SONETOS ADOENTADOS

SONETOS ADOENTADOS

William Lagos, 4-13 jul 2015

LÁGRIMAS ALHEIAS I – 4 JUL15

Amor é mancha gris no coração,

que cresce aos poucos, sem nos darmos conta;

bem lentamente, como espinha, aponta

pela epiderme, qual pequeno furacão,

em calmaria, quase sem percepção,

formando um túnel, sua força monta,

canal para emoções, firme remonta

discretamente, mas sem contemplação.

Quando essa mancha completa seu canal

é que teu peito se abre vulnerável,

igual que o óvulo, em seu cone de atração

e é então que o beijo alheio, sideral,

como esperma em braçadas, implacável,

penetra o peito e ali gera uma paixão.

LÁGRIMAS ALHEIAS II

A paixão cresce, porém sua gestação

não leva os nove meses de costume;

às vezes em um só dia se resume

essa sua plena e fatal aceitação.

Pouco importa teu sexo, a emoção

aciona teus hormônios, leva a cume

toda a potência que o feromônio assume,

prenhe de amor, em feroz exultação!

Olhos somente para a companheira

ou companheiro, que breve te alvejou

e fez crescer amor igual criança!

Brilho dos olhos, frecha bem certeira,

que teu olhar também contaminou

na nuvem rósea feita de esperança...

LÁGRIMAS ALHEIAS III

Foi como lágrimas saltando desse olhar,

aljava cheia de frechas, doce pranto,

como um borrifo de sempiterno canto

que em cada um gerou seu palpitar,

sem que houvesse, esponja singular

mais que consciência desse terno espanto,

cada pingo de sal silente manto,

cada luz pura refletida num colar...

Também as tuas, mesmo reprimidas

revolutearam dos olhos nas pupilas

e à mancha gris alimentaram o crescimento,

no duplo parto das canções sofridas,

por entre espasmos de alegria a senti-las,

nesse amor louco de padecimento.

CANTO DOS OSSOS I – 5 JUL 15

Detesto cemitérios. Moro perto,

mas adotei o costume dos chineses:

sempre desvio ou quase todas vezes

para enganar os espíritos, por certo.

Dobro as esquinas, finjo passo aberto,

que sigam os fantasmas outras rezes,

perdidos sejam através dos meses

e se enovelem por destino incerto!

Mas sempre sou forçado, quando amigos,

mesmo lutando contra o fado louco

são recolhidos em horizontais caixões.

aprendo assim seus últimos abrigos...

Fecha-se a laje, enquanto, pouco a pouco,

se vão reencontrando as gerações...

CANTO DOS OSSOS II

Nessa saga dos ossos, certamente

permanece uma noção de eternidade:

os sacerdotes proclamam, sem maldade,

desses cadáveres a ressurreição premente,

pleno retorno do corpo assim jacente,

no que se opõem às Escrituras, na verdade:

“semeia-se o corpo material”, na sua vaidade,

mas só o corpo espiritual se faz presente.

Nessa data do toque de clarim

os velhos ossos são em cinzas já desfeitos

ou mastigados por tantos comensais;

noutros mil corpos seus átomos, alfim,

recuperaram da vida seus direitos,

tal qual sementes explodem nos trigais.

CANTO DOS OSSOS III

E depois surge tanta história louca!

Zumbis e lobisomens, à porfia,

esqueletos a marchar por toda a via,

caveiras a cantar com sua voz rouca!

E se somente essa loucura fosse pouca,

fecham bem os caixões com cantaria;

pesadas lousas com que o morto se prendia,

que não pudesse sequer abrir sua boca!

Ou protestar que seu corpo carcomido

pudesse então se erguer da sepultura,

para assombrar cada pobre descendente.

Insensatez! Foi o termo redigido

por São Paulo, em sua prédica mais pura

contra os sepulcros romanos, certamente!

CORRENDO O RISCO I – 6 JUL 15

Corri o risco com uma vara de marmelo

em tratativas de reconhecimento,

sabendo serem vãs e sem assento:

fugiu-me o risco e não mais pude vê-lo!

