A MAQUINADORA & MAIS
FACETAS XII – A MAQUINADORA I – 13 JUL 2006
Cruel como a mulher sagaz que, por seus filhos,
é capaz de arquitetar qualquer maldade:
no escuro de seus olhos, somente surgem brilhos
quando lhes propicia, desde a mais tenra idade
um prêmio, uma alegria; e se dedica tanto
a que tenham sucesso, por que sejam felizes;
é a mãe que se derrama no mais copioso pranto,
é a cúmplice secreta de faltas e deslizes...
Mas quando são os outros, crianças ou mulheres,
velhos e moços, homens, simples animais,
pouco lhe importa a vida; é toda indiferença;
dispõe-se a pisotear as flores que lhe deres
e a tudo destruir, sem esquecer jamais
desse amor acendrado além da luz e a crença.
A MAQUINADORA II – 24 JUN 13
Sem dúvida, esse agir é até bem natural;
as fêmeas são ferozes na defesa dos filhotes,
se te interpões entre eles, é possível darem botes,
por mais manso que seja o doméstico animal.
Desta forma, não é de fato conflitual,
em nossa espécie, sujeita aos estranhos dotes
das crias mais inermes em seus humanos lotes,
que busque a mãe também defesa espiritual.
Somos nidícolas, mais que mamífero qualquer,
que alguns já nascem preparados a correr;
nossos bebês são de colo muitos meses
ou mesmo anos. Admira que a mulher
tenha esse instinto assim de os proteger,
bem maior que o das aves ou o das rezes?
MAQUINADORA III
Não obstante, muito a treina a sociedade
e alguns princípios lhe inculca a religião:
toda criança igual merece proteção,
que a distribua altruísta e com bondade...
Para quem não tem filhos, na verdade,
é bem mais fácil esse ideal da tradição;
há boas babás, enfermeiras em profusão,
amas de leite de ideal generosidade,
que repartem o alimento de seus filhos.
Muitas pegam pobres órfãos a criar,
e até buscam os enjeitados pelas ruas.
A sociedade favorece a esses trilhos
e em geral, até respeita a quem pegar
essas crianças encontradas nuas...
MAQUINADORA IV
Mas nem todas são assim. Muitas, de fato,
só querem proteger a prole tida:
tomam partido se a julgam perseguida,
negam suas culpas, como irreal boato.
E há quem louve essas mães que, sem recato,
protegem até assassinos toda a vida;
foi de fato sua atitude descabida
que essas crianças conduziu ao desacato.
É compreensível que deles só se lembrem
como os nenês de seus ventres gerados,
por mais que sejam hoje celerados;
mas não que a outros matem e desmembrem,
em sua defesa de assaltantes e drogados,
por educarem mal esses que engendrem.
A MAQUINADORA V
E nas suas maquinações se acha justa
e até altruísta, pois não busca para si,
mas para o filho, que foi seu guri,
os bens, sem se importar quanto lhe custa.
O mal que aos outros causa não a assusta,
desde que o bem ao próprio filho, ali,
ela consiga conferir... Pois muitas vi
buscar por eles a láurea mais augusta,
pouco importando o melhor mérito do estranho,
ou sua capacidade maior de governar:
é nesse adulto que a mãe se realiza...
Não há altruísmo, mas egoísmo e bem tamanho,
será uma parte de si a dominar,
já que palmilha o solo em que ele pisa...
MAQUINADORA VI
Portanto, não a creias, se diz tudo fazer
em benefício tão só do filho amado.
Que ingrato seja e até a expulse de seu lado,
no que alcançar está o seu prazer,
pois a vitória é dela em tal vencer
e nesse orgulho, é o mundo apisoado.
Quantas mulheres têm guerras provocado,
sob o pretexto de a seu povo bem trazer!
Contudo, sua presença é essencial,
da humanidade real característica...
Que sejam, pois, aceitas como são,
pois é inútil puni-las, afinal,
ou tentar convencê-las por casuística,
que em seu caráter nunca mudarão...
