ROSAS VERDES E MAIS

ROSAS VERDES & MAIS – 7-15/5/2016

Novas series de William Lagos

ROSAS VERDES I – 7 MAI 16

Como envoltório encontramos mil fantasmas,

desgastados de nós, que não se apagam;

ao invés de desmanchar, eles afagam

o corpo antigo em mascaradas pasmas;

ou se grudam às paredes, em miasmas

daquilo que já fomos e então indagam

se ainda são de nós; e nos alagam

com seus mil prantos lúgubres de asmas.

E nos acusam as falhas do passado

porque as derramamos como gotas,

véu após véu aureolado em sonos;

ou esvoaçam a transpor o nosso fado

para essas longes plagas ignotas

às quais convergem tantos abandonos!...

ROSAS VERDES II

Terrível seja tal responsabilidade

por tais milhares de nós que já se foram,

mas que pairam ao redor e se devoram,

sem se esgarçarem com tranquilidade

e assim se empilham em vertical saudade

ou pelos forros das salas se penduram,

em pedacinhos na alma nos perduram

ou sob as camas, horizontais em veleidade;

não são os cheiros, de fato, que arejamos,

quando dos quartos abrimos as janelas,

mas essas lâminas de nós, entrincheiradas

nesses desvãos, que para o céu mandamos,

que então se esforcem os ventos por retê-las,

até que sejam pelas nuvens dispersadas...

ROSAS VERDES III

Não são somente os espectros dos humanos;

também as árvores espelham seus reflexos,

no farfalhar das folhas mil amplexos,

imensos arcos dessa flora soberanos.

As rosas verdes contribuem em tais arcanos,

os animais preservados em seus sexos

e mesmo as rochas dos mais antigos nexos

lançam-se aos ares, imóveis em afanos;

o oceano imenso nos ares refletido,

vasta camada de ondulatório olvido,

aqui e ali interrompida por batel;

muito mais ampla a Terra nas esferas

que nos rodeiam, em perenais esperas,

tal qual ao monge envolve o seu burel.

ROSAS VERDES IV

E até mesmo a mandrágora enterrada (*)

emite aos céus seus reflexos solenes,

a eterna egrégora em círculos perenes, (*)

a falsa humana liberdade descartada.

(*) Raiz que afirmam provocar a gravidez. (*) Espírito de uma comunidade.

Tantos fantasmas de nós na madrugada

giram voláteis, de culpas são indenes,

por mais que ao antanho cada qual condenes,

nunca os despedes para o eterno nada.

São rosas verdes que nunca coloriram;

se cor um dia tiveram, desbotaram,

mas recobrem tua cabeça em vasto manto

e ao som da redenção jamais se abriram:

não são os deuses que te condenaram,

mas teus remorsos, em congelado pranto!

MAGIA PERDIDA I – 6/5/2016

Não é tanto que hoje queira rever o meu passado:

conheço inteiramente o que me sucedeu

e a grande maioria de quanto se perdeu

não quero ter de volta, nem em sonho indesejado.

Contudo, gostaria que o tempo atribulado

que constituiu tua vida pudesse tornar meu,

que avistasse tuas peles, esse passado teu,

colecionando todas em tesouro redobrado.

Não perderias nada e tudo eu ganharia:

o que foi para trás assim reviveria,

guardado nas entranhas de meu reavivamento

e que todos os teus dias, de dor e de alegria,

pudesse coletar, bem fundo ao pensamento

e sempre acarinhar em doce encantamento!

MAGIA PERDIDA II

Um álbum comporia com cada figurinha

que descolei de ti e da qual me apossei,

se bem que reconheça que em troca nada dei

salvo a esperança atroz de que eu dia fosses minha!

Mas de fato não precisas das tristezas que continha

a tua memória. Foram essas que roubei;

todas lembranças mais alegres te deixei,

de teu passado não te larguei sozinha...

Mas das tristezas que fossem e lamentos

guardei os quantos que a teu lado ouvi

e mais aqueles que mais fundo perquiri;

e em meu sondar de teus ocultos sentimentos

fiz de tuas mágoas jóias e diamantes,

rasgando os dedos nas arestas mais cortantes.

