O CISNE & MAIS
O CISNE & MAIS
William Lagos
VIVEIRO I – O CISNE I – 18/7/2006
A que compararei o meu Amor?
Ao cisne alado, de grande envergadura,
Suas penas brancas, de singular textura,
Seu deslizar constante e sem temor...?
Vive nos lagos, à sombra de um castelo
[Castelo eu tenho, no meu coração],
Corta as alturas, seus remígios são
Leme seguro ao seu destino belo...
E como um cisne, ela se esforça por tornar
[Depois de tantos anos desperdidos],
Em perfeição, a mágoa de seu seio...
E aguardo o dia em que irei olhar
O voo branco e os triunfos obtidos
Pela menina que já foi Patinho Feio...
O CISNE II – 30 MAI 14
Ou quiçá em cisne negro eu pensaria,
O adversário executando seu balé
Em Lebedinoie Ozero; ou mesmo, até
No Cisne de Tuonela, que igual negro seria,
Mas que aos deuses da morte anunciaria
A chegada de algum mago nesta sé,
Em sua própria magia a mostrar fé,
Que Elias Lönnrot depois descreveria?
Por que razão presume a literatura
Que o branco é belo e o negro é negativo?
Será que o negro representa a morte
Ou qualquer infecção na carne escura
Ou a tempestade em seu negror ativo,
Tudo indicando para nós a pior sorte?
O CISNE III
Certamente não se trata de racismo:
Os velhos contos dos povos europeus
Talvez tivessem como vilões judeus
Ou os mongóis cruéis em banditismo,
Mas sem que negros fossem postos em ostracismo,
Pois nem sequer conhecidos eram seus;
E Balthazar, na tradição dos galileus
Era um rei babilônio em tal modismo.
Foi só depois que a lenda se formou
De cada rei com diversa cor na pele,
Do mesmo modo que os três filhos de Noé.
Qualquer monge medieval é que o indicou
E então pintores aplicaram carvão nele,
Mas com traços europeus, em ingênua fé...
O CISNE IV
Pessoalmente, nunca vi um cisnezinho,
Embora adultos encontrei até aqui;
Mas de cisneiros só em lugar diverso ouvi;
Pelos banhados nunca soube de algum ninho;
Do mesmo modo, nunca vi sequer ovinho
Que em incubadeira chocasse para si
Qualquer um criador; nem ao menos sei se vi
Alguma foto de algum pássaro mesquinho
Que o conto justificasse do Patinho...
Nem ao menos nas histórias disneyanas,
Que tanto tipo de ave antropomorfizam,
Gansolino é ganso, Gastão um marrequinho
E em sua panóplia de criaturas semi-humanas,
Ratos e cães suas aventuras realizam...
O CISNE V
E muito menos no brasileiro Zé Carioca,
O papagaio da Vila Xurupita,
Em cuja história tanto pássaro se agita,
Vi algum cisne com bico feito em boca...
Dos habitantes, a maioria é curiboca;
Aves nativas usando roupa e fita,
Mas não há cisnes, uma ave tão bonita,
Nos céus, nos lagos, em barraco ou toca...
Talvez não queiram lembrar a jovem Leda
Que por Zeus como cisne foi marcada;
Tíndaro apressou-se a vê-la fecundada,
Que paternidade ao próprio deus não ceda...
Mas foram ovos que Leda deu à luz,
O que à história de Troia nos conduz...
O CISNE VI
A Cisne que descrevo não tem penas,
Salvo essas penas de seu coração;
Somente voa em raridade de ocasião
E então contempla, lá do alto, tristes cenas
Que ela descreve em historias nada amenas,
Mostrando mais terror do que emoção;
Já não a vejo dançar com igual paixão...
Ai, cisne minha, por que a alma me envenenas?
Ainda tem longo pescoço, que se inclina
Quando dorme ou enlanguesce no calor,
Mas não a vi ainda cumprir a triste sina
Daquele cisne que esternuta com vigor
E quando canta sua melodia mais fina,
Nela se esvai em seu último estertor...
JAQUETA DO VENTO I – 31 MAI 14
A areia dos escombros, pertinaz,
escorre pelas gretas e desfaz
toda fenda escondida no perfil
e encobre lentamente as fontes mil
da paisagem enlodoada de secura,
na nódoa permanente da ternura,
que não se aceita em roçagar de fel,
nesse arcabouço castanho de enxaimel
do germanismo brotado em meu país;
sou parte suíço e assim aprender quis
esses matizes a que chamam guturais
mas que sempre me agradaram muito mais
do que outras frases ditas de doçura,
em sua energia de sombras e loucura.