BERTRAND I – 25 JUN 13
Tomei o nome de Bertrand para meu tema,
não saberei dizer sequer porquê;
anotei-o na minha lista, bem se vê,
por cabeçalho de qualquer simples verbena.
Não existe santidade neste lema,
a não ser para aquele que ainda crê,
que é um turíbulo a poesia que se lê,
consagração ao se elevar qualquer poema.
Por que Bertrand? De há muito me escapou,
meses atrás é que ingressou na agenda
e ali ficou, na mansa espera de sua vez;
qualquer razão, porém, se dissipou...
Talvez quisesse descrever a sua legenda,
na alternativa das tristezas que me dês...
BERTRAND II
O mais famoso foi Bertrand du Guesclin,
O general que combateu pela Bretanha,
quando era reino independente, nessa estranha
guerra dinástica, de luta mesmo insã.
Por duas vezes demonstrou-se vã
a sua bravura perante alheia manha.
Grande resgate foi pago por tamanha,
inestimável figura em barbacã.
Ni quito ni pongo rey, pero ayudo a mi señor,
teria afirmado, ao permitir a morte
de Pedro Segundo por Henrique Trastamara.
Desde então, esse lema de valor
muitos repetem, para explicar a sorte
de quem um simples servo se declara.
BERTRAND III
Sem dúvida, derrotou a Inglaterra,
favorecendo assim ao rei de França;
mais de uma vez trocou a sua aliança
e é tido por traidor na bretã terra,
cuja independência desvaliu em guerra.
Porém sua fama quase igual alcança
a de Jeanne d’Arc, aquela porta-lança,
cujo louvor a França ainda encerra,
embora Gilles de Rais, seu comandante,
fosse de fato das batalhas o vencedor.
Já Bertrand de Guesclin foi condestável,
porém morreu no combate delirante,
que os cátaros massacrou, em puro horror
e para mim, nada tem de venerável.
BERTRAND IV
Por que, então, fui escolher tal nome
como título de novel composição?
Não me indague, nem eu sei qual a razão
por que a tais títulos minha escolha assome.
Estava ali e o empreguei, sem mais renome.
Quem terá sido? Talvez algum Beltrão?
Um português, tal e qual Sancho Brandão,
cuja memória já entre nós se some,
Embora tenha em nossas praias aportado,
duzentos anos antes de Cabral...?
Como a história se redige diferente!
Por mais que aquilo que nos foi determinado,
por conveniência, sem curar de bem ou mal,
sem que se saibam os motivos, realmente?
PRISÃO DOS DENTES I -- 26 JUN 13
Caso algum dia aceitasse ortodontia,
entre grades meus dentes ficariam;
presos com brackets ou braces estariam
por longos meses de metálica folia.
Seriam, aos poucos, levados aonde queria
o ortodontista e mais estéticos seriam;
caso erro houvesse, quiçá se afrouxariam,
perdendo aos poucos toda a velha serventia.
Porém que mal fizeram os meus dentes?
Qual foi seu crime para a pena de prisão?
Por que seriam entre grades prisioneiros?
Seriam da injustiça dependentes,
inocentes no patíbulo, sem razão,
sendo meus próprios lábios carcereiros!
PRISÃO DOS DENTES II
Prisão de ventre é muito mais comum
do que prisão de dentes, certamente;
uma se nega ao derredor circunjacente,
a outra se esconde, disfarçando algum.
De tais fenômenos, melhor não ter nenhum:
que se alivie o ventre, normalmente,
que meus dentes encarem bem de frente
o mundo, sem o receio do incomum.
Não me quero submeter a ditaduras,
desejo dar a meus dentes liberdade,
sem submetê-los a qualquer escravidão.
Pois têm direitos civis as dentaduras,
direitos humanos a defecalidade,
ergo um protesto para sua libertação!
PRISÃO DOS DENTES III
Uma me impede de alimentos expelir,
a outra impede aos alimentos ingressar;
é interrompido o seu correto trabalhar:
possam uma e outra a sua obra produzir!
Não posso dar a uma o permitir
e pela outra o alimento condenar;
um contrassenso das leis a provocar,
um desafio constitucional a introduzir!