O risco persegui, no meu desvelo,

que se adequasse a meu comportamento;

queria prendê-lo por mais do que um momento:

meu era o risco e assim queria tê-lo!...

Pois se tornar poeta é um vasto risco

que nos carrega além do nosso alcance,

sem que seja possível se frear,

com os dedos recobertos desse cisco,

quando a palavra à nossa frente dance

e só de leve se a consiga registrar!

CORRENDO O RISCO II

Eu me perturbo com a facilidade

com que os outros encilham o seu risco;

prendem-no firme no seu próprio aprisco,

para escorrer no fluxor de sua vaidade!

Vejo o exercício da vã futilidade,

pois seu risco se apaga em leve pisco;

nada mais fazem que repetir o disco

já registrado mil vezes, na verdade...

E quanto resta após o falecimento

do pobre risco à palha alimentado,

senão réstia de político ou sagrado

e em nada mais que o próprio pensamento,

mostrando por poesia um véu calado,

palavras mortas desde seu nascimento...

CORRENDO O RISCO III

Mas eu não sou assim. Meu risco corre

acima e além de minha compreensão;

os versos não são meus: do risco são,

sangue dos dedos que o papel percorre;

vivendo à solta, meu risco nunca morre,

mesmo que morra o escriba da ocasião,

que então salta para outrem, em paixão:

que a alma inteira e o coração lhe forre!

Mas quando o risco pensa em descansar,

corro atrás dele com minha vara de marmelo:

que nunca pare de me puxar além;

seja atrelado, mil sulcos a rasgar;

somente após o abrir eu posso vê-lo,

que o risco corre à frente, em seu desdém!

LÁGRIMAS GUITARREIRAS I – 7 JUL 15

Sei ver a jóia que jaz permeio ao esterco

e meu mérito é somente o de encontrá-la;

sujo meus dedos quando vou desenterrá-la,

mas já existia antes de mim, por certo...

Porém à jóia faço a corte e fecho o cerco;

o verde esterco ao olfato não me abala;

são esmeraldas, afinal, cheias de gala;

a jóia arranco e nela os dedos perco.

Quem mais veria num monte de composto

a jóia baça por outrem rejeitada?

Mas eu consigo e empós ela mergulho.

Há mil palavras no adubo do desgosto

que minha vista percorre, atarefada

e então as toma do meio desse entulho.

LÁGRIMAS GUITARREIRAS II

E quando dessa pilha ante meus olhos

com lágrimas extraio a melodia,

é como se meu peito assim fundia

em mil guitarras brilhantes de refolhos.

Meus dedos eu perfuro entre os abrolhos

e lá no fundo essa música jazia;

transformo a jóia em centelhas de poesia

nessa faísca que furou os meus antolhos.

Tive de olhar bem firme para a frente,

pois para os lados nada mais eu via,

senão a escuridão de que sofria

sob as orelhas de couro indiferente...

Mas quantos mais de antolhos percebia,

sem ver a luz a brilhar subjacente?

LÁGRIMAS GUITARREIRAS III

Sei muito bem que hoje estou doente;

esta afecção me roubou toda a energia,

não mais redijo o quanto gostaria,

sou um escravo dos versos impotente.

E mal consigo ler, neste presente:

copiosa a lágrima que dos olhos escorria;

cheguei a duvidar que ainda vivia,

caído ao solo, em palpitar fremente!

Porém a jóia percebo em tal doença;

cabe-me ainda no mundo despejar,

tornada em verso, a luz do meu penar;

que toda dor hoje transformo em pura crença

e assim me furto os resquícios de bonança

para ao mundo transmitir minha esperança!

LUSCO-FUSCO DE AMOR I – 8 JUL 15

Eu me lembro. Tinha apenas quatro anos

quando dei falta, no céu, de duas estrelas;

esforcei-me desde então, porém sem vê-las,

meus olhos apertando contra enganos...

Era pequeno e inda poucos desenganos

sofrera até então e as duas donzelas

atribuíram-me à miopia por perdê-las...

