SONHO DE CRESCER & MAIS
SONHO DE CRESCER I – 10 FEV 13
O piazito olha e inveja a peonada,
envolvida em sua lida e redomando,
marcando no curral, caçando, campereando,
mordendo os lábios, não o deixam fazer nada!
Como ele quer crescer, igual que essa moçada
de braços vigorosos, cada bagual laçando,
escolhendo uma ovelha para seguir carneando,
sem temor da fervura que sobe da mateada...
Quando eu for grande, faço ainda melhor!
Não vou me contentar em laçar o boi reúno,
vou buscar o aquerenciado além do atoleiro!
Não vou comer butiá depois que for maior,
só carne de terneiro e sangue em suprassumo,
jogando só os ossos para os cuscos do terreiro!
SONHO DE CRESCER II
Também cada folhinha deseja espairecer,
como talos bem grossos para beber a luz,
esticar as raízes em roda ou numa cruz,
tornar-se grande e viva, constante em seu crescer.
Cada tiquinho dessa relva em ânsia de ser
um umbu imponente, forte ninho para anus,
ou palmeira gigante, de longos troncos nus
ou, ao menos, pitangueira, de lustroso parecer.
Ou quer ser madressilva, quem sabe um manacá,
talvez um eucalipto de folhas perfumadas,
quiçá uma casuarina a cochichar ao vento?
Se não houver outro jeito, quer ser caraguatá,
senão um butiazeiro de polpas alaranjadas,
que empresta ao piazito a força do alimento...
SONHO DE CRESCER III
O que esse garotinho, em sonho, não percebe
é como a dura lida nos aleija e envelhece,
que o vigor do gaúcho aos poucos se fenece,
queimado pelo mate que diariamente bebe,
torrado pelo sol, que ao vento se amortece...
Mas cheio de paixão, o menino não concebe
que o vento suga a carne e o sol nela se embebe,
queimando a juventude que a velhice esquece...
E a folhinha que espia lá do fundo do capim,
ansiando por crescer e se fazer gigante,
só aumenta até o ponto de atenção chamar,
pois vem o gado, chega um crioulo assim,
contempla aquele verde saboroso e instigante
e o arranca da raiz para se alimentar.
SONHO DE CRESCER IV
Será que o vento também nos come desse jeito
e queima o sol a pele, em busca de frescor?
Pois ambos se alimentam do homem de vigor,
enquanto ele ara o campo, na faina do seu eito...
Será que eles esperam, até estar perfeito
o momento de desfrutar, em máximo valor,
ou apenas nos sugam, no frio e no calor,
seguros de que o peão a eles está sujeito?
Igual que a rez escolhe a sua plantinha,
mastiga aqui e ali, depois vai mais adiante,
tal qual ovelha consome, rasteirinha,
a erva do gramado, sem precisar capina,
assim a vida humana é curta e delirante,
porque é pasto do sol e ao vento se destina...
BULCÕES I (11 fev 13)
Qual mais escura, a noite enovelada
ou aquela que não traz nuvens no céu?
Quando as estrelas brilham no seu véu
ou nada pisca, porque está nublada?
Qual é mais clara, a noite enluarada
ou a que mostra mil estrelas no apogeu?
Quando o Sol se coreografa em corifeu
e abre às Cefeidas sua longínqua estrada?
Qual essa noite, a que não tem cometa,
nem Perseidas a cair, tresloucamente,
em suicídio pela culpa mais secreta,
ou aquela, de tempestade mais ingente,
em que seu manto quase nada excreta,
senão da Terra a luz opalescente?
BULCÕES II
Porque, de fato, quando se derrame
essa capa de luz sobre a cidade,
seja em nevoeiro de plena opacidade,
seja em premência que a chuva nos proclame,
sobe das ruas e das praças, como enxame
de opalino esplendor, tal claridade,
menor que fluorescente, amarela, na verdade,
que se refletem, em mil gotículas de arame,
as mil velinhas dos espíritos perdidos,
que não puderam subir até a amplidão,
mas a cidade em que moravam ainda rodeiam,
seus olhos já sem carne, desnutridos,
que não podem competir com a floração
das mil estrelas, quando os céus nos incendeiam.
BULCÕES III
De fato, essas luzes das estrelas
não são mais que buracos de alfinete,
tracejados na noite, por que assete
a luz da abóbada celeste como velas.
Esse fulgor do Sol em caravelas,
dos remadores da noite que se inquiete,
escondido de nós, sem que se afete,
espia em furos prateados de baixelas.
Foi perfurado por fieis almas de crentes,
ao Paraíso abrindo os seus caminhos,
porém as mais pesadas não puderam...
E por esses orifícios surpreendentes
nos contemplam mil anjos pequeninhos,
a lamentar esses mil que se perderam.
BULCÕES IV
Ali espreitam sorridentes serafins,
batendo as asas, o olhar a refulgir,
rindo de nós em seu tremeluzir,
que pensamos nos ocultar dos querubins,
pois nossos atos e os segredos mais afins
são avistados por tais entes, a sorrir,
num espetáculo de estranho seduzir,
milhões de atores em enredos de pasquins...
E somente quando as nuvens se enovelam
e sobre nós se abrem, em dossel,
se obscurece esse vasto carretel,
nossas ações mais vis não mais revelam,
mas por instantes nos dão plena liberdade,
no refletir das mil luzes da cidade...
BRUMAS I (12 fev 13)
Durante as noites de outono, aos poucos cai a geada
e vai deixando brancos os campos e galpões;
as manadas se encolhem, nas vastas solidões,
branca a querência, o pago e a invernada...