Que sejam livres os dentes de aparelhos!
Que seja livre o ventre da prisão!
Que assim prospere mais feliz a natureza!
Não se retenham os excretos muitos velhos
e não se impeça nossa alimentação
nesse ideal falso apresentado por beleza!
DESTOADA I – 27 JUN 13
Essa frase que revelo no meu verso,
mal ajambrada, rasgada, em desalinho,
com muito menos rosas do que espinho,
rachado espelho em reflexo disperso
fada sem luz, incrédulo converso,
chispa apagada em multidão, sozinho,
corre meu verso inóspito caminho,
pisando a bênção, benévolo e perverso,
frase às escâncaras, mas sem revelação,
qual profecia de sacerdote antigo,
no sibilar da pítia incompreensível,
sentença aberta a qualquer interpretação,
sem culpa cúmplice amargo em seu castigo
numa cascata de espanto inexaurível.
DESTOADA II
Essa frase que não traz significado,
senão aquele que lhe queiras atribuir,
pecado puro para te iludir,
sermão de padre das igrejas expulsado,
tolo discurso de político derrotado,
de seus votos explicando o desnutrir,
verso vazado em seu mudo insistir,
quadro pintado por cego apalermado,
toada seca de falecido menestrel,
estátua que se esculpe sem ter mãos,
imenso prédio erguido sobre a areia,
luz apagada, fugitiva, sem quartel,
um náufrago a bracejar em gestos vãos,
facho molhado em que a alma se incendeia.
DESTOADA III
Pastagem seca de verde luxurioso,
vaca sem leite a alimentar quimeras,
tesouro gasto desde priscas eras,
cristal de lata em pranto lastimoso,
trovão silente em ribombo portentoso,
anaconda sem anéis, rútilas feras,
impotente vastidão que em negro geras,
pálida flor sem néctar formoso,
lança viúva de haste desolada,
pergaminho revestido de intempérie,
chocolate sem páscoa e sem criança,
navio sem fundo de macabra armada,
um trio elétrico produzido em série,
cadência podre da destemperança.
DESTOADA IV
Dedo sem unha a te rasgar o rosto,
cantor sem língua a mastigar desejos,
mulher sem boca a te lançar os beijos,
vinha sem hastes e derramar seu mosto,
na canícula mais ardente do sol posto,
fugindo à frente empós novos ensejos,
notas sem pauta, canção de percevejos,
cerveja insossa em refeição sem gosto,
não mais que um esqueleto que completas
com teu próprio parecer e sentimentos,
missa rezada para teus falecimentos,
branca mensagem em que te intersectas,
nada de mim plantado nestas jeiras,
somente um naco de tua alma, caso queiras.
ONE-NIGHT STAND I – 28 JUN 13
A maior parte dos homens nem percebe
Quão pura é a dádiva de um amor casual,
Quando se goza, em instante divinal
Do sacerdócio antigo em que se entregue
A Astarteia que nosso sangue bebe,
Nesse momento místico e fatal,
Sem a exigência de nenhum material
Sacrifício que a vida inteira legue.
Porque, ao invés, o que busca a maioria
É ter em troca do corpo a segurança,
Que haja o ninho em troca do prazer;
E nesse simples câmbio de energia,
Mesmo inconsciente, ela nos dá a pujança
Dessa bênção exclusiva da mulher.
ONE-NIGHT STAND II
Há mais pureza em tal mulher lasciva,
Que tudo dá, sem mais nada requerer,
Que naquela que põe preço no prazer,
Com intenção permanente e bem esquiva.
O companheiro assim ela cativa,
Em promessa falsa de total satisfazer,
Porém, segura de seu pertencer,
Para o amor se mostrar subversiva.
Enquanto aquela que deu e só pediu
Que lhe dessem um orgasmo simultâneo,
Foi mais honesta em revelar a sua intenção.
E quanto homem nessa rede já caiu
De um matrimônio, apenas sucedâneo
Desse amor que julgava ser paixão?
ONE-NIGHT STAND III
Mas que fazer, permeio à nostalgia
Dos feromônios que as narinas nos assaltam?