JAQUETA DO VENTO II
A loucura dos escombros satisfaz
ânsias do vento de tudo carregar;
da obra humana tudo desmanchar
em seu tapete semiótico de paz.
Um dia, o mundo em dunas se desfaz,
nessa entropia o vento a se alegrar,
nesse casaco de poeira a dominar
os súditos de areia que refaz.
Porém a água tem maior planura
e o vento só a consegue marolar,
areia e poeira aos poucos a afogar.
Vão os escombros da cidade na conjura,
para plâncton e nécton alimentar,
formando a vaza como alfombra obscura.
JAQUETA DO VENTO III
Se afana o vento na fúria da erosão,
cada montanha elaborando em enxaimel,
rasga desenhos quais favos de mel
nos longos séculos da constante gravação.
Depois se acalma e permite à brotação
tudo cobrir em esverdinhado fel;
ficam as rochas na prece do burel
até que o vento insista em nova escavação.
Chama a chuva em auxílio do combate,
para a jaqueta do verde desenraizar,
mas não encontra nela aliada de confiança;
por qualquer árvore que hoje o vento abate
furtiva a chuva vem novas mudas aleitar,
tecendo nova jaqueta de esperança...
JAQUETA DO VENTO IV
Então, feroz, contra a praia ele se lança,
buscando ajuda na força da maré,
que abre em rochedos cavernas no sopé,
em temporária e descartável aliança;
porém no oceano entropia não alcança:
fonte da vida, da distropia a sé;
embora lisa a superfície, guarda até
mil verticais palácios em sua dança;
castelos de algas, mastabas de coral,
aos poucos vão erguendo cada atol,
que enfrenta calmo a raiva do tufão;
e o vento arranca a jaqueta vegetal
para lançá-la a ilhas de outro sol,
em que ressurge numa nova brotação...
JAQUETA DO VENTO V
Talvez o vento até busque ser entrópico,
em formidáveis dispêndios de energia,
porém se envolve em mil nuvens de harmonia
e o resultado final se faz distrópico,
pois ruge o vento desde o polo ao trópico,
mas no seu canto se entoa a fantasia;
bem mais a neve tudo o mais sepultaria
sob jaqueta branca, em seu frio tópico;
e embora o vento arranque o teu calor
e o distribua nas terras por igual,
vem o Sol sobre ti em maior mal
na entropia de uma jaqueta de suor,
com que recobre, passo a passo, todo o chão,
regando a vida em audaz vegetação.
JAQUETA DO VENTO VI
Também o vento varreu os imigrantes
de suas planícies, dos planaltos e das serras,
jaqueta humana sobre nossas terras,
jaquetas cinza das cidades dominantes!
Foram jaquetas portuguesas controlantes:
desde o começo a sua língua fecha encerras
para as jaquetas esfarrapadas pelas guerras,
jaquetas finas de investidores triunfantes!
Tudo isso o vento sobre nós soprou,
aqui reunindo energia em turbilhão,
nos ameríndios a causar perplexidade;
eurojaqueta que todo o solo dominou,
afrojaqueta em mesclada gestação,
que espreita o vento na espera de ocasião!
COMPREENSÃO DA FLOR I – 1º JUN 14
A história que se escoa lentamente
pinga mansa nas gretas da saudade;
a vida é feita dessa imperenidade,
gotas perdidas no ralo subjacente;
nos esgotos do tempo dorme a gente
que no passado recordava antiga idade,
que era passado na sua maturidade
e logo foi-se unir a igual corrente.
Porque somente a semente permanece
em sua branca semeadura secular,
ligada ao óvulo como um deus à prece,
ressequida na cadeia tumular
que pelos vidros da ampulheta desce
e volta esquiva os seus filhos a espiar.
COMPREENSÃO DA FLOR II
Não são os homens diferentes de uma flor
que vive apenas breve em sua estação,
até que as pétalas ressequem em razão
do vento-esponja que abebera seu frescor.
Mas mil essências se espalham nesse olor
criado junto com a breve brotação;
são as sementes a fecundar o chão
ou é o perfume que se faz dominador
e assim se reproduz nas pradarias,
esparzindo sobre as pedras redolência,
nas reentrâncias dos troncos, sem clemência
e entre as narinas em constantes elegias?
Em cada cérebro faz assim brotar semente,
flor e perfume a fecundar a humana gente...
