lua seus raios prostitui,

a preço apenas de mil gotas de pranto,

no melancólico fulgor que à noite flui.

LUNILÉGIO V

Mas essa Lua Cheia que se esgueira

pelas lajotas e capachos do meu chão

não me pretende beber o coração,

nem armadilha me prepara sorrateira;

se espalha leve, nessa invasão ligeira,

enviesada num sarcasmo de emoção,

qual sacrilégio a prateada confissão,

um raio apenas, em que se entrega inteira!

Não é a lua sutil dos namorados,

nem a luz patibular dos enforcados,

está completa e desvestida nesse fio,

nessa metálica folha protetora,

fina demais para fazer-se sedutora,

pálida chama débil no seu cio...

LUNILÉGIO VI

Ao se esticar, alfombra de meus pés,

a Lua erguida há tantas gerações,

alume em lascas de mil gradações,

musa perdida na mica dos atés,

acrisolada em sabor de canapés,

electro sólido, escrava das prisões,

demarcada pela noite em mutações,

sem mais poder-se firmar nas velhas fés,

a Lua viva, um escorço de lamento,

querendo apenas tornar-se permanente,

infiel à adoração de qualquer crente,

a sublimar-se em mim nesse momento,

que assim tornasse humana a deusa eterna,

em mim brilhando qual límpida lucerna!

RITMO METAFÍSICO I – 20 MAIO 18

Algumas vezes, as paredes me sorriem,

em seus gestalts a formar faces pequenas,

imaginárias estruturas às centenas,

que das fendas do reboco nos espiem;

para outros, talvez até dentes afiem,

para mim não. Quiçá despertem penas,

quando muito. Raramente algumas cenas

tais marionetes ao interpretar aviem.

Mas nunca chegam a mostrar-me movimento,

somente junto às riscas das paredes,

algumas manchas de mofo irregulares,

satisfazendo qualquer arcaico sentimento,

a solidão sendo afastada por tais redes,

ou talvez monotonias mais vulgares.

RITMO METAFÍSICO II

Há certas coisas que herdamos desde o berço,

alguns padrões em primitiva cruz,

em que o olhar da mãe reflita a luz,

nariz e boca num acanhado terço;

nessa primeira infância em sonho imerso,

cada um de nós semidesperto se conduz;

do rosto humano a compreensão se induz

só lentamente, num esculpir inverso,

logo apagado por um reconhecimento

ainda um pouco obscuro e misturado,

quando outros rostos temos contemplado,

partilhando igual esquema em sonho lento,

olhos, ouvidos, bocas e cabelos,

emaranhados da mente em mil novelos!

RITMO METAFÍSICO III

Um ritmo só se forma calmamente,

em que cada fisionomia já se encaixa,

que sobre a beira do bercinho baixa,

diferenças a descobrir em toda gente;

mas há um modelo geral e permanente,

horizontais as sobrancelhas numa faixa,

o queixo e as faces comprimidos numa caixa

em que a boca alegre ou triste se apresente.

Mesmo o nariz sendo mais proeminente

Em vertical é um tanto disfarçado

pelos lábios, pela boca, algum bigode;

barba, se houver, nova moldura assente,

um cão ou gato aos poucos destacado,

mas um padrão encontrar sempre se pode.

RITMO METAFÍSICO IV

Não é de admirar que se divise,

em três ou quatro pontos da parede,

nos ladrilhos do chão que a vista mede,

em um momento de distração ou crise,

qualquer rosto singular que ali se gize,

que por momentos ao imaginar acede,

que companhia primordial concede

a face ao lado ou essa outra que se pise!

À qual se dá uma atenção casual,

sem esperar que um olho pisque ou a boca

nos dê um aviso ou um simples cumprimento,

embora algum, desfaçatez tendo mental,

possa escutar, numa esperança louca,

voz diabólica ou de anjo em tal momento!

SIMILARIDADES I – 21/5/2018

A cada vez que encontro semelhança

De um país estrangeiro na paisagem

Com a existente em meu pampa selvagem,

Uma estranheza em meu olhar se lança,

Que até o ponto que minha mente alcança,

Há imensa variedade na pastagem

Deste Brasil acarinhado pela aragem

Que do Amazonas e dos Andes nos balança.

Por que seria a paisagem do estrangeiro

Mais parecida com estas que conheço

Do que as outras paragens do Brasil?

Da memória fímbrias a estimular ligeiro,

Enquanto em trilhos ou estradas eu me apresso,

Nas tempestades ou sob um céu de anil.