O que fazer, quando ocasiões não faltam
Para a partilha e troca de energia?
É de espantar que se prenda a maioria
Da sociedade monogâmica à tal potência,
Pela esperança de uma descendência,
Mais que um breve calor na noite fria?
Enquanto a doce amante ocasional
É recordada tão só como aventura,
Sem se avaliar o dote que nos deu,
Nessa volúpia inesperada e virginal
De uma noite perpétua que não dura
E se duvida até que aconteceu!...
FOGO NAS MÃOS I – 29 JUN 13
SEGUNDO A LENDA, FOI O VELHO PROMETEU
QUE DEU O FOGO AOS HOMENS, GENEROSO.
COMO CASTIGO, O CREBRO ZEUS, FURIOSO
A UM PENHASCO COM CORRENTES O PRENDEU
ONDE UM ABUTRE DIARIAMENTE O ACOMETEU
POR DEVORAR-LHE O FÍGADO, IMPIEDOSO.
DURANTE A NOITE, NO VIÉS MAIS ENGANOSO,
CRESCE-LHE O ÓRGÃO QUE TAL PÁSSARO COMEU!
E SEGUE ASSIM, NO DECORRER DAS ERAS:
DE PROMETEU O SUPLÍCIO NUNCA CESSA.
VALIA O DOM DO FOGO UM TAL CASTIGO?
CLARO ESTÁ QUE HOUVE OUTRAS QUIMERAS:
A AGRICULTURA E A FORJA E MAL SE MEÇA
O BENEFÍCIO QUE O TITÃ TROUXE CONSIGO.
FOGO NAS MÃOS II
TEMEU ZEUS QUE OS HOMENS PROSPERASSEM
E DE SEU TRONO O PUDESSEM DESBANCAR;
POR ISSO DEU A PROMETEU O SEU PENAR,
NÃO PELOS FOGOS QUE AS ALMAS INCENDIASSEM.
POR MAIS QUE AS CIÊNCIAS SE ESPALHASSEM,
NUNCA OS HOMENS PUDERAM ALCANÇAR
O ESPLENDOR MANIFESTADO EM TAL LUGAR
PELOS OLÍMPICOS, QUE NO ALTO ALI MORASSEM.
MAS OUTRA LENDA NOS DIZ QUE SE ORGULHARAM
E REALMENTE INTENTARAM CONQUISTAR
O MONTE OLIMPO, A CELESTIAL MORADA;
POR ISSO OS DEUSES EM DOIS OS RETALHARAM,
PARA EM METADES IMPERFEITAS TRANSFORMAR
E SUA OUSADIA SE QUEDOU INCAPACITADA.
FOGO NAS MÃOS III
TINHA O TITÃ UM IRMÃO, EPIMETEU
E FOI A ELE QUE OS DEUSES SUGERIRAM,
POR MEIO DELE A PANDORA SEDUZIRAM
A ABRIR O COFRE CUJA GUARDA SE LHE DEU.
E QUANDO ESSA LOUCURA ACONTECEU,
TODOS OS MALES AO MUNDO CONDUZIRAM;
ESPALHADOS ENTRE OS HOMENS, OS FERIRAM
E DORAVANTE SEU ORGULHO FENECEU.
MESMO CORTADOS AO MEIO, OS ORGULHOSOS
ALGUMAS VEZES AOS DEUSES DESAFIAVAM,
MAS SÃO AGORA COVARDES E DOENTES,
MORRENDO CEDO OS QUE FORAM PORTENTOSOS
E A EPIMETEU, PORÉM, NÃO CASTIGARAM:
POR ELE OS HOMENS TORNARAM-SE OBEDIENTES!
FOGO NAS MÃOS IV
EU NUNCA FUI TITÃ, SOMENTE HUMANO
E NÃO LARGUEI NO MUNDO SEUS PECADOS,
SÓ A ESPERANÇA, EM INSTANTES DESCUIDADOS,
ROUBEI DA CAIXA DE PANDORA, INSANO.
