DEDOS DE VENTO

DEDOS DE VENTO & MAIS

WILLIAM LAGOS

DEDOS DE VENTO I – 23 JUN 14

Eu gostaria de te amar ainda,

doce boneca, olhos de retrós,

que foste para mim constante algoz:

nunca me amaste, por mais que fosses linda.

Eu que pensava, ao te chamar bem-vinda,

que de algum modo te tornasses foz

do fluxo de amor e andei empós,

de ti, bruxa de pano, emoção finda...

Era tão bom o tempo em que te amava!

Todo inundado em nuvens de esperança:

julgava algo mudasse em meu destino...

E agora que se foi quanto eu julgava

sentir por ti nos tempos de bonança

é que percebo o quanto era pequenino...

DEDOS DE VENTO II

Já ouvi ser dito que quando o amor acaba

é que, de fato, nunca fora amor;

mas eu discordo: o vento de estridor

que a alma enche e sobre nós desaba

vale bem mais que aquilo que se gaba

como sendo permanente em seu vigor,

que amor sempre me foi compensador,

que mais não fosse em proteção de taba

feita de barro em forma de caniço,

que impedisse a chuva que me alaga

e as lágrimas guardasse de meu pranto,

pois todo amor possui algo de viço,

ao menos na emoção com que embriaga

a voz inteira ao tentar abrir-se em canto!

DEDOS DE VENTO III

Olha bem: amor é vento, até o mais forte,

essa invasão da vida por perfume,

esse passeio em nuvens cor de lume,

essa ânsia voraz de algum consorte,

que nos atinge qual ferida, suave morte,

vento que rasga nas pupilas o ciúme,

dentes que gemem antes que se esfume

nas emoções de envaidecido corte;

que amor tem dedos flébeis como o vento, (*)

que nos trespassam num profundo toque,

mas que de fato só na pele nos tangeram,

(*) Frágeis.

porém protegem da flama do lamento

de outros ventos de maior enfoque

a nos soprar a dor dos que sofreram!...

PEDRA DE SAL I – 24 JUL 15

Há tanta gente por aí que risca

meia dúzia de frases que mal servem

para uma crônica, ainda que conservem

bastante espaço em branco, em que não cisca

nem sequer uma galinha; que rabisca

mediocremente essas frases que já fervem

outros milhares, sem versos que reservem

qualquer coisa original no que se arrisca

porém se chamam de poetas, com vaidade

e eu que escrevi tanto, ainda não sei

se sou poeta ou só versejador

e mesmo evito, com sinceridade,

publicar as mil linhas que gerei:

sinto até asco por tamanho despudor!

PEDRA DE SAL II

Eu não perdi o meu espanto de criança

e se meus versos não chovessem sobre a testa

e sobre os ombros, num galão de festa,

os olharia com esgar de desconfiança;

mas os recebo, em nuances de garança, (*)

chuva de prata e ouro que me infesta

e não me posso furtar à força desta

pura abrasão que dentro dalma dança.

(*) Vermelho vivo.

Vaidade disso é coisa que não tenho:

sou apenas os dedos do escritor

que me domina e por quem ora versejo,

pois não são meus os furores com que venho

contaminar o papel qual trovador

com tais relâmpagos que sobre as unhas vejo...

PEDRA DE SAL III

Há milênios disse o velho Salomão

que tudo nesta vida é só vaidade,

pois cada gesto, cada ação da humanidade

dever-se-ia polvilhar, sem dar perdão,

com pedrinhas de sal, branca ilusão,

a dar sabor à mentira e à falsidade

de quem se julga importante de verdade,

sem perceber de onde lhe brota a inspiração;

destarte encaro a mim com ceticismo

e nos milhares de poemas que escrevi

por muito tempo nem sequer apunha o nome;

e até admiro de outrem o otimismo

e o desespero por crédito que assisti:

que os deuses possam lhe aplacar a fome!

CANTO INDECISO XX (A) – 3 abr 07

Por que me preocupar, se essa folia,

o favor que julgo ter, qualquer desprezo

apenas represente, em zombaria,

o casquinar dos deuses, em seu vezo (*)

(*) Riso zombeteiro

de conceder o dom com a mão direita

e escamoteá-lo depressa, com a esquerda...

Bem e mal não mais são que uma imperfeita

moeda, que se ganha ou que se herda...

