CRÔNICAS D'EL REY - coroa de sonetos

CRÔNICAS D'EL REY - coroa de sonetos

CRÔNICAS D'EL REY - soneto geratriz

Escuto o velho rei em seu lamento

D’experiência inútil, pois tardia:

Glosa o mote da vã sabedoria,

Pois sem valia ao sábio em sofrimento.

Outro beija-mãos... Sua Majestade

Reina absoluto pela Boa-Vista!

Alta noite, porém, passa em revista

Todo o Paço vagueando em soledade.

Ao fim, como um rosário de remorsos

Recorda a si seus ávidos esforços

Como se algum espírito noturno.

Parvo! Não obtêm glórias a obsessão...

Esplendores tampouco... Vãos ou não,

Chamam-no Dom Fuão, o taciturno.

* * *

CRÔNICAS D'EL REY - soneto primeiro

Escuto o velho rei em seu lamento

De figura admirável na ampla sala

-- Mais bruxuleiam círios sobre a opala,

Pondo as sombras do Paço em movimento.

Hesita El-Rey em cada mal momento

Até quase inaudível sua fala...

Por tão terrível crime, ele se cala:

E às paredes segreda o seu tormento.

Percebe-se o remorso ali tão denso

Que poderia El-Rey tocá-lo -- eu penso --

Enquanto a narrativa reinicia.

Sequer justificava mais seu trono,

Tal a sinceridade no abandono

D’experiência inútil, pois tardia...

* * *

CRÔNICAS D'EL REY - soneto segundo

D’experiência inútil, pois tardia:

Renuncia à realeza e à realidade...

Habitante das nuvens, em verdade,

Entre sombras e luz se refugia.

--"Trovador" -- diz El-Rey -- "Quem o diria?..."

“Canta meu Reinado que se evade

Fazendo-me memória da vontade

Que desde cedo o espírito me ardia”

“A noite nos acolhe em seu regaço

Tão-só constelo estrelas pelo espaço

Enquanto te relato outra ousadia

Jamais favorecida pela sorte...” --

Ora El-Rey, quer alerte; quer conforte,

Glosa o mote da vã sabedoria:

* * *

CRÔNICAS D'EL REY - soneto terceiro

-- "Glosa o mote da vã sabedoria

Quem pelas convicções mais verdadeiras

Por extremos de tão móveis fronteiras,

Derrota após derrota conhecia...”

“O Reino em expansão nos florescia,

Quando ascendi ao trono por maneiras

Tão vis qu'eu nem sequer às derradeiras

Palavras de meu pai obedecia.”

“Eu fora convencido por bandidos

A governar nomeando-os meus validos,

Movido pela urgência do momento.”

“Feito por fazedores de maus reis,

Governava ao arrepio já das leis,

Pois sem valia ao sábio em sofrimento”.

* * *

CRÔNICAS D'EL REY - soneto quarto

Pois, sem valia ao sábio em sofrimento,

Mal diferia já o certo e o errado.

El-Rey -- pela lembrança atormentado --

Cala-se com um esgar mais violento...

Ele me olha em profundo desalento

Sem saber que dizer de seu passado.

Por crimes bem sabia ser lembrado,

Esperando da História o julgamento.

Anseia ser esquecido ao fim, talvez...

Porém, quer confessar tudo o que fez

Em rimas a guardar-lhe o pensamento.

Pressentindo-se a queda da Coroa,

Manda-me vir poetar para Lisboa...

(Outro ” beija-mãos” Sua Majestade?).

* * *

CRÔNICAS D'EL REY - soneto quinto

Outro beija-mãos, Sua Majestade:

-- “Vossa Alteza Real, grão senhor nosso!

Se for de seu agrado, ainda posso

Dar das Reais razões a realidade.”

“Oxalá seja eu fiel só à verdade

E logre ater-me aos factos com o endosso

Já d’El-Rey dado a mim, servo revosso,

Fazendo jus a tal grandiosidade.”

Ao que interrompe El-Rey subitamente:

--” Um grande? Não! Far-me-ás de novo gente,

Mediante rimas límpidas de artista.”

Dito isso, ambos quedamos expectantes

Enquanto o silêncio, tal como antes,

Reina absoluto pela Boa-Vista...

* * *

CRÔNICAS D'EL REY - soneto sexto

-- ”Reina absoluto pela Boa-Vista

Um rei velho, cansado e lamentoso.

Vislumbra pelas sombras o andrajoso

Poeta cuja desgraça conhecia.”

“Coube a este pôr em letras quanto ouvia,

Memorando um Reinado desgostoso...”

-- E calo... Eu me interrompo pesaroso

Que tal sinceridade me traía. --

--”Prossegue, trovador, já não te cales.

O retrato que narras tem os males

Do retratado, não do retratista."

Ao que respondo: --“Sim, assim farei.”

Toda a historia a narrar, o velho rei

Alta noite, porém, passa em revista.

* * *

CRÔNICAS D'EL REY - soneto sétimo

--“Alta noite, porém, passa em revista

O Infante aos conjurados pelo trono.

Cercam-no outros larápios, cujo sono

Se perde na ambição de má conquista:“

-- ““Por morto o irmão e louca a mãe, invista

Em tirar a Coroa do abandono!..." –

Logo após, negociavam-se outro abono,

Tão-só suas fortunas tendo em vista.”