NÃO ROUBEI FOGO A DEUS GREGO OU ROMANO,
TAMPOUCO O TROUXE PARA MEUS AFILHADOS,
NÃO LHES DEI DA CIÊNCIA OS BATIZADOS,
NENHUM ABUTRE ME TRAZ CRUEL AFANO.
NÃO QUE ME QUEIXE, MAS RELÂMPAGOS NÃO VI,
SALVO RISCANDO O CÉU E BEM DE LONGE,
EMBORA OS VEJA CAINDO EM PARARRAIOS,
ASSIM O EFEITO DESSES FOGOS NÃO SOFRI;
FOI OUTRO FOGO QUE ME AFETOU, QUAL MONGE
DE DIONISO, EM MIL POEMAS GAIOS.
FOGO NAS MÃOS V
EU BEM QUERIA, COMO OS MAGOS DAS LEGENDAS,
ERGUER FOGO NAS MÃOS, EM MINHA VIRTUDE.
FOGO GERADO ENTRE OS DEDOS CÁ SE ALUDE,
SEM QUEIMAR PELE E NEM CAUSAR-LHE FENDAS.
NÃO O FOGO DE ANHANGUERA EM FALSAS SENDAS,
COM AGUARDENTE A ESPANTAR O POVO RUDE,
NEM O FOGO DE UM ARCHOTE, QUE ASSIM MUDE
A TREVA EM LUZ E AS GRETAS EM COMENDAS.
QUERIA O FOGO QUE ME BROTASSE VIVO
E QUE PUDESSE EMPREGAR COMO LUSTRAL,
LAVAR O ROSTO E COM ELE ME BANHAR;
UM FOGO NOS MEUS BOLSOS, SEM NOCIVO
EFEITO E NAS MINHAS ROUPAS E BORNAL
GUARDAR TAL CHAMA PARA ME DESSEDENTAR.
FOGO NAS MÃOS VI
ASSIM ME APROXIMEI DO ALTAR DE APOLO,
O MESMO HÉLIOS, TAMBÉM CHAMADO FEBO.
DAS NOVE MUSAS A INSPIRAÇÃO EU BEBO,
FILHAS DO DEUS QUE NUNCA PISA O SOLO
E SUPLIQUEI ME TOMASSE NO SEU COLO
E TRANSFORMASSE EM CÍRIOS CARNE E SEBO,
NÃO DERRETIDO ENQUANTO A LUZ CONCEBO,
BRILHANTE A FLAMA E SEM ME CAUSAR DOLO.
SORRIU-ME O DEUS E TRANSFORMOU-ME EM VELA:
O FOGO BROTA DEZ VEZES DE MEUS DEDOS,
CADA UM DELES A PINGOTEAR MISTÉRIO.
E SOBRE O CASTIÇAL MINHA VIDA SELA,
APENAS NAS FAGULHAS DOS SEGREDOS,
EM CADA VERSO PROCLAMANDO UM MINISTÉRIO.
CANÇÕES CAÍDAS I (30 JUN 13)
Que meus versos lhe pertencem, lhe direi,
porque caíram no rego de seus seios,
porque tombaram na fenda dos anseios,
palavras mudas de que não me esquecerei;
que meus versos lhe pertencem, contarei,
por mais que brotem de insinceros veios,
por mais que sirvam a meus furtivos meios,
não mais que sombras pelas quais a conquistei.
Tantas existem que equivalem a poesia
a versos lânguidos de amor apaixonado,
como espalhados em uma orgia exclusiva,
postos no fogo em que queima a fantasia;
mesmo que dela nem me ache enamorado,
brotam-lhe os versos feito chispa esquiva.
CANÇÕES CAÍDAS II
Essas canções que caem de minha boca
e se penduram nos lábios de minha amada,
são outros beijos em cerração dourada,
cai a palavra suicida e louca...
Lançadeira de canções, pérfida e rouca,
gera minha úvula sua morte compassada,
as amígdalas lhes fazem corte desolada,
foguetes chochos que meu palato espoca.
Caem os versos em vastos sopetões,
sobre suas faces e escorrem nas madeixas,
como grudenta e fera salmodia,
sobre cascatas de dentes em botões,
na cantilena dos milhões de queixas,
de quem não ama e tanto amar queria...