Ambos compram a vida, o mais precioso

dos dotes multifários dos Perfeitos,

que cordéis emaranham nos seus dedos...

E é por isso que se faz tão perigoso

pedir graças em momentos contrafeitos,

pois toda bênção é envolta em seus enredos...

CANTO INDECISO XX (B) – 25 JUN 15

Os romanos preveniam, realistas:

“Cuidado com o que pedes, pode haver

qualquer deus escutando e conceder

exatamente o que desejas e conquistas.”

Deste modo é o abrir de novas pistas

que aonde levam, não podes saber...

Talvez te encontres muito em breve a recorrer

aos mesmos deuses com renovadas listas...

Pois na verdade, é o teu esforço que te dá

e não a intervenção desses bizarros

ídolos feitos com malícia e perfeição,

representando à sua maneira o que não há,

salvo na argila, em terracota ou barros

ou na prenhez da mente em hesitação.

CANTO INDECISO XX (C)

Há entre nós velho apólogo também:

“Ajuda a ti mesmo e Deus te ajudará.”

Quem nada busca, só o nada alcançará,

vazios os colos das bênçãos que nos vêm.

Há uma anedota que se conta com desdém:

quem loteria não compra, nunca acertará,

pois só quem compra talvez algo ganhará,

mas se ganhar, tirará dos que não têm.

Porém como nisso insistem brasileiros!

E ainda rezam para o Servo Onipotente!

Sem esse prêmio, sempre serve um belo emprego,

mediante o qual deixarão a seus herdeiros

não o fruto do trabalho permanente,

mas o salário tirado ao mudo e ao cego!

CANTO INDECISO XX (D)

Na realidade, só tu fazes teu destino,

mediante séries de ações e de inações,

todo sonho vasta mescla de ilusões:

somente planos podem ter um certo tino.

E se tua busca por um alvo peregrino

for perseguida tão só por orações,

nada terás, senão inquietações:

Papai Noel te abandonou desde menino!

Porque, afinal, os santos a quem rezas,

mesmo tendo no passado sido humanos,

não têm poderes, senão os que lhes dás.

São criados por ti e quanto prezas,

incapazes de milagres soberanos,

senão os mesmos que por ti conquistarás!

CANTO INDECISO XXI (A) – 4 abr 07

E, afinal, somos nós que terminamos

nas armadilhas que nos construímos.

Ou por ganharmos quanto lhes pedimos

ou porque em tais ações nos entregamos,

sem medir resultados, só na busca

do valor imediato. Vazios, interiormente:

descontentes com nosso bem presente,

voando para a luz que nos ofusca.

A vida és tu que fazes e até escolhes

em que ventre nascer, qual mais te serve,

a usufruir quaisquer das infinitas

emoções e valências em que antolhes (*)

um fragmento, que melhor conserve

o brilho verde e sedutor das malaquitas...

(*) Ocultes

CANTO INDECISO XXI (B) – 26 jun 15

Bem diferentes são os alvos terminais

dos beija-flores dos das mariposas;

uns se alimentam nos botões das rosas,

outras se elançam a tórridos finais!...

Os colibris buscam seus alvos naturais,

suas asas em rodilhas primorosas; (*)

buscam a luz as mariposas, mais ansiosas,

sem se lembrar de defender-se dos pardais!

(*) Revoluteares

Do mesmo modo, a busca vã de ideais

é o apanágio dos estultos e poetas:

não é assim que ganham seu sustento;

enquanto a caça de dotes materiais

pelo trabalho ou propinas mais infectas,

trazem à vida um seguro mantimento...

CANTO INDECISO XXI (C)

Mas não me entendam mal. Aqui não louvo

os medíocres, os ladrões e os violentos,

nem aqui zombo dos poetas seus relentos,

que serenatas também fazem bem ao povo;

e a cada geração, surge um renovo,

velhos ideais a tirar de esquecimentos;

e que seria de nós sem os lamentos

desses pródigos, a sonhar com mundo novo?

Mas sua quimera deve ter praticidade;

novos prédios constrói cada engenheiro;

alguns artistas alcançam fama e apoio;

alguns filósofos fazem bem à humanidade

e ainda pareço querer sonhos primeiro,

que em rio se torna o que foi somente arroio...,

CANTO INDECISO XXI (D)

Mas neste fluxo, tanto há que prostitui

o seu talento por palmas de vaidade,

o seu ideal por vã mediocridade,

lançando a alma nesse rio que flui

e o próprio ideal, sem mais cuidado, alui,

para viver melhor, é bem verdade,

ao abrir mão de sua antiga liberdade

por segurança que o coração lhe pui.