“Assim fora Regente e, após, El-Rey...

E, por confuso, o Corso eu enganei

Quando o Antigo Regime ruía lento.”

Saboreia a ironia vã da História

Ainda a recordar sua mor glória,

Todo o Paço vagueando em soledade.

* * *

CRÔNICAS D'EL REY - soneto oitavo

-- “Todo o Paço vagueando soledade,

Napoleão a enganar fora enganado...

Na partida ao Brasil, trouxe ao meu lado

Um misto de esperança e desalento.”

“Sem embargo, encontrei mais sofrimento...

Não vi senão conflitos no Reinado!

Mesmo ao fugir de guerras, derrotado

Fora ao longo d’um século violento.”

“Vencido o Corso, a Corte me apregoa!

Sequer posso voltar para Lisboa,

Sem contar com britânicos reforços.”

“El-Rey de Portugal, Brasil e Algarve

Remoendo pelo Paço, insone e alarve,

Ao fim, como um rosário de remorsos...”

* * *

CRÔNICAS D'EL REY - soneto nono

-- “Ao fim, como um rosário de remorsos,

Muitos a recordar-me indecisões.

Em derredor, tão-só conspirações

Para após anistiar de maus desforços ”

“Os corruptos às voltas com extorsos

E os fidalgos com outros galardões.

São parasitas vistos aos milhões

Sobre sangue e suor de negros dorsos...”

“Acompanho este século perplexo.

Nem a Corte, ou outro arranjo desconexo,

Haverão-de livrar-nos d'outros Corsos...” --

Hesita novamente o soberano,

Pois, buscando ser fiel ao próprio plano,

Recorda a si seus ávidos esforços.

* * *

CRÔNICAS D'EL REY - soneto décimo

Recorda a si seus ávidos esforços:

--“Para manter unido o Reino inteiro,

Ordenei desde o Rio de Janeiro

Organizar a volta co’os reforços.

“Todavia, grassavam os extorsos,

Quer em solo europeu; quer brasileiro.

Contra os quais me isolei por altaneiro.

Embora claudicando entre estorços.”

"Ousara o que jamais um rei ousara.

Quando, ao sul do Equador, tive a luz clara,

De ver o Corso em França mais soturno."

"No Brasil, fiz o Reino ser reunido.

Por isso, o Paço tenho percorrido

Como se algum espírito noturno..."

* * *

CRÔNICAS D'EL REY - soneto undécimo

--"... Como se algum espírito noturno,

Em insones andanças pelo Paço.

Concilio a minha angústia co'o cansaço

D'esse terrível ímpeto diuturno."

"Há anos n'essa sala já me enfurno

Em longos beija-mãos que aqui refaço,

Para voltar à noite, passo a passo

Carregando um semblante taciturno."

"Quem por acaso vê não me compreende

A dor que do Encoberto 'inda descende

Obrigada às razões do coração." --

E embora insone sonhe o Quinto Império,

Ele súbito explode ao extremo hespério:

-- "Parvo! Não obtêm glórias a obsessão!..."

* * *

CRÔNICAS D'EL REY - soneto duodécimo

"Parvo... Não obtêm glórias a obsessão..." --

Repete El-Rey a si já se acalmando.

Após tal paroxismo, ao seu comando,

Tornei a acompanhar sua narração:

-- "Dos remorsos que trago ao coração,

O pecado maior; o erro mais nefando,

Foi não manter o Reino unido quando

Caiu em definitivo Napoleão

"A partilha do Império já tramada

Pelas nações amigas... Cuja entrada

Em nossos portos dera eu permissão!..."

"Assim vimos partir mais rios d'ouro:

Exauridas as Minas, sem Tesouro...

Esplendores tampouco, vãos ou não..."

* * *

CRÔNICAS D'EL REY - soneto tredécimo

-- "Esplendores tampouco, vãos ou não?..." --

Contesto: -- " Vossa Alteza reina ao sul!"

-- "Deveras... Qual andasse por um paul

Ir governar dos trópicos Nação..."

"Britânicos com brigues vêm e vão;

Franceses, de Lisboa a Istambul...

Parecem almejar o céu azul

E o mundo reduzir a quase um grão".

"Terras e reinos reuni n'um mesmo cântico

D'uma margem até a outra do Atlântico

N'esse meu caminhar só e noturno." --

Todavia -- penso eu comigo mesmo --

Por caminhar insólito à noite e a esmo

Chamam-no Dom Fuão, o taciturno...

* * *

CRÔNICAS D'EL REY - soneto quadridécimo

-- "Chamam-lhe Dom Fuão, o taciturno,

Alteza Real, não grande ou clemente...

A sua caminhada, verazmente,

Mais faz especular o horror noturno."

"Se fora Napoleão corso e soturno,

Também um vencedor, cuja alva gente,

Parece idolatrar como somente

Veneraram romanos a Saturno..."

"Enquanto o sirvo pela noite, Alteza,

Eu tento traduzir dor em beleza

E ainda acompanhar seu passo lento.

"Mas digo se perguntam o que faço

A noite toda andando pelo Paço:

--"Escuto o velho rei em seu lamento.""

Contagem - 30 09 2012