CANÇÕES CAÍDAS III
Caem canções como ondas de marés,
às vezes mansas, como a veleidade,
às vezes doidas como a lubricidade,
mil versos a fluir de mortas fés.
Caem meus versos como tapete aos pés,
tal qual em procissão de castidade,
um Corpus Christi espezinhado na cidade
pelos fiéis, em demanda de suas sés...
Caem meus versos à luz de sua saliva,
no desamparo sutil da calma pura,
consternada pela métrica contida,
enquanto aos olhos nova cegueira criva,
nova descrença que nalma me perdura
de que palavras algum dia ganhem vida.
CANÇÕES CAÍDAS IV
Caem canções perante a alma da ausente,
que nem sequer uma só delas escuta,
mas fazer versos faz-me parte da conduta,
por tantos versos ter lançado ao amor presente.
Lanço meus versos, em queda indiferente,
às carnações maduras como fruta,
que não chegou a ser colhida e então se enluta,
caindo as pés da musa complacente.
Eu lanço minhas canções qual se aparasse
com canivete a ponta de meus dedos:
o sangue escorre nas farpas das canções,
sem esperar sequer que me escutasse,
tecendo nova tapeçaria de segredos,
quais trovadores a mastigar paixões.
CECEIOS I – 1º JUL 13
O vento sopra onde quer, em cada fresta,
pelo menor orifício, em cada fenda,
demarca a estrada, varre toda senda,
no inverno e no verão se manifesta;
é como a água, em cada greta encesta
e em meus ouvidos canta nova lenda,
sopra à distância dos amores a legenda,
açoita equânime o lavrador e a besta;
a chuva espanta e espalha gotas de ar,
nos atravessa sem a menor tristeza,
na maior fúria, enquanto não se acalma...
Tal como o vento, vens-me dominar,
quando o desejo esvai paz e leveza,
ciciando em cada fresta de minhalma...
CECEIOS II
Não que no vento eu trema ou me arreceie,
nem que a tristeza seja fruto do assobio,
pois ele queima em mim lento pavio:
ferve a tristeza nessa luz que me incendeie;
já mora em mim a tristeza a que me alheie,
a maior parte do tempo, em brando fio,
merencório é o esquecimento no meu cio,
na criação da obra em que me enleie;
o vento sopra onde quer, em cada poro
e me penetra através dos capilares,
de seus uivos surgem cantos similares.
É minha própria virgindade que defloro,
em cada rasgo do vento em que me amplio
e nos meus próprios ouvidos eu cicio.
CECEIOS III
A bem verdade, o ceceio é um defeito,
na prosódia é incorreto e é dislalia,
mas no ceceio da alma é desvalia,
se expande e canta num novel trejeito;
e se o ciciar do vento hoje eu aceito,
enquanto o vento a meu redor cicia,
deve o vento suportar a minha folia,
quando ceceio do fundo de meu peito;
quero que o vento leve o meu sussurro
e que o sopre pelas fendas que quiser,
quero que torne inquebrantável o meu fio.
Que me abra as portas, sem violento murro,
que meus defeitos apresente a essa mulher
que mesmo assim acolha o meu cicio.
CECEIOS IV
Abro a janela, para que me entre o vento,
com ceceios e cicios de procela;
com pipilos e chilreios minha janela
silve e assobie tal qual o meu tormento;
que me carregue o vento, num portento,
até os ouvidos de qualquer donzela,
que se disponha a escutar minha charamela
e a vela acenda então nesse momento;
e que se deixe por meus versos fecundar,
quando na carne não receber semente,
que tenha um filho gerado pelo vento.
Mas que seja sua semente o meu ciciar,
para uma nova vida permanente,
em que se possa perpetuar o meu alento.
AMOR DE GESSO I (2 JUL 13)
Não sei como escrever verso dourado
se me acho presa de aborrecimento;
não me funciona a máquina a contento,
expira mal o peito atribulado...
O quando vejo, pela instância do passado
é que as coisas se rebolcam num momento,
porém mais longo é o rebolcar do sentimento,
mesmo quando o coração se acha cansado...