SIMILARIDADES II

Já nas cidades a coisa é diferente:

Os monumentos são outros e as mansões

Que servem de cenário às multidões,

Muito diversas nessa terra em que me assente,

Foram erguidas por bem díspare gente,

Na variedade das imaginações,

Há ruas amplas em suas dimensões,

Outras vielas, de retorcer frequente.

É bem verdade que marés existem,

Novo estilo arquitetônico a copiar,

Para as moradas antigas desmanchar,

Em que às vezes muito poucas só persistem,

Nessa ânsia louca pela modernidade

Que algumas vezes assola a humanidade!

SIMILARIDADES III

E chega o ponto de ser irreconhecível

Qualquer modernizado quarteirão

E então nos move estranha sensação,

Meio obscura, mal e mal perceptível,

Isso que chamam déjà-vu, esse impossível

Reconhecer em tal nova situação,

Que nunca vista teria sido até então,

Alguma coisa de semi-cognoscível.

Mas com frequência, de fato já encontramos

Prédios iguais, iguais ruas e calçadas,

Que algures foram por outros já copiadas

E um labirinto para nós mesmos fabricamos

Na busca ingênua de algo familiar

Que em seu conjunto não nos venha ameaçar!

SIMILARIDADES IV

Bem ao contrário, na natureza achamos

Paisagens totalmente semelhantes

Àquelas encontradas muito dantes,

Mas uma igual sensação não deparamos,

Ao perceber nisso que experimentamos

Semelhanças reais, sempre constantes,

Sem ameaças ao inconsciente delirantes,

Que apenas no interior de nós formamos.

Não obstante, alguma vez tal déjà-vu,

Ao invés de consolar, nos incomoda,

Em situação que mesmo seja familiar,

Se suspeitamos nossa presença ali,

Nesse futuro que escorre à nossa roda

E por instantes nos vem avassalar!

SIMILARIDADES V

O mesmo ocorre eventualmente com estranhos,

Que nunca vimos, mas parecemos conhecer,

Tão semelhante entre nós o parecer,

Muito pouco divergentes os tamanhos;

Um meio metro, em geral, entre os tacanhos

E os mais altos que se possa ver,

Enquanto os cães, para um exemplo fornecer,

Tão diferentes são em seus amanhos!

Um Chihuahua ou Caniche fraldiqueiro,

Que se é capaz de segurar na mão,

Mal se concebe que da mesma espécie são

Que o São Bernardo, das neves pegureiro

Ou esse imenso cão Dinamarquês,

Vinte vezes maior que um Pequinês!

SIMILARIDADES VI

Torna-se fácil assim traços confundir,

Ao caminharmos por outras cidades,

Tão semelhantes suas humanidades,

Mas olho em volta e fico a perquirir

Por que na França ou Turquia descobrir

Rostos e portes dessas similaridades

Tão evidentes com antigas amizades

Ou com parentes na memória a me dormir?

Ao mesmo tempo, sabendo que não são

Esses que vivem dentro da lembrança,

Sem que me abale então o déjà-vu;

Só se reforça em minha percepção

De serem frutos de uma ideal pujança,

Que ali se encontra, igual que a vejo aqui.

PRECAUÇÕES I – 22 MAIO 18

Esguicho OFF ao redor de meu divã,

esperando os mosquitos pôr em off,

que seu transtorno para mim afofe,

sem perturbar-me em seu agudo afã.

Não me protege um cobertor de lã,

calor aumenta que do descanso mofe,

mas veloz ventilador canta uma estrofe,

guinchando às vezes, num coaxar de rã!

Tenho cartões repelentes na tomada,

diz o invólucro ser um vaporizador,

seu acre odor na peça perfumada

e a brisa espanta essa assassina alada,

mosquiticídio reforçando com ardor,

na esperança de evitar qualquer picada!

PRECAUÇÕES II

Antigamente se vendiam mosquiteiros,

em transparente muralha de filó;

bem entalados, nem um mosquito só

achava abrigo sob os travesseiros;

se bem que alguns se mostravam cavorteiros,

voando esquivos como um leve pó;

batíamos palmas, de uma forca o nó,

quais os floretes de antigos mosqueteiros.

Sempre encontrei nesse nome uma estranheza,

desde menino, em romances capa-e-espada,

abeberei-me nesses duelos varonis,

nessas mil fintas e embates, com certeza,

mosquete algum em escaramuça apresentada,

só usando espadas contra os guardas vis...