COMPREENSÃO DA FLOR III
Na geração seguinte, brota a flor
de uma semente ou da essência do perfume,
o frio da morte transformado em lume,
o odor perdido renovando o seu vigor.
Na primavera seguinte, brota a cor
e pelos prados o pintalgar assume,
por onde quer que passo humano rume,
cada semente explodindo em seu olor.
Na geração seguinte, brota a gente,
cada criança com seu cheiro peculiar,
jovem semente que não pode ainda gestar,
todas iguais em seu laço divergente,
os rostos secos novos rostos a espiar,
enquanto a cor se faz em cinza indiferente.
COMPREENSÃO DA FLOR IV
Mas a flor sobre o solo faz-se em poeira,
enquanto a poeira de gente a gente esconde,
por sob o solo, sem se saber no fim aonde
essa poeira se esparge derradeira...
Será que vira semente, por inteira,
tome as radículas, igual que fosse bonde
ou finos túneis de chuva encontre e sonde
e numa flor se transforme, alvissareira?
Perfume de corte, perfume de morte,
perfume de porte, perfume da sorte,
poeira da vida, poeira um dia querida,
poeira perdida, poeira compreendida,
vida em perfume, vida feita em lume,
vida, afinal, que para o cume rume...
MÁQUINA DO TEMPO I – 2 JUN 14
O TEMPO CHEGA INCAUTO SOBRE NÓS,
SEM SUSPEITAR DO DESTINO QUE O ESPERA;
O SER HUMANO É VERDADEIRA FERA
E O TEMPO ENFRENTA QUAL FEROZ ALGOZ.
O TEMPO PUXA E O VAI TORCENDO EM NÓS
E FACILMENTE DELE SE APODERA,
PARA DEPOIS AFIRMAR QUE O TEMPO GERA
ENQUANTO O ROUBA EM SEU ESFORÇO ATROZ.
DEPOIS AFIRMA: “JÁ TENHO TANTOS ANOS
E VIVI O TEMPO DE UMA LONGA VIDA”,
COMO TOGA, O TEMPO ENROLA NO SEU BRAÇO
OU O GUARDA EM SACOS, CAIXOTES OU EM CANOS,
APRISIONANDO ALI SUA DESPEDIDA
QUANDO A NÃO-VIDA O TOMA EM SEU ABRAÇO.
MÁQUINA DO TEMPO II
PORQUE O TEMPO É MAIS HUMANA CRIATURA
QUE AO DESTINO E AO MUNDO É CONQUISTADA,
IMATERIAL EM SUA FIGURA ALADA
E PERSEGUIDO À FORÇA DE TORTURA...
O PASSADO É CONSERVADO COM LOUCURA,
O PRESENTE UMA QUIMERA CONQUISTADA,
VISCOSO E TRANSPARENTE, CORREDIÇO NADA,
INDIVISADO EM QUALQUER PLAGA FUTURA.
MAS DE ALGUM MODO O CAÇA O SER HUMANO,
TREMENDA MASSA DE CONQUISTADORES,
O INVISÍVEL DO FUTURO TRANSFORMADO
NO INVISÍVEL DO PASSADO SOBERANO
PELO PRESENTE INALCANÇÁVEL NOS ARDORES
COM QUE O NADA VAI NO NADA ACUMULADO.
MÁQUINA DO TEMPO III
DO FURTO O FRUTO DENOMINAMOS VIDA,
SEM QUE ANIMAIS OU PLANTAS COMPARTILHEM;
CHAMAM DE HISTÓRIA ESSAS REDES EM QUE ENCILHAM
OS TIQUETAQUES CAPTURADOS NA CORRIDA
POR LASTIMÁVEL MAQUINÁRIA CONCEBIDA
DEPOIS QUE MIL CRONÔMETROS PERFILHEM
E HORA E MOMENTO COM GRILHÕES ATILHEM
EM SUA CORRENTE COM BERLOQUE ENTRETECIDA.
MAS COMO TUDO NA VIDA TEM SEU PREÇO,
TAMBÉM O TEMPO SE REBELA À ESCRAVIDÃO
E EM SEUS ESFORÇOS DE FUGA ELE SE AQUECE,
ROUBA DE VOLTA, EM SUA LUTA, O ADEREÇO,
A HUMANIDADE CONTENDO NA SUA MÃO
E ENQUANTO FOGE DE NÓS, NOS ENVELHECE!