Todos nós somos fabricantes de armadilhas,

para tombarmos nelas tolamente,

cada um causando a si o próprio esbulho,

julgando ter aberto belas trilhas

com as enxadas de platina de sua mente,

mas finalmente a dormir sob esse entulho...

REGRAS DA VIDA XXVIII – 04 abr 07

a VIDA é semelhante à PROPAGANDA:

metade APENAS de todos nossos ATOS

PARECE refletir-se em outros FATOS,

enquanto a outra METADE, só CIRANDA,

não RESULTA em mais nada do que INFANDA

troca de MAL por BEM em quanto fazes,

por mais que em POLIDEZ gentil a EMBASES,

retorna em GROSSERIA; ou numa BANDA

de ZOMBARIA ou, quem sabe, INDIFERENÇA;

mas CEDO ou TARDE retorna a recompensa

pelo bem que FIZEMOS; ou INGRATIDÃO.

só não SABEMOS de que LADO vem o bem.

portanto, TEMOS de nos PORTAR, também,

qual FOSSE do outro SINCERO o coração.

sal no olhar 1 – 27 jun 15

eu fiz o quanto pude por vivo manter

e ampliar mesmo o amor que então sentia;

bem sei que era pretenso, amor de fantasia,

já que eu amava o amor e amor queria ter.

assim eu me esforcei por tal amor viver

e o esperado retorno não mais era que folia

que espraiar-se em versos me propiciaria,

nessa loucura branda de bênção conceber...

mas foi queimado o tempo nas unhas de meus dedos,

usando tisne e sangue para escrever mais versos,

na exaltação febril do gozo que sentia;

desgastei-me de amor na pompa dos segredos

e agora só contemplo em meus ideais dispersos

meu amor que era grande e se encolheu um dia...

sal no olhar 2

tomei amor nas mãos e soprei-lhe meu desejo,

pensando acalentá-lo e até fortalecê-lo;

dos alvéolos do pulmão partiu o meu desvelo

e o som dos intestinos no ronco de meu pejo.

do músculo cardíaco fluiu-se um vasto adejo,

bem mais forte, por certo, que poderia contê-lo;

a pressão me subiu pelas tensões do zelo

e partiu-o na verdade, em inesperado ensejo.

amor então não veio inteiro a se aquecer:

ainda que tirasse das entranhas o calor,

envolveu-se em tristeza, emurchecida flor

e numa pedra de sal assisti seu converter,

esperando receber uma lágrima do olhar

que a brotar não chega, deixando-o ressecar.

sal no olhar 3

por isso que um amor de coração partido,

ou mais exatamente sendo apenas ressecado,

não é o suficiente para a um olhar magoado

estimular em lágrima ou pranto definido.

as lágrimas correram das faces ao comprido,

em líquido invisível, concreto o seu pecado,

lentamente demais e o sentimento alado

as asas depenou em espasmo malferido.

amor não morre nunca, assim de repentino

e na verdade, não se parte um coração,

mas vai-se abrindo aos poucos em múltiplos farelos,

lascas caindo muito raro de inopino,

em zombaria travestida de emoção,

torrões de sal amontoando-se em castelos!...

VENTOINHA I – 28 JUN 15

Coisas de amor eu soube escreveria um dia,

altissonantes juras em vã simplicidade,

esquecido de teu rosto, apenas na vontade

de conseguir lembrar qual imagem eu queria.

Esquecidos teus olhos, que de sonho revestia,

olvidados cabelos de brilho e majestade,

transitória a atração por feminilidade,

último amor quiçá que a vida me daria.

Não era amor, decerto, tão somente,

mas desejo ofuscante de minha solidão,

por não me dar tal vida o quanto desejara,

envolvido destarte nessa moção premente

dos que só vivem no guante da paixão,

na qual somente teu semblante recordara.

VENTOINHA II

Porque esse rosto que se amou um dia,

o andejo rosto que na mente se gravou,

esse semblante que minhalma dominou,

de um só momento foi fugaz fisionomia;

porém o rosto se transforma à revelia

desse que ama e do ente que se amou;

os mil esgares que o nojo provocou;

faces que mudam qual chuva serodia...