PRECAUÇÕES III

Antigamente, também menos doenças

os mosquitos transmitiam, mais nas matas,

febre amarela e malária com suas patas

e seus probóscides de sovelas tensas;

na Amazônia se achavam nuvens densas

e nas cidades suas legiões ingratas,

já combatidos desde antigas datas,

fumigações para afastar as suas ofensas.

É bem verdade que venceram os Romanos,

tantos deles por malária dominados

que não podiam mais nas tropas combater

e precisaram mercenários dos Germanos

contratar, para as guerras tão treinados,

que o Império inteiro foram depois submeter!

PRECAUÇÕES IV

Contudo, hoje há doenças africanas;

dos escravos, a Dengue foi vingança;

em sua viagem perdida já toda esperança,

mas em seu sangue bactérias soberanas

que desde o século dezoito, em cruas ganas,

os mosquitos propagando sua matança,

no povo inteiro essa endemia avança;

na doença amos e escravos sempre irmanas.

Mas nos chegaram a Chikungunya e a Zyka

e até novos mosquitos importamos,

esses descritos lá no Egito em seu começo,

ofensa bem maior se algum te pica,

microencefálicas crianças lamentamos,

mais que suas mães pagando um alto preço!

PRECAUÇÕES V

Não ponho em dúvida que foram os ilegais,

escondidos dos cargueiros nos porões,

ou nos trens de aterrissagem de aviões,

que nos trouxeram doenças tão mortais.

Ali ocultados por motivos naturais,

sem passar por exame ou inspeções

em muitos deles, através de gerações,

resistência já formada aos vírus tais.

Talvez trouxessem, quais crueis mascotes,

nos mesmos compartimentos de cargueiros

ou nos trens de aterrissagem, sorrateiros,

esses mosquitos, para novos convescotes,

tomara Deus não chegar Febre do Nilo

ou a Ebola, protegidas nesse asilo!

PRECAUÇÕES VI

Mas ninguém pense que aqui haja preconceitos,

tem a África já excesso de habitantes,

lá não existe canibalismo como dantes,

nem as guerras tribais de antigos feitos;

de tratamentos e vacinas os direitos

jamais lhes negaria, mas constantes

crescem as populações e os elefantes

são caçados para à mesa dar proveitos!

Pois que eles venham conosco trabalhar,

em especial de Moçambique ou Angolanos,

Guiné-Bissau e onde mais falem português.

O que me oponho é a mosquitos importar,

que já os temos suficientes e os afanos

para matá-los em qualquer cidade vês!

Persistência I – 23 maio 2018

Há onze anos que um maldito gato

Mordeu-me a mão e nela encontro ainda

Vestígios da mordida tão mal-vinda,

Inchada em parte no decurso desse fato.

Eu só espero que num porão ou mato

Se encontre seco o autor de tal infinda

Marca de ferro, na mão ferida linda,

Que me incomoda ainda, sem boato!

A minha destra realizou tantos trabalhos,

Para a saúde recobrar não foi difícil,

Não tive raiva e nem tetanização,

Mas de tanto martelar, quebrei os malhos,

Perdido o gosto da tarefa físsil,

A mangra ainda no dorso desta mão.

Persistência II

E como isto contraria minha certeza

Do transitório das coisas permanentes,

Retorno eterno das quimeras infrequentes,

Do passamento da alegria e da tristeza,

Sepultadas em mil cofres de impureza,

Substituídas por mil coisas diferentes,

Poucas memórias de fato persistentes,

Só memórias de memórias sobre a mesa

De meu altar, que apelidei de vida,

Sem jamais nele celebrar a eucaristia

Que algo perpétuo viria a garantir,

Sem nem saber se por mim foi escolhida

Esta mochila por mil fatos preenchida

De um outro eu só no antanho a existir.

Persistência III

Com tudo isso, ainda se encontra a cicatriz,

Traz três ou quatro manchinhas ao redor,

Sem similares brotando ao derredor,

Somente aquelas que sem prazer refiz,

Esmaecida a memória que me diz

Estar igual o gilvaz desse penhor

Que me deixou o gato em seu pendor,

Na escaramuça que eu mesmo nunca quis!

E eu bem queria no “quis” Z conservar,

Pois me parece tal querer interrompido,

Por esse S minha vontade a desvirtuar!

E gostaria, mais ainda, de apagar

Essa Marca que da Besta tem sofrido

Minha mão direita, sem podê-la descartar!

METEMPSICOSE I – 24 MAIO 2018

Quem sabe, possa alguém imaginar

que se achem nas paredes incrustradas

riscas escusas de vidas já passadas

desses antigos habitantes do lugar!