MÁQUINA DO TEMPO IV
NÃO TÊM NOÇÃO DO TEMPO OS VEGETAIS;
VERÃO E INVERNO ESPERAM, SEM CANSAR,
ENQUANTO DIA E NOITE VEEM PASSAR;
MUITO MENOS CREEM NO TEMPO OS MINERAIS
E A MESMA COISA OCORRE AOS ANIMAIS,
QUE APENAS PENSAM EM COMER E REPOUSAR...
POR QUE O TEMPO ENTÃO HÁ DE ENCONTRAR
A HUMANIDADE SOMENTE E NINGUÉM MAIS?
APENAS NÓS O PERÍODO CALCULAMOS
DELIMITADO POR NOSSO NASCIMENTO
E PELO INSTANTE EM QUE NOS CHEGA A MORTE.
SERÁ QUE TAL DECURSO DOMINAMOS
OU SÓ O CRIAMOS POR NOSSO JULGAMENTO,
ENQUANTO HABITA EM NÓS A NOSSA SORTE?
MÁQUINA DO TEMPO v
CERTO É QUE EXISTE DA TERRA A ROTAÇÃO
E COM ELA A PROCISSÃO DE NOITE E DIA;
SUA TRANSLAÇÃO EM TORNO AO SOL DARIA
DE CADA NOVO ANO A CONCLUSÃO...
MAS PASSAM ERAS E INDIFERENTES SÃO
OS ANIMAIS A QUE SÓ O INSTINTO GUIA;
NEM CORDILHEIRA AO TEMPO ACENARIA,
PÁSSARO ALGUM, AVE DE ARRIBAÇÃO...
TODOS SABEM OS MOMENTOS DOS INSTINTOS
E MUITO MAIS QUE SABER, SÓ OBEDECEM;
POR CATACLISMOS AS MONTANHAS CRESCEM,
MARÉS SE MOVEM NOS PONTOS MAIS DISTINTOS,
MAS TEM NOÇÃO DO TEMPO EM QUE FLUTUA
ESSA ONDA QUE impulsiona a LUZ DA LUA?
MÁQUINA DO TEMPO VI
POR ISSO DIGO QUE O TEMPO NÓS CRIAMOS,
ROUBANDO AO NORTE E AO SUL O SEU ESPAÇO,
DO LESTE E OESTE IGUALMENTE ALGUM PEDAÇO
E COM TORRÕES NOSSO TEMPO DEMARCAMOS
E PARA O ALTO E BAIXO CONTINUAMOS,
PARA A DIREITA E A ESQUERDA NOS ABRAÇOS,
PARA O DESERTO DE INDISTINTOS TRAÇOS,
ENTRE OÁSIS E MIRAGENS AVANÇAMOS.
E DAS PLANÍCIES FABRICAMOS NOSSA HORA
E DOS VALES MONTANHOSOS O MOMENTO,
CADA INSTANTE ASSIM FURTADO DE LAGOA.
SOMOS MÁQUINAS, FABRICANDO DESDE O OUTRORA
ESSA INEFÁVEL PERCEPÇÃO DO TEMPO,
QUE A HUMANIDADE EMPURRA FRENTE À PROA!
CADERNOS I – 3 JUN 14
Como são tristes os livrinhos de poesia,
Fininhos, em brochuras desleixadas,
Suas cem dedicatórias desprezadas
Por essa gente que aos lançamentos ia!
Comprando versos que ler não pretendia
Ou mesmo obras em prosa compiladas...
(Por suas presenças já foram prestigiadas:
Basta adquiram, por que ler alguém devia?)
Não sei se morrem e outro desmancha a biblioteca
Ou se eles mesmos delas vão se desfazer:
Por dois ou três reais os compro em sebo,
Quais peregrinos para minha própria meca.
Quem com meus livros ficará quando eu morrer?
Lerá alguém esses mil versos que concebo?
CADERNOS II
Só imagino com quanto sacrifício
Ou, pelo menos, com quanto importunar,
Nessa insistência com que saem a buscar
Financiamento para o próprio benefício!
Só imagino em qual gaveta o vício
De escrever versos costuma-se ocultar,
Até que alguém se os decida a publicar,
Causando ao povo um bem ou um malefício...
Só imagino o palpitar do coração,
Nesse momento final do lançamento:
Quantos virão, afinal, participar?
Tantos convites para distribuição...
Tão poucos que aparecem no momento
E esses que vêm, por sentirem-se obrigar!
CADERNOS III
Mesmo ao ser página em coletânea escassa,
Bem imagino o orgulho do momento,
A vaidade que derrota o julgamento:
Letra de forma, em permanente graça!