E a gente se acostuma com mudanças

quando há presença; ou com fotografia

quando a ausência nos impõe o seu poder,

iguais que imagens conservadas em crianças

de casa imensa e que hoje, até vazia,

é tão menor que em seu antigo conceber.

VENTOINHA III

Dizem que amor é cego e certamente

um rosto olha enquanto um outro vê;

enxerga amor no ódio em que não crê;

na indiferença avista ânsia potente

e ao repetir da imagem mais frequente,

ai, que desdouro no rosto que se lê!

A gente muda e, de repente, é como se

quem se contempla tornara-se em outro ente.

Por isso amor é um vesgo permanente:

sob as lembranças da superposição,

qual é o quadro real da galeria?

Traz-nos o vento, em perpassar sobressalente,

a longa imagem de curta duração

e a curta imagem do espanto improducente...

MINIATURVA I – 4 abr 2007

Pois bem: não é assim. Os outros todos

só nos veem de soslaio. Nunca somos

o centro de suas vidas. Sempre fomos

uma pequena malha nos seus nodos.

Migalha apenas de seus variados modos...

Poucos escolhem nesta vida os doces pomos

partilhar com os demais, nos quais expomos

nossa alma inteira ao fluir de alheios lodos...

Talvez seja verdade... Cedo ou tarde

o bem que já fizeste a ti retorna...

O certo é que ninguém mais se conforma

se lhes fazes o mal. E, às vezes, arde

tão mais profundamente o teu favor,

que até te odeiam por lhes mostrar amor!

MINIATURVA II – 28 JUN 15

Essa imagem que os outros nos revelam

é bem diversa de um verdadeiro ego

e essa miragem que aos outros eu entrego

largas partes de mim sempre cancelam.

Saem miniaturas em tal lacre que selam:

pequenos beijos esparsos no ar cego;

o mais que sou à vista alheia eu nego;

do mais que és teus olhos me congelam.

Mui raramente expõe sua alma alguém

após sofrer suas iniciais feridas:

forma-se a casca para ao mundo expor,

ante o receio de se sofrer novo porém

nas esperanças de início tão nutridas

no esmaecido nutrir de nosso ardor...

MINIATURVA III

Destarte, mesmo a nossa miniatura

que escolhemos ao mundo revelar

é mais reflexo do céu a se mostrar,

a nenúfares mesclado em canelura; (*)

(*) Longas filas paralelas

mesmo querendo mostrar imagem pura,

surge uma brisa, num leve conturbar

ou uma lágrima esquiva a se infiltrar

em cada instante da emoção perjura

e assim a miniatura faz-se turva,

por mais que límpida quiséssemos que fosse,

mais larga a casca e mais estreito o cerne,

que as mais sinceras emoções recurva,

qual amargor num sentimento doce,

nessa imagem tracejada qual por berne!

MINIATURVA IV

E estranhamente, se revela em cada furo

dessa traça que a pouco e pouco rói

a nossa alma e o semblante nos destrói,

só de passagem, um sentimento puro.

Que seja assim nosso destino duro,

que somente pela dor é que nos sói

mostrar saudade que no peito dói,

flagrar a luz permeio ao véu escuro!

Ai, como é turva a imagem que apresentas

perante mim, que tão clara a gostaria

e o quanto é turva a minha própria imagem!

Sombras de vento com que te contentas,

muito mais densas que as luzes que eu queria

entrelaçadas a aguapés sem ancoragem!

REGRAS DA VIDA XXIX – 4 abr 2007

Cada um de nós tem sua zona de conforto,

onde se sente bem, lugar seguro,

que pode controlar – um jeito puro

de não se expor em qualquer estranho porto.

Isso, no entanto, representa o aborto

de mil possíveis escolhas de tua parte...

Quiçá a rejeição casual da arte...?

Quem está mais seguro do que um morto?

Também, porque a zona em que te sentes

tende a encolher, secar, se os seus limites

não tentares expandir de quando em vez...

Porém se apenas ao novo te concites,

um novo mundo que inda mal pressentes

quem sabe hás de criar nesse talvez?...

REMOQUE 1 – 4 abril 2007

A verdade faz Deus e é Deus que a ouve

Quando nós Lhe suplicamos desde a mente.