Vibrações pode algum médium te indicar

dessas pessoas da vida já afastadas,

nem sequer um corpo astral, quase pegadas,

que sua presença ali pôde deixar!

Neste escritório somente morei eu,

muito embora tenha tido visitantes...

Vibrações teriam deixado aqui perdidas?

Mas um vestígio preferia fosse meu:

que contemplasse os rostos deslumbrantes

dessas mulheres que tive em outras vidas!

METEMPSICOSE II

Ou, quem sabe, noutras vidas fui mulher,

talvez por isso goste tanto de crianças,

talvez por isso conserve em esperanças

que a raça alcance evolução qualquer;

talvez por isso eu cumpra o meu mister

de intérprete alternativo das variâncias

que essa alma feminina, em mil instâncias,

nos transmite, em constante mal-me-quer!

Por certo em mim há a sensibilidade,

que chamam feminina, para a arte,

para a paz, para o suave, para o belo,

mesmo que minha total sensualidade

sempre se volte para a humana parte

que o futuro alimenta em leite e zelo...

METEMPSICOSE III

Não me cabe garantir reencarnação,

mas nego firme essa metempsicose !

Seu próprio nome já sugere psicose:

que em animal se enquadre flutuação

da alma humana na seguinte encarnação!

Há uma doutrina que o Cristianismo pose,

determinando uma exclusiva osmose

entre a alma e um só corpo: a Comunhão

dos Santos, que advoga essa partilha

de toda e qualquer recordação ,

não apenas de alguns antepassados,

mas de todo que na raça se perfilha,

mesmo que ainda não tenha a ocasião

de nossos passos seguir atribulados.

METEMPSICOSE IV

Grande serpente a percorrer a eternidade,

desde os nossos limitados ancestrais

aos nossos descendentes, até os finais

dessa epopeia que se chama humanidade.

Com Ouroboros guarda similaridade,

o grande verme do espaço-tempo nos fanais,

que morde a própria cauda, sem jamais

ter começo, nem fim, na eternidade.

Porém de fato apreciaria ter certeza

de que já estive aqui em tempo arcano

e de que retornarei uma e mil vezes,

meus fragmentos a compor toda a beleza,

cada experiência humana, sem engano

reconhecendo na multidão dos meses!

ÂMAGO I – 25 MAIO 18

a vida é de abandonos sucessão,

nosso tempo desgastamos diariamente,

largamos sonhos em multidão dolente,

dias moemos no cadinho da ilusão;

a infância e a adolescência que lá vão

deixamos para trás, conscientemente,

não somos mais os mesmos, é evidente

dessas décadas de ontem que aí estão;

perdemos as surpresas, sentimentos,

a luz da estrela e todo o solar brilho

dos dias antigos, enquanto nós vivemos,

memórias restam em difusos pensamentos,

compondo os fragmentos de vidrilho,

longo colar das coisas que perdemos!

ÂMAGO II

toda a tristeza do passado se esgotou,

não são as mesmas as lástimas de hoje;

toda a alegria de ontem se nos foge,

nova alegria nosso cérebro forjou;

todo alimento ou bebida se gastou,

todo esse ar que nos pulmões se aloje,

todo o desgosto que o coração enoje,

nosso organismo cada célula mudou;

e tal como abandonamos mil de Nós,

cada ser a quem amamos já se foi,

são novos Deles que beijamos neste dia,

cada momento a tropeçar empós

desse futuro que a nossa ânsia rói

na inexorável marcha da agonia.

ÂMAGO III

e que nos resta de tanto que deixamos?

tão somente as memórias das lembranças,

descoloridas até tornadas mansas

violentas emoções que experimentamos;

e até mesmo tais lembranças descartamos,

igual que o coração, em firmes danças,

para trás deixa mil batidas, longas tranças:

para onde foram as visões que contemplamos?

e quanto mais as coisas materiais:

se as conservamos, são puras ilusões,

não são as mesmas, ainda sendo iguais;

gotas da alma na senda abandonadas,

rastros do sangue filtrado nos pulmões,

mil e uma mortes para trás deixadas!

