ARCÁDIA ULTRAMARINA
ARCÁDIA ULTRAMARINA
I – locus amoenus
para Tomás Antônio Gonzaga, o Dirceu
Chego a ver-te a Marília, bom Dirceu,
Folgar, esperançosa, n'estes campos
Gerais de mim... D’além sertões escampos,
Se o amor d'ela também já fora o meu.
Chego a ver ninfas cá onde estou eu
A brincar nuas com vãos pirilampos:
Seus seios tão alvos quanto figos lampos!
Algo que ao tempo e espaço se perdeu...
Chego a ver, todavia, eu nada vejo,
Ou melhor, finjo ver ao ter a vista
Local ameno ao qual luz um lampejo.
O visto é fingimento teu de artista.
Vejo não o que vejo, mas desejo...
Finjo, para sem ver, ver-te a benquista.
* * *
II – locus horrendus
para Manoel Maria Barbosa du Bocage, o Elmano
Queria não ser tão mórbido poeta.
Tradutor da dor... Traidor da vida...
A ver as coisas já de despedida
Para d’isso extrair uma frase abjeta.
Queria não ser outro vil sem meta,
Cuja história, já há tempos esquecida,
Houve, há e haverá como se nunca havida,
Feito obra que quedou incompleta.
Queria... Mas sou. Não, não sou nada
À espera do terrífico... Ou melhor,
Local horrendo à escura encruzilhada.
A morte faz-se bela em vago horror.
Abdico-me à ilusão da hora passada
Para, ao morrer, deixar já toda dor...
* * *
III – inutilia truncat
para Cláudio Manoel da Costa, o Glauceste
Quem hermeticamente faz poesia?
Cultos imitadores já sem vida...
Busque-se o novo como uma saída
E cortar os excessos que cabia.
Quem hermeticamente se angustia,
Por conceitos confunde-se a caída:
Se a pérola barroca é extraída,
A concha rococó resta vazia.
Quem hermeticamente se quer poético;
Por maior, ou melhor, constante: --“Poetas,
As inutilidades truncai ao ético!”...
Sim, por uma poesia a além de estetas,
Concorde ao paradoxo pós-estético:
Claro-escuro luzindo sobre as metas.
* * *
IV – aurea mediocritas
para Silva Alvarenga, o Alcindo
O doce fazer nada é bem uma arte
Que, cultivada à sombra das mangueiras,
Traz tardes modorrentas sobre esteiras
Que estão, poeta, estendidas a esperar-te.
O doce fazer nada põe à parte
Dúzias de convenções vãs e maneiras...
Onde a preguiça e a manha brasileiras:
--“Que o prazer nos delicie; não nos farte!”.
O doce fazer nada é mais que à toa;
É por fim ser quem sempre se quis.
Áurea mediocridade à vida boa.
Pensa à ferida, ainda que não doa...
Não se sabe, ou melhor, já não se diz,
Para, n’alguns momentos, ser feliz.
* * *
V – fugere urbem
para Basílio da Gama, o Termindo
Se nem urbe nem orbe cabem-me a alma
E os terrores do século acompanho,
Percebo em meio às luzes mal tamanho
Que nenhuma esperança mais me acalma.
Se nem urbe nem orbe têm uma outra palma
Senão aquela dada aos maus co’o ganho...
As guerras das Missões à pena apanho
E, sul-americano, acuso o trauma.
Se nem urbe nem orbe, entre excelências
Sua Alteza despótica esclarece:
--“Fugira ao urbano por cultivar ciências...”.
Sem Deus ou Papa, resta ainda a prece
E ante a loucura toda, reticências...
--“Céus, tudo é sempre pior do que parece!”.
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VI – carpe diem
para Domingos Caldas Barbosa, o Lereno
Curtos os dias vãos que a Hora destrói:
Grão a grão de areia verte na ampulheta...
Há que se buscar fogo santo em meta,
Libertando do Cáucaso outro herói.
Curtos os dias sós... Pois, desconstrói
Verso a verso a poesia na gaveta...
Há que se verter fogo santo ao poeta,
Inflamando a palavra que o corrói.
Curtos os dias, mas d’isso eu me furto
Ao ouvir o que me vem da própria boca:
—"Curte o dia que é, poeta: O dia é curto!"
A vida vale àquele que os céus toca
E nem a Hora lhe alcança o verso surto
Nos corações de quem o amor evoca.
* * *
VI – omnia vincit amor 
para Alvarenga Peixoto, o Alceu
Dons da ventura são dados ao acaso
E havidos para após serem perdidos.
A dor vai suceder gozos vividos,
Enquanto alguma estrela nos der azo.
Dons da ventura são vistos ao ocaso
Da vida como sonhos esquecidos.
Felizes são apenas os iludidos...
Juízes sem julgar o próprio caso!
Dons da ventura: A tudo o amor é maior,
Mas acaba, ou melhor, acaba em danos...
Amor vence tudo e tudo vence amor.
Não olvido, malgrado já tenha anos.
Restam-me só lembranças onde há dor.
A vida passa... Não os desenganos!...
* * *
VII – sol oriens in occiduo
para José Bonifácio de Andrada, o Velho
A Nação que obro está além dos factos.
Talvez, por isso soe como mentira
Ou devaneio que não se permitira
Por advir de utopistas inexactos.
A Nação que obro está além dos actos
E antes do que, sonhada, me existira:
Terra das mil palmeiras! Da santa ira!!!
Dos ideais que levei comigo intactos...
A Nação que obro, ou melhor, o ardil:
Visão que supra-real iluminará...
Sol nascente a ocidente eis: o Brasil!
História do Futuro que será,
Quer profecia ideal; quer ilusão vil;
A Nação que obro, poeta, já não há...
* * *
IX - proetiosum aurum nigrum
para Galanga do Congo, o Chico Rei
A verdade liberta? Oxalá sim!
Às vezes ser vil n’um mundo de vis
É tudo o que podemos quando ardis
Hão-de nos libertar antes do fim.
A verdade liberta... Livre, enfim!
Se crê que seu poder lhe vem de raiz
E, na glória, desfila quanto quis
A conduzir a Santa em baldaquim.
A verdade liberta. Os homens não...
A chuva cai lavando quanto existe:
Precioso ouro preto onde o boqueirão!
Tudo é passado, mas a lenda insiste.
Sob o jugo mais duro, à hora mais triste.
Eis Liberdade: Pedra em negra mão!
* * *
X – liberta quae sera tamen
para Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes
Liberdade. Quem louco ousará definir
Seja luz à vereda da verdade
E ideal que, além, confronta a realidade,
Pois reluz sobre as trevas do existir.
Liberdade... Algo por ver no porvir
Do longo caminhar da Humanidade.
Sabe mover montanhas pl'a vontade,
E aluviões de ouro escuro faz extrair.
Liberdade, pois, luz que me iluminas
Os campos dos Gerais de mim de ideais:
Liberta ‘inda que tarde serás, Minas!
Porque os tiranos não findam jamais
A derrama de sangue p’las colinas...
Liberdade cativa és, oh Gerais!
Ouro Preto – 20 02 1995