Não no pôr-se de joelhos mais frequente,

mas do fundo da alma, em que se louve

como infeliz a situação vigente,

ou como súbito encontro que nos houve.

É então que a alma ainda mais se volve

a convocar o brando servo onipotente...

"Cuidado, então!" – já nos diziam os Romanos.

"Que os deuses te escutem é possível

e até mesmo que te façam a vontade..."

E como hás de saber que teus insanos

desejos de um porvir mais aprazível

de algum modo te trarão felicidade?

REMOQUE 2

Tua vida inteira não passa de um novelo

se permitires que simplesmente escorra;

cada infinito que a teu lado morra

foi esquecido por teu simples desmazelo.

Somente um fio, tal qual a escolha fê-lo:

vento na toalha transformado em borra,

capa de asperges que aos farrapos forra, (*)

livro mofado, quase impossível lê-lo!...

(*) Manto eclesiástico mais ou menos luxuoso.

Pois nem ao menos surge, a cada vez,

qualquer página completa do futuro:

uma frase, talvez... Ou só palavra,

na superfície cinza em negra tês,

a que te apegas com teu olhar perjuro,

sem perceber que resulta de tua lavra!...

REMOQUE 3

Giram ao lado mil outros carretéis,

de cor igual ou diversa inteiramente.

O que te obriga a tal girar premente,

ao passivo compromisso com suas leis?

Os militares confinados nos quartéis,

até que a guerra os massacre impunemente.

Às contingências submetendo certa gente

que outros pensam com inveja, serem reis!

Sempre é possível dar saltos nesse escuro

e se prender em qualquer outro novelo,

em nova trama seguindo doravante;

mas quem nos diz se um fado bom ou duro

não cortará nossas mãos, cristais de gelo

entranhados na carne nesse instante?

REMOQUE 4

Já nos disse Shakespeare, no passado,

“para o homem, o que será mais nobre,

submeter-se a um destino que lhe sobre

ou resistir-lhe,” em gesto tresloucado?

Quando é tão fácil se dar um passo errado,

cada uma prece um sino que nos dobre

para outro fado de riqueza ou pobre,

para uma glória que nos torne coroado?

Sempre recordes que a decisão é tua:

não será remoque de qualquer demônio,

nem um impulso que te imponha Deus,

mas decisão da própria mente nua,

que te conduza a prejuízo ou patrimônio

e a resultados que serão só teus!...

ZETÉTICA I – 30 jun 15

[Conjunto de preceitos para resolver problemas ou encontrar novos caminhos.)

Existem sobre a Terra mil portais,

numa malha simétrica, que cobre

o mundo inteiro e que não se descobre

senão depois de darmos os finais

passos de entrada nas vastidões fatais

que abrem para nós um mundo pobre

ou rico de prazeres, que recobre

completamente o plano a que, jamais,

retornaremos. Às vezes, é o destino

que nos convoca. Ou então, casualidade

que nos faz atravessá-los, inconscientes.

Ou podemos, em pleno desatino,

sentir seu palpitar de opacidade

e cruzá-los, quando estamos descontentes.

ZETÉTICA II

Eu já senti na vida tais passagens,

que raramente deliberadas foram;

os portais se deslocam. Alguns moram

na própria casa em que tens as tuas menagens;

outros se encontram nos cantos das paisagens;

quando tuas faces em seu cruzar se coram,

empalidecem ou talvez se douram,

na vibração subitânea das mensagens,

a ti sussurram os gênios dos portais...

Se não sabes onde estás, para onde vais,

não terás noção do fato plenamente,

mas cruzarás muitas vezes sem sentir

e algumas outras até nas vascas do dormir:

quando acordares, já diverso é teu presente!

ZETÉTICA III

É mais questão de sondar esses possíveis,

na longa ruma das paixões disformes,

até que ponto nos serão conformes,

até que ponto nos serão imarcescíveis,

alguns de fato, são quase intransponíveis,

outros prontos a engolir-nos, sem informes,

que ao percebermos, já os cruzamos, desconformes,

em abismos balançando inexauríveis.

Para onde vamos após as travessias

dificilmente saberá mesmo o destino,

não mais reais do que lances de xadrez;

de cada peça os movimentos têm suas vias

e só nos resta um arbítrio pequenino,

após ter escolhido o qual se fez!...