ÂMAGO IV

o que se encaixa no âmago do ser,

senão o brilho de mil bijuterias,

as jóias mesmo quebradas nessas vias

que ainda trilhamos em constante percorrer,

cacos somente de nossas alegrias,

lascas apenas do luto a se escorrer

estilhas de rancor a perecer

no lusco-fusco das melancolias...

em qual canto da mente tais memórias,

substituídas mesmo as células neurais

dão-nos lembrança das coisas que deixamos?

ou diariamente se rescreve histórias

que julgamos serem nossas bem reais,

enquanto as verdadeiras já cremamos?

desarmonia 1 – 26 maio 2018

em certos sonhos descubro que o banheiro

está alagado ou não tem adequação,

não acabaram ainda a construção,

ou ainda o encontro ocupado por terceiro!

o que fazer, quando alguém chegou primeiro?

mas esse é um sonho de fácil solução,

real premência a sentir nessa ocasião

de que abandone depressa o travesseiro!

assim me acordo para tal necessidade,

de preferência a passar uma vergonha,

na minha idade, passaria por pamonha,

caso os lençóis umedecesse sem vaidade!

porém meu subconsciente é caprichoso,

sendo educado de modo primoroso!...

desarmonia 2

por sorte minha, eventos tais são raros,

surgem mais quando não quero me acordar,

a instalação hidráulica a clamar,

meus olhos sem abrir nesses reparos.

mas nos momentos que me são mais caros,

água do joelho provocam-me a tirar,

para qualquer sonho dourado recortar,

não há razão para acionar alheios faros...

até o presente, nunca fui a geriatra,

não me parece de tal necessitar,

caso fraldas tenha um dia de comprar;

se bem recordo, nem mesmo um pediatra,

por enurese me precisou recomendar,

após as fraldas infantis abandonar!

desarmonia 3

alguns afirmam que é questão de insegurança

que leva alguns suas roupas a molhar;

por sorte sempre pude me apertar,

fui bem treinado desde “de criança”!

só um problema então assim me alcança:

após quatro ou cinco horas sujeitar,

quando posso finalmente me aliviar,

meu esfíncter se recusa com pujança!

e então preciso, aos poucos, convencer

este anel muscular a se afrouxar,

lembrando velhos momentos de prazer,

de a orgasmo urinário me entregar,

para lépido e fagueiro então correr,

sem ser preciso mais com a mão me segurar!

Pendão do Sul I – 27 maio 2018

Bem no meio da planura, nasce o ombu,

Sem que ninguém saiba como, que semente

O trouxe para ali, que não foi gente,

Nem passarinho, nem rez, nem urubu.

Nasceu mais por acaso, separado

De todo o pampa, valente, mas sozinho,

Dando sua sombra sem ganhar carinho,

Ante o ronco do pampeiro desgarrado.

A mesma coisa aconteceu com o Rio Grande,

Na Zona Sul em que o minuano mais repica,

Vasta e vazia sob claro céu de anil.

Igual que o ombu, já cresceu, não mais se expande,

Tão solitário como o pampa fica,

Tão excluído do resto do Brasil!

Pendão do Sul II

Madeira boa o ombu não nos fornece

E nem ao menos dá-nos boa lenha,

Somente a sombra em que o haragano tenha,

Acampamento se o verão demais aquece.

A sepulturas não concede prece,

São grossas suas raízes como penha,

Mas à distância se ergue, como senha

Que em nossa direção o amor não desce.

Mesmo na chuva é uma escassa proteção,

Não é muito frondosa a sua galhagem

E a água escorre sobre tua cabeça

Que o vento sopra de cada direção,

Isolado que se encontra na paragem,

Sob o granizo e a geada que não cessa.

Pendão do Sul III

Como símbolo se apresenta do Rio Grande,

De certo modo, se bem que inversamente,

Que os impostos são mandados, certamente

E a cada ano a exigência mais se expande,

Mas se pedir a Brasília que algo mande,

Ao invés de auxílio, talvez mande até mais gente,

Que lhe garanta a cobrança mais frequente

Ou novas leis seu exigir comande.

Boa madeira tem o meu estado,

Embora exótica na sua maioria,

Só mata ciliar ou capões sobre a coxilha,

Cujo corte o Ibama tem vetado,

Mesmo que eu mesmo não o permitiria,

Cada árvore a amar do pampa filha!

Pendão do Sul IV

Mas certamente tem interesse limitado

No preservar de nosso ecossistema

Esse governo central que nos condena

E qual colônia nos tem considerado.

Mas o ombu, mesmo assim desamparado,

Enfrenta a intempérie e não se empena,

Hamadríade de raça e pura gema,

Muito raro ser algum desarraigado!

De modo igual, o meu Rio Grande puro,

Mesmo sendo há gerações considerado

Não como filho, porém como enteado,

Resiste bem a seu destino duro:

Da cepa antiga a lasca sobrevive,

Na seiva audaz que o cerne novo ative!