Mas como tudo nesta vida passa,
Passado o filme que causou tanto portento,
Passado o ágape, ingerido o alimento,
Passada a peça de teatro pela praça,
De certo modo, até a brochura é permanente,
Em especial quando foi bem dispersada,
Muito mais do que o baile ou um concerto...
E assim as guardo comigo, complacente.
Meus próprios versos só na rede devassada,
Sem grandes mágoas no coração aberto.
CADERNOS IV
Não que da fama namore as esperanças
E muito menos da glória ou da fortuna;
Para redes sociais nada me ruma,
Digitalmente, a bailar pelas suas danças;
Mas o tomo pela mão, igual crianças,
Quando algum verso para mim se apruma
E alguns deles eu digito, sem que alguma
Vantagem possa ter em tais bonanças...
Por tais brochuras eu sinto compaixão:
Por mais pobres que sejam, têm o valor
Das emoções humanas desse autor
Ou dessa autora que nelas pôs a mão.
Igual que vai ao arado o lavrador,
Alguma ceifa a esperar noutra estação...
CADERNOS V
Fracos que sejam, eu os trato com respeito;
Ponho as brochuras lado a lado em minha estante;
Talvez encontre, algumas vezes, um instante
Para a leitura a que todas têm direito...
Sempre a uma vista de olhos me sujeito
E encontro mesmo algum trabalho interessante;
Aqui e ali, acho um soneto itinerante,
Nos versos livres perdido no seu preito...
Em mim perdura a busca de uma rima,
Da métrica, do ritmo, da cesura
E um verso livre só de fato apreciarei
Quando a temática ao original se inclina
Ou uma ideia vê-se expressa em forma pura,
Na rara imagem com que me surpreenderei...
CADERNOS VI
Não obstante, dou honra ao linguajar,
Por mais pobre que seja a sua postura;
Folheio as páginas na maior candura,
Mesmo que nada ache ali a admirar...
Pois é obra humana, no seu interpretar
E me pertence também, ágil ou dura,
Não como exemplo de literatura,
Mas como sangue de que posso partilhar.
Ao invés de admiração, por empatia,
Por esse esforço que um dia foi mostrado,
Quer seja simples ou complexo se adense,
Embora às vezes não consiga simpatia
Pelo medíocre ou em pretensão plagiado
Que na cultura alheia sequer pense...
ESCALPELO I – 4 JUN 14
Será que a dor dentro dalma me flutua
ou ali somente deposita o seu langor?
Existe um fundo em tal mar interior,
no qual a mágoa se esconda, toda nua?
Será que dentro dalma a pena estua
e se dessangra até o máximo palor?
Ou com ventosas a capture um sugador
e o sofrimento então perfure como pua?
Existe mesmo o propalado abismo
que no espírito humano se aprofunda,
como tortura de caráter insondável
ou nos páramos da alma o cataclismo
vai diluindo a tristeza gemebunda
e a transmuta em qualquer coisa admirável?
ESCALPELO II
Na verdade, é só ilusão que a gente sonda,
integralmente, os mares do inconsciente;
quando muito, se explora o subconsciente,
sempre mutável em diuturna ronda...
O inconsciente, porém, é uma anaconda
que nos sufoca em cada anel potente;
por mais que seja a exploração ardente,
tanto mais coisas provavelmente esconda.
No fundo dalma prossegue o bisturi
de quem em autoexame mais se empenha
e ali encontramos os fantasmas do passado
que colocado por nós não o foi ali,
mas de ancestrais imemoráveis venha,
parte do cérebro que nos foi legado...
ESCALPELO III
E como é fácil iludir a própria mente
nessa certeza de um exame de consciência,
quando a mente só nos cede a indigência,
ocultando a sua riqueza, indiferente...
A mente é múltipla no que nos apresente,
cada camada a testar nossa paciência,
impermeável à constante persistência,
como luneta com inversão de lente...
Assim dizer: “Eu me conheço,” é pretensão,
muito mais fácil conhecer o mundo externo,
que não nos mostra tantas máscaras acesas,
enquanto nosso Ego, em ebulição,
mostra cem bolhas, a se fazer de eterno,
que logo explodem em cem outras incertezas.
CAMINHANTE I – 5 JUN 14
Ouvi dizer que o amor é um andarilho
Que não consegue parar num só lugar...
Tão logo pôde qualquer alma conquistar
Prossegue avante por seu largo trilho...