MAGIA PERDIDA III

E nos espaços que deixei em branco

introduzi meus sonhos, com recato,

nesse gentil mas ardente estelionato,

falsificando a cor de cada arranco,

enquanto a linfa de teu peito estanco

com alegrias que de mim abato,

contradizendo a dor com branco tato

e trazendo para mim teu pranto manco,

pois cada má lembrança transformei

em crisopraso límpido e brilhante

ou no bdélio da centelha furtador (*)

(*) Pedras semipreciosas mencionadas pelos gregos.

e novamente de ti me aproximei,

cada beijo envolvendo, em luz cortante,

com alegria e ternura o teu temor.

DEDOS DE VIDRO I – 8 MAI 16

A cada momento da vida transmitimos

imagens de nós mesmos pelo espaço,

imagens nuas, imagens de um abraço,

imagens do momento em que dormimos;

são reflexos de luz que difundimos

ao entorno de nós, no mesmo traço

em que os projetam ao lado, passo a passo,

as coisas e as pessoas a quem vimos.

Desta forma, existe imensa atmosfera

de imagens espelhadas por paisagem,

pelos pássaros e flores, em miragens,

esses seres de luz, porém sem vida,

mil fantasmas projetados em seguida,

que a gente enxerga quando não espera.

DEDOS DE VIDRO II

Existem casos, por testemunhos comprovados,

em que certa inversão da atmosfera

permite o acesso a diferente esfera

e eventos veem-se oriundos dos passados,

sendo em geral os conjuntos revirados,

na mutação que nos vem da estratosfera;

mas fora disso, a imagem não se altera:

combates travam-se em quimera, inesperados.

Alguns afirmam que tais revelações

sejam exemplos tais quais a Fata Morgana,

que ao sul da Itália certas vezes se observa,

cruzando o Estreito de Messina em ilusões,

porém que ocorrem em simultânea rama,

e nas quais nenhum passado se conserva.

DEDOS DE VIDRO III

Bem mais comuns são as recepções,

de forma totalmente inexplicada,

de transmissão radiofônica lançada

para o espaço sideral há gerações;

e mais recentemente, as transmissões

de programa de tevê, sintonizada

várias décadas após ser projetada,

na interferência das atuais captações.

Seriam então as tais aparições

tais e quais televisivas projeções,

recolhidas pelas nuvens no passado,

velhas imagens de um antanho inusitado,

antes que houvessem quaisquer televisões,

ante um porvir para as quais despreparado?

DEDOS DE VIDRO IV

Qual te parece ser o mais estranho,

que a estratosfera reflita o que guardou

ou que um futuro ao passado retornou,

um porvir projetado para o antanho?

O que há de certo é refletirmos, sem acanho,

cada momento que o Sol fotografou

nas vastas ondas de luz que projetou

em mil esferas de concêntrico tamanho.

Já foi mesmo sugerida uma teoria

de ser possível captar nosso passado,

quando a distância adequada se acharia.

Desenvolvida essa invulgar tecnologia

quando mistério nos seria revelado

que cem finais de discussões provocaria!

DEDOS DE VIDRO V

Não seria, realmente, uma viagem

até um passado próximo ou distante,

mas tão somente o captar impactante

dessas ondas de luz feitas miragem;

o espaço-tempo mostraria essa visagem

no crescimento digital constante,

confirmação do imaginário delirante

de um poeta ou prosador de mais coragem...

Já li algures que existem equações

que até dão embasamento a tal teoria;

mas o que ocorre é que se diluiria

no vasto espaço o conjunto de impressões,

embora alvitrem que cada átomo conteria,

quanticamente, o grão total das reflexões.

DEDOS DE VIDRO VI

Futuramente, mediante alguma radiação,

seria possível contemplar os interiores:

antepassados executando seus labores,

sem ter suspeita ou qualquer expectação

de serem vistos por futura geração.

E quem nos diz que até nossos amores

já não vêm sendo observados em ulteriores

gravadores por uma igual captação?

Quem nos dirá se os “discos voadores”,

dos quais pouco ou nada hoje se fala,

fossem antenas de formato experimental,

para gravar dos avoengos os albores,

até que a técnica alcançasse maior gala,

sem hoje deles precisar mais, afinal?