Somente aos sete é que enxerguei luzentes panos

recobertos pelo manto das estrelas,

erguidas para a noite mais sagrada

e as duas luzes... desesperei de tê-las

mesmo no brilho da noite, se estrelada,

ainda sumidas do céu as luzes belas

para luzir nos olhos de minha amada!...

LUSCO-FUSCO DE AMOR II

No lusco-fusco azul de minha saudade

as duas estrelas custei anos a encontrar;

só na bandeira eu as via rebrilhar,

mas não no negro céu da realidade.

Outros diziam, em total sinceridade,

que as duas estrelas conseguiam divisar,

mas era impossível para mim seu perfilhar,

salvo em dois pontos vazios na eternidade.

Eventualmente, também me enamorei,

mas duas estrelas muito em vão busquei

nos olhos destas que pensava amar...

E assim as décadas passaram sem estrelas,

por mais centelhas visse em faces belas,

até um dia conseguir-te achar!...

LUSCO-FUSCO DE AMOR III

Com duas estrelas nos teus olhos, meu destino

pareceu-me, finalmente, se antolhar;

busquei em ti a medicina do penar

e refleti nos cílios meus, com pente fino,

cada centelha que perdera ainda menino,

que recolhi a pouco e pouco e fui colar

nas duas frestas do meu céu a perfurar,

novas estrelas a luzir qual puro sino...

E lá estão elas, sem nada te roubar,

que cada dia traz fagulhas diferentes,

talvez de amor, talvez de indiferença,

e as consigo recolher, sem machucar

e colocar no céu, nos deficientes

espaços dos cabides de minha crença...

DERRETIMENTO DE AMOR I – 9 JUL 15

Aos poucos, retornaste para mim,

mas não bastou apenas o regalo

que te expus ao rosto, sem beijá-lo,

duro o sorriso mostrado sem carmim...

Somente aos poucos derreteu-se em alecrim

a indiferença; e o rancor sofreu estalo;

foi retornando o ardor sem grande abalo

e acreditaste em minha doença, enfim...

Mas ainda aguardo a luz de meu desejo,

de teu calor recuperado abrigo,

enquanto o olhar me cobre em leve adejo

já quase carinhoso, quase amigo,

enquanto anelo pelo sopro de teu beijo

igual memória que da mente ainda consigo.

DERRETIMENTO DE AMOR II

Nada me dói pior que o teu rancor

quando, periódico, para mim demonstras;

muito mais que assim pensas tu me afrontas,

cortada a fonte de que bebo amor...

Melhor teu escarcéu, teu estridor

do que essa desconfiança que me aprontas,

sem sopesar, talvez, os prós e contras,

embora exames te mostrasse de valor.

Grande injustiça escutar ser artimanha

esse problema que ao coração feriu,

num sentido material que me atingiu,

depois de tanta frase apaixonada

que o hipotético coração me assanha

com hipérboles que, afinal, não dizem nada...

DERRETIMENTO DE AMOR III

Mas há vislumbres, agora, certamente,

após as décadas de multicor convívio,

que à minha situação darão alívio

bem mais que as drogas prescritas; eficiente,

esse bom médico que me ausculta e que, frequente,

me informa que, ao seguir o tratamento,

em constância e com algum comedimento,

há de curar-se meu coração valente,

que já enfrentou, sem medo, a dor moral

e os mil problemas de uma vida dura

e finalmente arreou, por gota d’água,

nesse percalço de vasto cunho material,

mais um desgosto na existência escura,

assim rasgado por derradeira mágoa.

PENSANDO EM MULHER I – 10 JUL 15

És muito bela, mulher circunjacente,

que me ilumina cada canto como o sol;

de ti preciso tal qual de um arrebol,

fiel que sejas e não apenas complacente.

Passam-se os anos, mas teu gosto adstringente

permanece em meus lábios qual farol;

tuas qualidades redijo como um rol

da roupa antiga, qual se fazia frequente.

Muito mais quero de ti, por mais dolente

que me encontre nesta fase perigosa,

em que meus versos escapam aos tropeços,

que brilhe a luz de teu olhar, contente,

nos escaninhos de minhalma, dadivosa,

qual uma fada a conceder-me apreços!...

