O AMIGO OCULTO
O AMIGO OCULTO
Tinha, por mais incrível que pareça, um amigo oculto. Não desses que por sorteio dão presentes convenientes no fim do ano. Não, era antes aquela amizade secreta que alguns talvez considerassem mera simpatia; algo sem motivo e sem interesse. Era alguém que gostava dele de graça, sempre acompanhando sua existenciazinha de longe, numa torcida muda e voluntariosa. O facto é que volta e meia apareciam cartões escritos à mão em papel colorido na sua caixa de correio. Frases simples que, entretanto, iluminavam o seu dia tanto quanto o próprio sol. Um pequeno mimo de cujo prazer gozava imenso e que sempre o surpreendia positivamente.
Não que encontrasse cartões todos os dias. A frequência do fenômeno era absolutamente arbitrária. Podia passar anos sem receber os cartões ou recebê-los quase diariamente por semanas! Não havia qualquer lógica, visto que as datas comemorativas do calendário -- ou mesmo as suas pessoais -- não pareciam fazer diferença para esse personagem misterioso. Os cartões simplesmente apareciam, enviados sem remetente pelo correio e com carimbo de uma anônima agência central...
Durante algum tempo preocupou-se com aquilo: Não parecia algo comum... Mas com o passar dos anos percebera que, quem quer que fosse o autor secreto, ele não parecia disposto a dar se a conhecer sequer para receber um agradecimento ou permitir que tanta gentileza fosse retribuída d’algum modo. Por outro lado, também percebera que aquele amigo oculto, d'um jeito inexplicável, o conhecia bem a ponto de sempre lhe escrever exatamente quando mais precisava de uma frase amiga; de uma palavra de conforto. Isso, definitivamente, era o que mais lhe intrigava: Como o outro poderia saber que ele, justo n’aquele dia, estava precisando tanto de apoio? Era como se adivinhasse suas necessidades, ou melhor, como se as intuísse com mais clareza que si mesmo.
Assim, passaram-se décadas recebendo os cartões coloridos até o ponto de aceitar com tranquilidade aquele estranho estado de coisas. Enquanto isso, a vida acontecia com todos os seus lances confusos e inexplicáveis... Estudos, carreiras, casamentos, separações, filhos, doenças, perdas, desilusões... Sim, a vida acontecia. E aconteceu tanto que um dia seu coração simplesmente parecia não aguentar mais! Estava triste há um bom tempo, mas os cartões já não lhe chegavam. Até esse último consolo lhe era negado: Seu amigo oculto desaparecera por completo.
E então era isso... Dia após dia se sentindo mais vazio e solitário nesse mundo... Tomado de profunda melancolia, sentou-se à escrivaninha e, sem qualquer razão, começou a escrever frases parecidas com as que ele recebera por tantos anos, tamanha a sua necessidade de lê-las. Buscava talvez substituir seu amigo oculto, presenteando-se novamente com os cartões que não vinham mais pelo correio. Era uma espécie de frenesi incontrolável ao qual ele se entregou apaixonadamente, animando-o como há tempos não se via. Escreveu, escreveu e escreveu... Perdera a conta de quantas papeis amarrotados jogou com fúria e cansaço na lixeira! Não obstante, insistiu mais e mais por saber exatamente o que queria, isto é, escritos capazes de ensolarar uma pessoa.
Depois de escrever muito papel -- e também de amarrotar muito papel... -- seus olhos finalmente brilharam diante de algumas frases simples e amigáveis. Acto contínuo, pegou papeis coloridos, escreveu tudo em dezenas de cartões e postou no correio para desconhecidos: Cartões escritos à mão em papel colorido...
Sem remetente e enviados da agência central.
Betim – 04 04 2017