DEDOS DE VIDRO REVISITADO I – 9 MAIO 2016

Quem for mais velho ainda recorda essa mania

que alguns chamavam de histeria coletiva,

que hoje notícia já deixou de ser ativa

e que às hodiernas gerações não atrairia...

Dedos de vidro com que a Terra exploraria

qualquer grupo ou entidade mais esquiva,

cooptando a sociedade primitiva,

que á curiosidade ou a seu temor conduziria...

Para muitos, procedentes das estrelas,

para outros de algum mundo paralelo,

de subterrâneos ou do abismo de alguns mares;

ou sociedades do futuro, as caravelas

a explorar cada instante feio ou belo,

da segurança de seus álgidos pairares?

DEDOS DE VIDRO REVISITADO II

Com o tempo, vão mudando as atrações:

talvez agora que a mundial Terceira Guerra

não rebentou sobre nossa pobre Terra

motivos outros originem tais ações,

outros períodos nas atuais explorações;

talvez o tempo dos Sumérios mais encerra,

que no inconsciente coletivo ainda se enterra:

magnetismos para tais visitações.

Nessas teorias dos Deuses Astronautas,

seres humanos um tanto zoomórficos,

seus capacetes sugerindo os animais,

se encaixassem, quiçá, nas mesmas pautas

e nos tornassem mais antropomórficos

por tais milagres e nascimentos virginais?

DEDOS DE VIDRO REVISITADO III

Dedos de vidro não creio que estendessem

a nos tocar, quais varinhas de condão,

os falsos anjos e demônios, que estarão

nessas naves que o espaço nos viessem.

Mas é possível que aqui interviessem,

os nossos descendentes em multidão;

bem mais provável que se interessarão

e benefícios até mesmo nos trouxessem,

ou mostrariam ter igual curiosidade

à que sentimos por impérios destruídos,

quando escavamos seus palácios derruídos

para saber de onde brota a Humanidade,

pois certamente viajaríamos ao passado

se os meios técnicos já tivéssemos aprestado!

ICONARIA I – 10 MAI 16

A ampulheta e a seta então se revezavam

sobre a tela de acrílico. Uma me indicava

qual o caminho a seguir. A outra me ordenava

mais longa espera por pastas que buscavam

os meus desejos. Ambas sempre me lesavam,

uma a indicar-me a espera e então ficava

transmogrifada e muito em breve me lançava

amalgamado às muitas coisas que mostravam,

sendo a outra mais veloz e zombeteira

quando exigia para a pressa mais prudência,

sem me mostrar o que ali fora buscar,

até que esteja pronta e que me queira

dar acesso a seus arquivos, com paciência,

somente à hora em que o determinar...

ICONARIA II

Doce ampulheta, igual que namorada,

tanto nas curvas desse seu formato

quanto na pretensão de seu recato,

sempre exigindo por mim ser esperada...

Triste ampulheta, incerta em sua pesada

espera silhuetal, canto de gato

em seu capricho desbotado de retrato

tão diferente desta moda hoje adotada...

Bela ampulheta, acorde ao romantismo,

a revelar-se somente pouco a pouco,

conservando a gentileza do mistério...

O ícone mais afeito ao feminismo

do tempo antigo ante o poeta rouco

de suplicar-lhe algum favor mais sério...

ICONARIA III

Existiu tempo em que “ícone” indicava

tão só a imagem sobre a iconostase (*)

de uma igreja ortodoxa e noutra fase

já em igrejas romanas se aprestava.

(*) Portalada com imagens santas penduradas.

Para o profano outra palavra se empregava,

o termo “rebus” então servia de base

ao engenheiro ou desenhista, que hoje quase

foi esquecido, mesmo que pouca gente o usava.

Mas no momento em que a digitação

lançou ao descaso a datilografia,

foi o termo “ícone” que se consagrou,

consoante a lógica de tal computação

bem mais complexa do que antes existia

e que atualmente também se abandonou.

ICONARIA IV

Mas nem todos esses ícones se explicam

por si próprios e até acham-se alguns

que mal parecem indicar coisas comuns

e contra a lógica até certos se aplicam...

Alguns dão a impressão que só complicam

as aventuras digitais e quaisquer uns

parecem religiosos... Só que nenhuns

ordenação monacal em si indicam...