PENSANDO EM MULHER II

Talvez nem creias, assaltada pela idade,

que em ti meu canto de beleza permaneça,

que assim te ame e que do amor não esqueça,

mas que nele ainda me banhe em sobriedade.

Tristes as horas que atravesso, na verdade:

justo é que alguma alegria hoje te peça,

antes que o resto de minha força desvaneça

e ante outro assédio se esvaia minha vaidade.

Pois para mim permaneces sendo tudo

e em meu espelho não contemplo nada:

somente tu a governar-me o pensamento.

De teu amor preciso, qual de escudo,

em cada passo de minha vida acabrunhada,

acusadora e defensora em julgamento...

PENSANDO EM MULHER III

Hoje, decerto, me acho enfraquecido,

pois é de ti que brota minha saúde;

que seja a rocha tua não me ilude:

bem mais que dei, de ti tenho recebido.

E pouco importa que bem mais tenha querido,

que meu carinho te afete como um grude;

bebo de ti tal qual de manso açude

e na tua ausência me sinto malferido.

Dá-me esse bem de volta, minha donzela,

dá-me um motivo pelo qual lutar

e novamente a mim mesmo libertar

do mal-estar que sobre mim se atrela:

para viver, renova-me o motivo,

que permaneço de teu amor cativo!

SOBREVIVER POR MULHER I – 11 JUL 15

PERCEBO A VIDA COMO UMA AMPULHETA

DA QUAL A AREIA SOMOS NÓS, HUMANOS,

PELO FUNIL POUCO A POUCO DERRAMAMOS,

PEQUENOS GRÃOS, QUANDO A VIDA NOS REJEITA.

ESSAS PAREDES DE VIDRO NEM A ASCETA

CONSEGUEM SUSTENTAR, CRISTAIS PROFANOS,

MAIS DESLIZAM CONTRA NÓS E OS ANOS

NOS PRESSIONAM PARA BAIXO EM DOR SECRETA!

CONTUDO A IDADE SIGNIFICA ATÉ BEM POUCO,

CORREM OS JOVENS PARA O ABISMO LOUCO

E SE DESFAZEM NA POEIRA EM QUE DESCERAM...

QUAL O SEGREDO QUE VIVO ME CONSERVA,

NÃO MAIS QUE UM TALO DE CINZENTA ERVA,

QUANDO TANTOS QUE AMEI JÁ SE PERDERAM?

SOBREVIVER POR MULHER II

SERÁ QUE É A DOR QUE NOS CONSERVA VIVOS?

O SENTIMENTO QUE EM POESIA SE DESGASTA?

QUAL O VALOR QUE PARA A VIDA BASTA

MANTER ACESA EM TANTOS ANOS REDIVIVOS?

NAS ESCRITURAS LEIO VERSOS INCISIVOS:

“PODEM CAIR MIL À TUA DIREITA”, EM CEIFA VASTA,

“E DEZ MIL À TUA ESQUERDA” A MORTE ARRASTA

“MAS SEM CHEGAR A TI”... QUAIS OS MOTIVOS?

FOI FEITA ESSA PROMESSA PARA UM SÓ

E ONZE MIL SE DESFARÃO EM NADA...?

COMO SABER QUAL SERÁ ESSE ESCOLHIDO

SOBREVIVENTE PERANTE A FEROZ MÓ,

QUE NÃO PERECE NO ESTOURO DA MANADA

MAS PERMANECE ANTE A PASSAGEM ENCOLHIDO?

SOBREVIVER POR MULHER Iii

JÁ FOI DITO QUE OS BONS SE VÃO PRIMEIRO

E QUE TU DEVES TEU CÁLICE ESGOTAR

DE TODO O SOFRIMENTO, SEM PARAR

ATÉ SORVERES O FEL MAIS DERRADEIRO.

JÁ FOI DITO QUE O AMOR É HOSPITALEIRO

PARA UMA LONGA VIDA SE GOZAR,

OS MIL ACHAQUES MELHOR A SUPORTAR...

É BOM O AMOR OU CARRASCO CAVORTEIRO?