Dizem que amor tão só do egoísmo é filho,
Pois só deseja a outrem dominar,
Sem realmente a si nunca entregar:
Ama da espiga cada grão de milho!...
Quer para si o domínio em plenitude,
Para depois afastar-se, satisfeito,
Só largando para trás o desamor,
Seu irmão gêmeo, de idêntica virtude,
Muito mais permanente e escorreito,
Por longos anos a perpetuar langor...
CAMINHANTE II
Amor possui um escasso suprimento
De reluzentes e pontiagudas flechas:
Em cada coração abre suas brechas,
Porém sua aljava esvazia num momento.
Então retorna atrás, de olhar atento,
E cada seta arranca por suas mechas,
Deixando o peito abandonado a suas endeixas,
O antigo amor a esvair-se em desalento.
Pouco se importa por causar desilusão,
Se recupera, uma a uma, as suas flechinhas:
É uma criança, afinal, e irresponsável;
Só busca adiante encontrar sua diversão:
Pinga de amor o veneno em mil gotinhas,
Paixão perpétua, na verdade, inalcançável.
CAMINHANTE III
Mas como amor eu queria permanente,
Quebrei furtivo a haste de sua seta;
Quando a veio buscar, em hora secreta,
Deixou-me a ponta no coração plangente...
Mas a dona desse amor foi imprudente,
Sem se lembrar de guardar ponta dileta;
Quando amor a puxou, levou completa
A sua flecha de amor para outra gente...
Assim, preciso rasgar meu coração
Nesse lugar da ferida que desponta,
De algum modo desentranhar a ponta aguda
Para em momento de sua distração,
Cravar no dela essa rombuda ponta,
Vestindo amor, enquanto o meu desnuda...
ESCRIBA DA ROSA I – 06 JUN 14
Como rosa vermelha escandalosa,
abrindo as asas para qualquer prosa,
no voo portentoso, poderosa
com que se abre inteira para o sol;
qual rosa branca em aberto parassol,
temendo ser queimada no arrebol,
estames e pistilos num farol,
mas que se abre inteira para a glosa;
qual rosa rosa cheia de harmonia,
cada pétala amarfanhada que se via,
cada gota de orvalho outro diamante,
assim te vejo azul, corola minha,
que em minha vida cresceste qual rainha,
no teu amor de semanal instante.
ESCRIBA DA ROSA II
Como uma rosa verde em raridade,
aberta para mim, em liberdade,
a rosa rara em sua rosiedade,
com que se esconde do excesso de calor;
como uma rosa amarela de vigor,
em cada pétala um espelho de valor,
perante o Sol girando em seu pendor,
aberta ainda, a despeito da ansiedade;
como uma rosa de laranja alaranjada,
de alguma estufa estranha condenada,
ai, rosa minha, por que te deixas ver?
Vem, nessa apoteose do teu ser,
rosa formosa, perfume de mulher,
que só por mim deveria ser roubada...
ESCRIBA DA ROSA III
Como uma rosa de esplendor rajada,
quem te diria, flor branca-avermelhada,
que tua ancestral fosse tão só rosada,
botões mesquinhos quais do rosmaninho?
Como uma rosa tricolor em seu carinho,
Descabelada junto a meu caminho,
como uma rosa a morrer, devagarinho,
sua semana de luxúria ultrapassada;
como uma rosa de preto pintalgada,
o rubro beijo já de cor acastanhada,
ainda te colho e guardo em meu caderno,
mesmo com a ponta da pétala enroscada,
entre as páginas te abraço, em amor terno,
por que me abraces em morto amor eterno...
escriba do sol I – 07 jun 14
tua luz aguardo no verde do pinheiro
e te recebo no acúleo do espinheiro,
na rama magra de cada pilriteiro,
a luz arisca que me chega enviesada;
a luz espero na manhã rosada
ou na silhueta da nuvem encarnada,
cada crepúsculo de estrela apalermada,
piscando azul no despertar primeiro;
tua luz aguardo em cada refletir
por sobre o ramo plácido da aveia,
sobre o suave crepitar de uma lagoa;
tua luz espero em cada percutir
do coração que da glória se arreceia
do pingo rubro no rufo da garoa.
escriba do sol II
tua luz espero em redolente festa,
em cada pólen que a flutuar se apresta,
cada aventura que se narra numa gesta,
enquanto dorme a luz do meu lampião.