Sem que seus ritos digitais sejam mostrados

e os resultados muita vez são diferentes

dos aguardados por leigo ou amador,

ideogramas um tanto achinesados

dos hierarcas digitais superjacentes

quaisquer segredos escondendo com vigor...

ICONARIA V

Formam assim a confraria secreta

a que se acede somente grau por grau,

mediante cursos de ensino desigual,

em que sua lógica no amador se injeta...

Mas quando o último grau já se completa

dessa difícil ascensão imaterial,

vê-se o iniciante ante o destino mau

da nova lógica de digital profeta...

Não é possível emplacar grau trinta e três

nessa moderna e arcana iconaria,

da matemática mais transcendental...

Até que um dia se descubra que se fez

na instauração da atroz hierarquia,

erro de lógica até monumental!...

ICONARIA VI

Pensando bem, há muito que a ampulheta

não me aparece feminina sobre a tela,

substituída por qualquer móvel rodela,

conservando a imageria ainda secreta...

Ou então um dedo machucado se projeta,

para indicar que não consegue fornecê-la

ou se não quer, por implicância, tê-la,

para o propósito que o infeliz nunca completa...

Assim eu fico, muitas vezes contristado

e acabo então apelando para a seta,

a me indicar como a ampulheta é seduzida...

Tal qual se fosse finalmente rejeitado

o meu projeto de despir essa discreta

ampulheta, sem possuí-la nesta vida!...

PENAR POR MULHER 1 – 11 MAIO 2016

Igual que cobras, nós vamos descartando,

Em retalhos de luz, as nossas cascas;

Não é que estertoremos em tais vascas,

Quando estas peles translúcidas soltando,

Largadas sem esforço, vão flutuando

Em torno a nós, anéis, trêmulas lascas,

De entremeio a miragens de outras tascas,

Cepas da vida que vamos perlustrando,

Pois são nosso passado, os cacos de luzeiros

Que brotaram sobre nós, enquanto cresce

De dentro para fora a nossa imagem;

E projetamos de luz esses tocheiros,

Que buscam-se uns aos outros numa prece,

Sem que jamais tornem a ser nossa embalagem.

PENAR POR MULHER 2

É das nuvens que copio os teus reflexos

E os fotografo pelas íris de meus olhos,

Entremeados pela luz de outros escolhos,

Luzeiros mil a que o olhar empresta nexos.

Com tais imagens construo os meus amplexos,

Os lampejos de mim nos teus refolhos:

São mil fotos de mim contra teus fólios,

Tais quais anjos abraçados sem complexos.

Mas essas projeções de ti são tantas!

As minhas quase todas no escritório

Percorrem grades e transpõem janelas,

Para juntar-se aos vultos com que encantas

Vagalumes condenados ao esponsório,

Caleidoscópios em esteiras paralelas...

PENAR POR MULHER 3

Dessa forma, não é a ti que abraço,

Nem por ti sou sequer eu abraçado;

Abraço muito mais o teu passado,

Enquanto abraças tão só meu velho traço.

Em cada beijo a meiga imagem te retraço,

Enquanto a minha por ti é retraçada,

A morta imagem de antanho acarinhada,

Sem que acompanhes a mim no mesmo passo.

Será que gozam de qualquer felicidade

Essas imagens etéreas descascadas,

Flocos de luz em quântica saudade?

Ou vivem na inconstância desbotadas

Nesses enganos de vazia antiguidade,

Faixas de luz umas por outras completadas?

PENAR POR MULHER 4

Enquanto isso, presas cá na Terra,

Ficam as fontes inermes e convexas,

Inconscientes das esferas circunflexas

Que as recobrem como os picos de uma serra,

Que a verdadeira imagem cá se encerra,

Sob a coroa mil reflexos indexas,

Lisa vogal redonda em tais endeixas,

Cuja busca por amor eterno emperra.

Cada um de nós nessa visão platônica

De esfera desventrada pelos deuses,

Por desafio de proximal contemplação,

Cortada em duas, eternamente atônita,

Sem ter ao menos o consolo dos adeuses

Em seu penar de sempiterna duração.