DE QUALQUER MODO, ENQUANTO O AMOR PERDURA,

EU QUERO A TI, CONTRA O VIDRO DA AMPULHETA,

DE BRAÇOS DADOS E SEM ESCORREGAR;

TALVEZ O BEIJO SE TORNE A FORÇA PURA,

COMO AS VENTOSAS DE SUCÇÃO SECRETA,

QUE NOS MANTENHA FIRMES NO LUGAR...

LACERAÇÃO I – 12 jul 15

Para a mulher, o tempo é mais cruel

que para o homem, pois logo amadurecem,

fisicamente ao menos. Logo esquecem

bonecas e as cozinhas em barro e fel.

Que se disfarça nesse amor de mel

e logo as amargura assim que crescem?

Meiazinhas e touquinhas logo tecem

e os filhos em breve vão para o quartel...

E de repente, olham-se ao espelho

e veem a estranha, de pele alvorotada,

esse corpo que descarta a biologia...

Não mais são necessárias, trapo velho,

a esperar a morte indesejada,

envelhecendo até que chegue o dia...

LACERAÇÃO II

Não trago manchas nas costas de minhas mãos.

Recordo que minha mãe as tinha... e muitas.

Meu pai as tinha menos, mas possuía,

e por enquanto me acho livre dessa mangra.

Na verdade, com frequência as examino,

sempre que tiro as lentes, contra a luz

e vejo apenas um traço aqui e ali;

na minha idade, possuía muitas minha mãe.

Meus problemas são outros, certamente.

Não as notei nas mãos de minha irmã,

já operada de variadas afecções.

Mas de repente, a idade se apodera

de um local e de outro e me envelhece

antes que chegue o momento de partir.

LACERAÇÃO III

E nestes dias em que perdi a energia,

por mais que seja temporária esta aflição,

como acredito, vem a morte e estende a mão

como a outros o faz, em cada dia...

Espero abeberar-me em nostalgia

e aqui permanecer, na indecisão

de cada dia, meus olhos em botão

à espreitar se está igual o quanto via...

Mas me perdoem, se pareço pessimista.

Na verdade, o coração descompassado

precisa agora de potente domador

e estou somente me mostrando realista:

manchas ou não, por certo meu passado

bem mais que meu futuro é meu senhor.

CONVERSA COM BOTÕES I – 13 JUL 15

Treze de julho, hoje é segunda-feira.

Tenho passado mais deitado do que em pé,

sem meu antigo prazer de ler, até,

por tantas horas sem seguir do sono a esteira.

Sinto meus músculos sem a força que se abeira

diariamente e a cada noite, no sopé

de cada hora, sem manter firme essa fé

que sempre me acompanha, alvissareira,

de que amanhã me trará novos aportes

para alegrar-me os dias, sem resquício,

bem diversa essa emoção que restará.

Quando os recordo, foram bem mais fortes

e mesmo o sacrifício do exercício

provavelmente não os restaurará!

CONVERSA COM BOTÕES II

Fico assim a conversar com meus botões,

sem companhia, sequer, da solidão,

sem o apoio de qualquer excitação.

Por que algo diferente me supões

eu deveria experimentar nas ocasiões

em que sou presa da fera da inação,

numa abulia sem a força da indução?

Pois versos saem e nada me repões...

Mas de fato, o que existe de espantoso

é que, apesar desta fraca condição

estes rascunhos a redigir prossiga,

por mais que seja o cansaço poderoso,

acho ainda força em meu velho coração

para o chicote dos cavalos da quadriga!

CONVERSA COM BOTÕES III

O fato é que o impulso de escrever

permanece e solicita diariamente,

ainda que a musa esteja pouco diligente

ao inspirar-me o que deva lhe dizer.

Embora me esteja a doença a acometer,

eu não desisto de lutar, frequentemente,

pois no passado já fui feroz agente

e ainda não vejo por que deva me esquecer

que na vida tudo depende só de mim:

se morro ou vivo, eu mesmo escolherei

e pressinto inda ter muito o que fazer.

Pois que a ceifeira seja paciente assim,

já que dela outra vez me esquivarei,

por tristes sejam os meus versos do sofrer!