Enquanto canta devagar o coração,
enquanto a ave salta desde o chão,
réstia de luz na espia do porão,
réstia do oriente a pingar em cada fresta;
tua luz espero como pássaro no ninho,
cada filhote em seu débil piozinho,
pela ansiedade da primeira refeição;
tua luz espero no último piado
de uma coruja, a cabeça posta ao lado,
em sua recusa por tua iluminação.
escriba do sol III
tua luz espero como flébil planta,
com seu penacho que para ti levanta,
na fotossíntese que plácida descanta
e água e ar em vegetal transforma;
tua luz espero, que o alimento forma,
que a umidade do solo em grama torna,
no orvalho em que derrete a geada morna,
nesse primeiro gorjeio da garganta;
tua luz espero sobre o campanário,
seu bronze a reluzir, feito um canário,
no sino adormecido que desperta;
tua luz espero em cada eremitério,
no verde musgo da cruz no cemitério,
no deserto que reluz a céu aberto.
escriba do sol IV
tua luz espero, enquanto a noite apaga
e seu manto desenrola noutra plaga,
estrelas acalenta e em sono afaga,
enquanto o azul se faz no céu vibrante;
tua luz espero no cabeço triunfante
de cada cordilheira dominante,
de cada vale assustado nesse instante,
temendo a luz qual feiticeira maga...
tua luz espero na janela da cidade,
enquanto o leito da operosa humanidade
vai revelando os suores dessa noite;
tua luz espero do tilintar da sina,
a revelar cada espanto que destina
o novo dia para o bem ou para o açoite...
CALÍOPE I – 8 JUN 14
A MUSA ERGUE SEUS BRAÇOS NO JARDIM.
TEMPO HOUVE QUE PENSEI ME VISITAVA,
QUE A CADA NOITE PELAS GRADES SE ESGUEIRAVA
E ME BRINDAVA COM SEU AMOR ASSIM.
ACREDITAVA QUE SÓ FOSSE PARA MIM
ESSE SORRISO QUE NOS TRAÇOS ESTAMPAVA,
A LUZ DO ARCHOTE COM QUE OS CÉUS DESAFIAVA,
SEU CORPO CINZA DE CIMENTO ENTRE JASMIM.
NÃO É DE MÁRMORE A ESTÁTUA ASSIM ERGUIDA
POR ENTRE AS FLORES E ARBUSTOS DO CANTEIRO,
NENHUM EXEMPLO DE ARTE FUNERÁRIA,
MAS PARA MIM ERA A MUSA CONHECIDA,
UM DIA ESCULPIDA POR ANTIGO MARMOREIRO,
MESMO MOLDADA NUMA FORMA CARCERÁRIA.
CALÍOPE II
NÃO É QUE ACREDITASSE, REALMENTE,
MAS TINHA ENTÃO DIREITO À FANTASIA;
EU A CHAMAVA “KALLYOPSIS” E DORMIA
NO DESVÃO DE SEU CORPO AMORTALHADO.
PORQUE SENTIA A SOLIDÃO FREQUENTE,
POR FRIOS QUE FOSSEM OS SEUS MEMBROS, EU QUERIA
E DURANTE MEUS SONHOS PRESSENTIA
SUA FORMA RÍGIDA ESTENDIDA DE MEU LADO.
NUNCA PENSEI, IGUAL PIGMALIÃO,
QUE REAL VIDA PUDESSE-LHE INFUNDIR,
MAS A AMAVA EM ESQUIZOFRÊNICA LOUCURA
E A APERTAVA, GELADA, AO CORAÇÃO,
SABENDO ESTAR APENAS A DORMIR,
NA VAGA INTENSA DE REAL TERNURA!
CALÍOPE Iii
MAS O TEMPO PASSOU E HOJE PRESSINTO
QUE ESSA MUSA QUE ENTÃO ME FECUNDOU
E TANTOS VERSOS PARA MIM DEIXOU,
NESSA ILUSÃO PERMEADA DE ABSINTO,
DEIXOU O JARDIM E PARTIU PARA DISTINTO
CANTEIRO EM QUE OUTRA CÓPIA SE ELEVOU;
UM FIO DE LUZ LÁ SEU CORPO PERFUROU,
OUTRA LANTERNA A INCENDIAR O CÉU RETINTO.
PORQUE HOJE AINDA CONSERVO A INSPIRAÇÃO,
PORÉM NÃO MAIS DE UM CORAÇÃO MAGOADO,
QUE EM MIM SE ERGUE O CANTO RESIGNADO
DE CONTEMPLAR ESSA FIGURA SEM PAIXÃO
E VÊ-LA APENAS COMO ESTÁTUA DE CIMENTO,
EM QUE NÃO MAIS INSUFLO O MEU ALENTO!