DESBASTE I – 11 set 2007

Reverdeceu a árvore do lado,

jacarandá antigo, derrubado

por um vizinho, enquanto embriagado,

que chegaram, até mesmo, a desgalhar...

Mas o tronco quedou-se, mutilado

e, pouco a pouco, fez-se rebrotado:

permanecia ainda enraizado

e nele a vida se exigiu manifestar...

Assim será conosco: inda cortado,

rebrotará o antigo sentimento,

enraizado que está no coração...

Pode ter sido um dia desgalhado

parcialmente: breve lenha de um momento,

mas permanece o lenho da emoção.

DESBASTE II – 12 MAI 16

Na verdade, se perdeu minha esperança,

embora a árvore reverdecida fosse;

a caridade humana não lhe trouxe

viver constante a cumprir essa mudança.

Anos passados, que a memória alcança,

até uma cova perfuraram, por que afrouxe

totalmente sua raiz, que não se esboce

mais uma vez, apesar da desbastança.

Não obstante, há uma semana ali passei

e vi um talo a me espiar, timidamente,

buscando a luz desde sua profundeza;

e ao rever tal broto, me alegrei,

ainda que tema a maldade dessa gente

que mais prefere o vazio do que a beleza.

DESBASTE III

Também recordo quanta vez fui desbastado,

a cada vez que parecia florescer;

por mais que a esforço pudesse recorrer

de cada ideal via meu ramo ser podado.

Quase julguei que fosse amaldiçoado,

que me cuidasse, querendo me perder

uma entidade qualquer de malquerer,

por pura inveja ou simples mau olhado.

E no entretanto, ao ver que se fechasse

esse portão que pretendia atravessar

fui em nova tentativa me lançar

contra portão que ao lado se encontrasse,

mas novamente, cumprida toda a condição

novas gavinhas vi cortarem sem razão.

DESBASTE IV

Também no amor constante fui mendigo,

colhendo as rosas achadas no caminho,

mas ao invés de ganhar real carinho,

somente o ventre é que me dava abrigo.

Sempre o calor dos beijos eu consigo,

não obstante, recolho-me sozinho,

sem ter caramanchão de rosmaninho,

algo faltando em cada amor antigo.

E tanta vez que a mente se apaixona

ao ver correspondido o coração,

qualquer decepção nalma retoma,

sem alcançar a verdadeira compreensão

de nesse mundo reencontrar a alma irmã

no pólen seco da esperança vã.

ORGANICISMO I – 2 jan 2007

Se vou lavar minhas roupas,

não é que guarde queixas

do ano que passou...

Mas não se guardam mortos,

nem mesmo os mais amados,

na sala de visitas...

Talvez se guardem cinzas,

nas urnas da saudade,

nos nichos da memória...

Porém o ano que finda,

que tanto bem me fez,

contemplo com saudade...

E se hoje lavo as roupas,

é mais pelo respeito

que guardo desses dias...

ORGANICISMO II – 12 jan 2007

Não quero que meus dias

ao vento se enxovalhem,

assim, desguarnecidos...

Assim, seguem-se os dias

em que serão lavados

de poeiras e suores...

Mas que se lavem hoje

meus gozos e tristezas,

de mim desencarnados...

Que enfrento um novo ano,

não sei que me trará,

mas hei de ler mensagens...

Na bola de cristal,

concretas ou de espuma,

de amores ou miragens..

ORGANICISMO III

Assim, este ano novo

saúdo com receio:

prefiro o ano que foi...

Eu tive meus problemas,

mas foram resolvidos:

e tive meus trabalhos...

Que foram concluídos,

deixando-me reservas

para enfrentar ciladas...

Que possam-me trazer

os dias do ano novo,

nos cacos do cristal...

Porém, me sinto forte,

e enfrentarei o fado,

apenas a sorrir...

ORGANICISMO IV

Não vou pedir que lancem

os búzios, nem que cartas

me abram o destino...

Pois mesmo que empenadas,

as portas se abrirão

a quem saiba bater...

Não é um novo ciclo,

é só continuidade:

e eu mesmo é que forjei

o fado meu de agora.

E mais eu forjarei,

após lavar minhas roupas...

Guardando em alfazema

lençóis e roupa branca,

na festa do ataúde...