É tudo apenas uma questão de espera,
como esses dizem, “que tudo é provisório”:
o problema é o decurso do processo...
A gente perde tempo, ainda que queira
conservá-lo entre os dedos, transitório
como um amor configurado em gesso...
AMOR DE GESSO II
Amor de gesso, qual o de Pigmalião,
porém bem inferior à Galateia,
feita de mármore, nos versos da epopeia,
pois meu amor é bem mais tênue de intenção.
Não espero que estes versos de minha mão
criem a vida, igual que a antiga melopeia
e assim atinjam, imensa, uma plateia:
redige o punho bem menor expectação...
E se minha estátua é de papel e nem de gesso,
sem ao menos ser argila ou terracota,
percebo bem como este canto é limitado...
Que venha vida ao poema, então não peço,
pois caso assopre a minha canção ignota
desfaz-se o molde, igual que gesso ressecado.
AMOR DE GESSO III
Terei então de restringir tais versos
à forma escrita apenas, sem falar,
sem um único alento murmurar,
caso contrário, se farão dispersos...
De Pigmalião às quimeras são inversos,
não pretendo Galateia ao mundo dar,
senão estátua que se possa contemplar,
pois dar-lhe vida será apenas dom perverso.
Quero meus versos mudos, espalhados
nas infinitas vastidões da rede:
que sejam lidos já nem sequer eu peço.
Mas lá estão, em magotes apressados,
a quem o mundo fama ou luz não cede,
por serem beijos de um amor de gesso.
CASTELOS DE ÁGUA I (3 JUL 13)
Muitos constroem castelos sobre a areia,
alguns grosseiros, outros mais cuidados,
ou esculturas e pavilhões elaborados,
deusas antigas, qualquer barco, uma sereia...
Já muita vez o meu olhar se enleia
nesses arranjos ao olvido consagrados,
salvo, talvez, quando fotografados:
logo a maré os acarinha e os devaneia.
Na verdade, são mais água do que terra;
assim que secam, desmancham-se sozinhas,
sem precisar sequer brisas marinhas...
Só permanece a figura que água encerra,
mesmo com certas proporções mesquinhas,
que água demais em barro se desterra...
CASTELOS DE ÁGUA II
Outros nas nuvens fazem seus castelos
e dos poetas muitos fazem troça,
conferindo a seus trabalhos pouca mossa,
por mais que sejam devaneios belos...
Mas seus castelos, só poderão contê-los
essas nuvens de água já mais grossa;
não nuvens brandas que a emoção remoça,
não nuvens brancas em virginais desvelos...
Na verdade, são mais água do que nuvens
essas imensas colunatas de alabastro
que o próprio vento esculpe e faz nadar,
quais caravelas envoltas em salsugens,
a que a seguir o vento quebra o mastro,
para depois, descuidado, as desmanchar...
CASTELOS DE ÁGUA III
Já é bem mais raro ver castelos de água,
embora sejam os filhos das marés;
as vagas se acumulam, mil sopés
e a pouco e pouco se alimenta a frágua.
Quando desmancham, dos surfistas mágoa,
os castelos se desfazem sob os pés
e nas areias dispersam aguapés,
alguns peixinhos, conchas, a mãe d’água...
Na verdade, menos que água, são espuma
e mais se nutrem da tua imaginação,
agitada pelo cetro de Anfitrite...
Que se entusiasma para que logo suma,
na arquitetura de vasta proporção,
que só perdura enquanto o olhar a agite...
CASTELOS DE ÁGUA IV
Já meus castelos... os construí de vento,
toda a argamassa marchetada de meu pranto,
pedra por pedra erguida por meu canto,
lástima e pena foram meu cimento.
As barbacãs levantei com meu lamento,
a levadiça com tábuas de amor santo
e cada torre revesti num manto
de sangue puro, coagulado lento.
Mas são de água também as construções,
pois não é água o sangue que me aquece?
E não é de água a lágrima que desce
no esbatimento de minhas emoções?
Saliva pura essa água de minha prece,
líquidos sonhos em vastos batalhões...