DOMINADORES I – 9 JUN 14
Seria estranho Napoleão no meu quintal
a praticar suas táticas e estratégia;
não acharia aqui a vitória-régia,
flores humildes nos canteiros, afinal...
Seria estranho contemplar seu embornal
cheio de mapas e de escritura egrégia,
sua pena a retraçar planos que arpégia,
cada arbusto obedecendo a seu sinal...
Seria estranho ver na horta Júlio César,
decapitando cebolas, sem Pompeu
que contrariasse, feroz, destino seu...
E nos Idos de Março a replantar,
com os próprios louros, qualquer girassol
que recordasse sua memória no arrebol!
DOMINADORES II
Ver Alexandre o Grande seria estranho
suas lições a tomar da história persa,
uma corrente aos pés nessa conversa,
sem um império dominar de tal tamanho!
Seria estranho ver de Átila o rebanho
a retirar-se para a estepe mais dispersa,
enquanto os godos, em direção diversa
novas terras conquistariam em seu ganho.
Seria estranho que os Cruzados infelizes,
desistindo de tomar Jerusalém,
Constantinopla não fossem conquistar,
sem Bizâncio enfraquecer em seus deslizes,
opondo aos turcos broquel e palafrém,
sem o império bizantino esfacelar!...
DOMINADORES III
Seria estranho “Hitler ver de mamadeira,
em qualquer creche de judias crianças,”
servindo o bico e com ele as esperanças,
vestindo o trapo branco de enfermeira...
Seria estranho ver Stalin na ladeira
que desce dos Urais, nessas mudanças,
corrente aos pés, do chicote em dominanças,
tendo a Sibéria por morada derradeira...
Seria estranho Mao Tsetung ver também
a renegar sua “Cultural Revolução”,
novas páginas acrescendo, com paixão,
em seu “Livro Vermelho”, que espaço tem,
recomendando retornar à tradição,
sua “Longa Marcha” conduzindo mais além!
DOMINADORES IV
Seria estranho Fidel Castro convertido,
já não digo ao original catolicismo,
mas, finalmente, ao “atroz capitalismo”,
por ele tantas vezes perseguido!...
Ou ver Saddam Hussein reconhecido
como profeta sincero do islamismo,
a fechar entre sunitas e xiitas o abismo
que hoje difama sua fé em monoteísmo!
E como o estranho seria desejável,
sem os massacres que dizimam africanos,
sem o avanço do deserto que os consome
e sem a guerra civil inaceitável
que na Iugoslávia grassou entre os arianos,
sem que a ambição tal estranheza dome!
SOBRANCERIA I – 10 JUN 14
Em meu quebra-cabeças de ilusões,
essas de ontem deixaram de convir;
meus velhos erros busquei perquirir:
que me corrijam as novas atuações!...
No catavento das mil aspirações,
os meus enganos buscarei ouvir,
nas incertezas do novo percutir,
enquanto o filme ainda assisto sem paixões.
De Kipling sempre aceitei o seu conselho
de igualmente tratar dois impostores,
sem buscar um e sem a outra lamentar
e assim me limitei a um escaravelho,
minha bolinha a rolar, sem estertores,
para outros ovos de ilusão alimentar...
SOBRANCERIA II
Nessas nuances de meu caleidoscópio,
cacos de cor em agudos fragmentos,
só faço sacudir os pensamentos
em novas ilusões de febre e ópio;
de minha caverna estendo periscópio,
as estrelas submetendo a julgamentos,
mas elas giram no céu, em seus tormentos
e nunca soube fabricar um telescópio!
Correm os meses em idos e calendas,
determinados pela luz em progressão,
indiferentes a desejos ou prebendas
e me encontrei tanta coisa a desejar,
sem verdadeira e total aspiração,
que a própria vida acabei por descartar.
SOBRANCERIA III
E deste modo, no lançar das sortes,
eu te aconselho a um só número escolher,
ao invés de meu constante recolher
de novas cartas e dados de outros portes.
Sem dúvida o estoicismo cabe aos fortes,
mas tudo equilibrado em meu saber,
só posso em desfavor reconhecer
que dei aos sonhos indiferentes mortes.
Foram demais, sem ganharem incentivo
e tudo fiz, mas sem nada completar,
criando teias para a mim mesmo encasular.
E se me escutas, dar-te-ei conselho ativo:
escolhe uma só linha para a vida,
antes que escolhas te levem de vencida...