DESENFOQUE I – 14 set 2007

O ouro, muita vez, embaça o brilho,

mas nem por isso perde o seu valor:

com leve lustro retoma seu fulgor.

De modo igual a mim mesmo esmerilho.

Eu busco a luz que antes refulgia

e, aos poucos, lentamente, se embaçou.

Não foi a musa que assim se retirou,

sou eu que nego o tempo que auferia,

ao se apossar de mim... Tornei-me conta:

fiz a mim mesmo escorrer por entre os dedos

e os versos fáceis eu somente anoto.

Não que a musa não mais esteja pronta:

ela me entrega o ouro dos segredos

que, sem querer... ao redigir... Desboto.

DESENFOQUE II – 13 MAI 16

Foi assim que Isabel, com pena de ouro,

que lhe entregou dos escravos descendente,

assinou a Lei Áurea em dia fulgente,

de nossa pátria apagando esse desdouro.

Antes julgado ser um bom agouro

para o futuro dessa escura gente

que livre se tornava, finalmente,

sem mais chibata a arrepanhar-lhe o couro.

Por muitos anos, assim lembro, foi feriado

que se extinguisse entre nós a escravidão,

em países europeus ainda existente.

Porém movido por ressentimento airado,

certo político exigiu substituição

por uma data diversa totalmente.

DESENFOQUE III

Perdeu o lustro assim a pena d’ouro,

razão direta do final do Império,

para a romântica princesa um refrigério,

ideal nutrido em vários anos de namoro.

Mas o mais certo é que causou um estouro,

sem que de fato trouxesse um lucro sério

para beneficiários desse despautério,

somente livres de seu labor de mouro.

Pois, de fato, o que então aconteceu?

Acreditaram não ter mais de trabalhar,

dois anos festejando em carnaval...

Até que a boa vontade se perdeu

de quantos os queriam sustentar,

vendo o trabalho como um ato natural.

DESENFOQUE IV

Assim um dia retornaram aos cafezais

em que encontravam alimento e moradia

contra o trabalho realizado dia a dia,

mas seus empregos não existiam mais!...

Os imigrantes europeus vindos dos cais

cumpriam todo o labor que se pedia...

Patrão algum a essa gente mais queria,

jogada à estrada igual que os animais...

E chegando nas cidades, só encontraram

os trabalhos mais grosseiros e mal pagos,

comendo pouco e morando nos casebres.

Também seus filhos instrução não alcançaram,

que liberdade não se come... e só andrajos

seus corpos a cobrir, cheios de febres...

DESENFOQUE V

A liberdade se pretendia progressiva;

não mais escravos no país se introduzia;

dos Sexagenários a escravidão já se abolia,

o Ventre Livre a proteger criança viva.

No máximo em três décadas, cativa

nenhuma dessa gente ainda seria,

que absorvida a pouco e pouco se veria

e não de sopetão, em leva esquiva.

Data de então a tradicional pobreza

dos negros do Brasil, na ignorância

do analfabetismo e sem ter profissão,

somente conquistada com a nobreza

dos melhores dentre eles desde a infância,

no lento esforço de sofrida geração.

DESENFOQUE VI

E de forma semelhante, só esperei

tornar-me livre em minha própria abolição,

quando quebrasse um a um cada grilhão,

porém Lei Áurea para mim nunca encontrei.

Mas não se diga que pouco trabalhei:

de Carnaval jamais tive ocasião,

mas jamais prêmio me lançaram sobre a mão

e certamente por nada supliquei!...

Passam-se os anos, desgasta-se a energia;

cada objeto, por menor que seja,

foi conquistado pelo meu trabalho.

E quanta vez, pensando na alforria

que a fronte, enfim, do próprio escravo beija,

não tive pena d’ouro, porém golpes de malho!

BIOGÊNESE I – 14 set 2007

Por que falar de amor, se a mágoa pura

abandonou-me totalmente o coração?

Não sinto ânsia do vácuo de emoção

que me antes perpassava em desventura...

Por que falar de amor, quando a esperança

tornou-se indiferente a seu amplexo?

Não me torturo mais pelo seu nexo,

mas no trabalho o meu ardor descansa.