ZETÉTICA IV

A escatologia que herdamos dos judeus

só dá margem aos milagres desta forma:

o quanto à mente humana se conforma

Deus já criou nos movimentos seus.

Portanto, é-nos possível erguer véus

e ao cruzar um portal que nos reforma,

ali estaremos em sujeição à nova norma,

superando desta forma a mil incréus!

Porque, de fato, Deus sempre pretendeu

com esse tipo de milagre nos premiar,

embora nossa deva ser a decisão,

pois para Ele tudo já aconteceu,

as nossas vidas decidindo manejar

tais quais seu plano já feito de antemão!

revolta 1 – 01 jul 15

guardei rancor no fundo da gaveta

por todo o mal a que fui submetido;

a mim mesmo fiz mal, por permitido,

em subserviência ou submissão secreta,

que me roubassem a vida mais dileta,

mesmo a saúde que me havia nutrido

um falso orgulho, destarte destituído,

sobremaneira em autodesafeto!...

de fato, a vida a nada me obrigou,

nas circunstâncias mesmo mais perversas,

sempre me coube o poder da decisão;

se em artimanha caí, não me ajudou

minha própria ingenuidade ante as conversas

por que perdi no final toda a ilusão.

revolta 2

por que, então, deveria ter rancor

daqueles que essa vida me roubaram,

se minhas fraquezas é que me lastimaram,

sem resistir à invasão de alheio ardor?

porque evitei combater o alheio amor

pelos desejos que para si buscaram,

se permiti me tomassem o que tomaram,

numa indulgência resultante do candor?

e nesse caso, toda a minha revolta

só poderia lançar contra mim mesmo,

pois deveria ter sido mais feroz

e impedi-los de tomar com rédea solta

os seus próprios interesses, sem a esmo

me dominarem com indiferença atroz!

revolta 3

mas como posso sentir-me rancoroso

para comigo mesmo? Se eu errei,

novo caminho com esforço tomarei,

que me seja de proveito primoroso.

mas como é árduo o passo corajoso

desse abandono da senda que tomei!

dos desenganos não me queixarei,

pois cabe a mim vencê-los, prestimoso.

mas no entretanto, a revolta permanece;

não seria mais humano se o amargor

não lamentasse as nuances de traição!

por isso, muito embora, remanesce,

pois me fizeram perjurar de meu pudor

para a tais outros conceder satisfação!

TESOURO ANTIGO I – 02 JUL 15

Guardei malícia com o maior carinho

em um bolso do casaco, confortável,

sendo o rangido menos suportável

que esse dote no bolso resguardado.

Guardei silêncio no momento asado,

no vão aguardo de resultado admirável,

que me trouxesse alívio nesse frágil

equilíbrio em que me via atoleimado.

Guardei a calma igual que um patrimônio,

tal qual os outros vão juntar a sua poupança,

a minha língua mordida em mil pedaços,

mas não sei por quais artes do demônio,

depois de um mês, minha alma de criança

lhe permitiu escapar de meus abraços!

TESOURO ANTIGO II

“Quem cala é que consente”, diz ditado antigo,

que assim a outrem se confere impunidade

para que faça o quanto tem vontade:

silêncio e paz na partilha de um abrigo...

Mas a tensão suportar não mais consigo:

silêncio é coisa de grã voracidade

que nos devora o peito – sem maldade –

por não lançar-se assim contra o inimigo.

E foi-me inútil em tal silêncio persistir,

enquanto as vozes ao redor se martelavam,

já que o silêncio só lhes dava permissão;

com tanto esforço sem nada conseguir,

salvo as palavras que dentro em mim se alçavam

e me acabaram por romper o coração!

TESOURO ANTIGO III

Guardei silêncio e recebi tão só injustiça,

fui acusado de dar falso testemunho

nesse silêncio com que até hoje deponho,

a minha moléstia não mais do que preguiça!

Uma “artimanha de covarde” nessa liça,

por minha recusa de cerrar o punho,

de meu recolhimento em triste sonho,

ante um rancor que assim mais forte atiça!

Por não poder ter concreta acusação

que me pudesse ser lançada ao rosto,

quando eu apenas recolhi-me ao leito!...

Guardei silêncio sem ganhar perdão,

tal qual tivera a violência exposto,

bem ao contrário de remoê-la no meu peito!...