Nele ainda encontro a aurora da conquista,

quando ele chega e quando o realizo:

é com orgasmo que completo tradução!...

Sinto-me inflado ao concluir a pista

e mal percebo as pedras em que piso,

tal como a mãe que completa a parição...

BIOGÊNESE II – 14 MAI 16

Não foi sozinha que criança trouxe à luz

nenhuma mãe em sua longa gestação;

recebeu sempre qualquer contribuição

de quem foi pai, que à gravidez a induz.

Indiferente que fosse à dura cruz

de tal mulher. em sua pesada duração,

ou que a apoiasse com toda a devoção,

pai foi preciso até para Jesus!...

Pois sem José, o quanto sofreria

essa mãe de nascimento virginal...

Seria um corvo que a alimentaria? (*)

(*) Referência ao profeta Elias.

Assim José mereceu fama imortal

por todo o tempo em que serviu Maria,

mesmo não tendo o seu filho natural.

BIOGÊNESE III

Do mesmo modo, um livro a receber,

essa obra que alguém mais conceberia,

igual José a proteger Maria,

sem ser seu pai, disponho-me a acolher.

E o traduzo, folha a folha, com prazer,

tal e qual se algum poema meu seria,

sabendo bem que muito pouco alcançaria

em recompensa por todo o meu mister.

Não é do tradutor que se apregoa

o livro inteiro, redigido e reescrito,

mas o do autor da trabalho original,

porém a obra é meritória e boa,

na ampliação de seu público restrito,

mesmo não sendo seu filho natural...

BIOGÊNESE IV

E assim, falo de amor sem ter rancor

e de saudade em plena suavidade,

toda emoção recontada em equidade,

indiferente que lhe seja o meu ardor.

Falo do pranto, mesmo pleno meu vigor,

falo do sexo, até mantendo castidade,

falo do puro em libidinosidade

e da conquista, por maior o desamor.

Em tudo isso, favoreço a biogênese

de poema ou tradução, força secreta,

sem que exista uma real partenogênese,

porque uma voz em meu silêncio existe,

cuja semente dentro dalma excreta,

dia após dia, igual concha de alpiste!...

SUCO DE AURORA 1 – 15 MAIO 16

Já falei antes que ao contrário que se pensa

Não são as flores que se tornam borboletas,

Mas borboletas, que ao mormaço de hora tensa,

Flores se tornam, por ambições secretas.

Vendo as folhas farfalhando em suas aletas,

Talo vazio que só em sépalas se adensa,

Tais lepidópteros de visões diletas

Ali descansam quando a aurora se faz densa.

E ali elas ficam, bebericando orvalho,

Aos poucos enterrando suas patinhas

E em pétalas suas asas multiplicam,

Na cissiparidade desse talho, (*)

Imóveis para sempre, as pobrezinhas,

No generoso pendor a que se aplicam.

(*) Reprodução por divisão celular.

SUCO DE AUTORA 2

Decerto por seus ovos poderiam,

Ao destino de lagartas conformadas,

Por muitas aves sendo devoradas,

Tornar-se em seres que gráceis voariam!

Mas quando em flores se transformariam,

Mil sementes seriam espalhadas

Ou como cem mudinhas replantadas

E bem mais longo destino alcançariam!

E depois, quem é que planta borboletas?

Bem ao contrário, sendo cobiçadas,

Mortas com éter e assim colecionadas

Ou de suas asas as cores tão diletas

Colam as poucos para armar paisagens

De vidro lâmina a cobrir mortas imagens!

SUCO DE AUTORA 3

Mas como flores, dessedentam-se de aurora,

Raios de sol devorando muitos dias,

Continuando a distribuir sãs alegrias

A quaisquer que as contemplem nessa hora.

Por tal razão, te aviso, sem demora:

Bem sei que facilmente cortarias

Flores dos talos, com que enfeitarias

As frias tumbas de teus mortos de outrora.

Talvez penses que outras flores brotarão

Do mesmo pé, sem causares qualquer mal...

Talvez o façam, mas não sendo borboletas.

As que apanhares depressa morrerão,

Sem espalharem seus esporos, afinal,

Cobrindo os prados com mil flores diletas!

William Lagos

Tradutor e Poeta

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com