Se ergue o gaúcho, ainda em plena madrugada,
do calor dos pelegos e o reponte de ilusões;
enfia a cabeça no poncho e dá dois safanões,
ajusta sua lã crua e já sai para a mateada.
Enquanto a água ferve, espia a sua manada,
aparta alguma vaca, com o ubre bem inchado,
tira o leite num balde, as ovelhas arrebanha,
mastiga o charque duro e logo está na estrada
e o Sol vai se estendendo, com cautela, sobre o prado,
seu brilho no sereno a enfeitar teia de aranha...
BRUMAS II
E o pago inteiro, então, é um halo luminoso,
cada gota de nevoeiro o mais pequeno sol,
mil pingos de ilusão rebrilham qual farol
e nos olhos do pingo ainda há luar formoso...
Não teria aparecido, mas o minuano, temeroso,
essa noite só assobiou, recolhendo seu anzol;
pois as nuvens põe de lado e o sereno do arrebol
carrega junto a si em sopro portentoso,
apagando cada vela que acenderam ao Negrinho,
que toda a cavalhada achasse seu caminho;
e nesse canto triste, escorre a pradaria,
vendo clarear aos poucos, enquanto o chão nutria
e chora numa sanga por entre duas coxilhas,
soprando do Uruguai na vastidão das trilhas.
BRUMAS III
Porém quando o minuano não sopra e o vento norte
foi cortado ao perpassar o céu das serranias
e até o vento charrua perdeu-se em maresias,
é então que desce o orvalho, na cerração mais forte
e empresta a cada grota de fortaleza o porte,
pintalgando de luz o chão das pradarias,
cada haste de pasto endurecida, em frias
adagas de brancura a retalhar-te a sorte
e o corte de tuas solas, se vais pisar descalço,
enquanto as ovelhinhas se encolhem em novelo
e a brisa da manhã as carda em poncho belo,
do branco desses fios tecendo abrigo falso,
que se derrete, quando o Sol se abaixa e apanha
esses cristais de luz em qualquer teia de aranha.
madrugada I (13 fev 13)
passei a noite procurando a noite
e não a achei. achei um dia estendido,
um dia aziago, longo dia comprido,
que me tomou a noite em seu afoite.
o dia veio e me pediu pernoite;
não pude recusar, fui impedido
e a claridade ocupou-me, desvalido,
horas a fio de brilho, em forte açoite.
prefiro mesmo é à noite trabalhar,
ainda mais no verão, era sombria,
em que a luz quente me abre a sepultura.
mas essa noite foi como se meu lar
fosse invadido pelo dia, foi vazia
e a noite clara e muda fez-se escura.
madrugada II
porque a noite na cidade é diferente:
algumas vezes tem mais luz que o sol,
luzes alógenas, em clarão de escol,
pelas janelas se enfiam, em frequente
expulsar da escuridão subjacente,
seus raios escorrendo em caracol,
listras de luz no sótão e no paiol,
faixas cortando até a carne da gente
e mesmo após cerrada a veneziana,
ainda marolas de luz interpenetram,
deitam comigo no meu travesseiro,
a noite foge e o sono não reclama,
rédeas de luz se mesclam e completam
e os pensamentos maratonam bem ligeiro.
madrugada III
mesmo no sonho surge a claridade:
é bem difícil sonhar com a escuridão!
mesmo na noite mais escura ali estão
as miragens do dia em saciedade.
assim, se busco a noite, em ansiedade,
olhos fechados em plena cerração,
preciso escapar a qualquer sonho vão,
que não me vá solapar a escuridade.
e muita vez, então, eu passo em claro,
especialmente nas noites de verão,
pois são, de fato, curtas por demais.
e após o almoço, tenho costume caro,
o de sestear sem maior perturbação,
o dia em noite de sonhos fantasmais.
ALARIDO I (14 FEV 13)
Até o ponto em que possuo sabedoria,
ela se mostra falha com frequência;
ontem temi a chuva e a ventania
e saí com guarda-chuva, por prudência.
Hoje que achei que a chuva não viria
deixei em casa a proteção e a urgência
do vento e chuva, plenos de acerbia,
manifestaram o grau de minha impotência.
Mas acalmou-se o vento, esse invisível
companheiro aguardado até com ânsia,
quando o mormaço oprime a terra e a esmaga,
logo chegando a chuva mais tangível,
que a terra alenta e lhe dá mais substância,
enquanto o frio do vento nos afaga.
ALARIDO II
É uma alaúza, afinal, que me acompanha,
quando a chuva se alaga de repente:
vejo os passantes, essa incauta gente,
correndo pela rua, em plena sanha!...
E na sarjeta, que a correnteza amanha,
nadam caixas e latinhas, sempre à frente,
na direção de um bueiro impenitente
que é esganado e tal lixo abocanha!...
Fica minha casa na porção mais baixa
desta cidade em que transcorro a dita;
e quando espio pela janela aberta,
toda a torrente se encachopa e encaixa,
porém a força da gravidade a incita,
e minha calçada permanece descoberta...
ALARIDO III
O céu desaba o cinza do cansaço
quando mais gotas não consegue sustentar;
reclama em vão, num vasto trovejar,
em relâmpagos de raiva o seu desfaço!...
Talvez quisera manter em seu abraço
as mil gotículas de chuva no adejar,
o ar coberto em seu gris acalentar,
mantida a chuva por mais forte laço.
Mas, de repente, chega a hora do parto
e o vento geme e a gravidez ulula:
a tempestade vem à luz em treva!
E eu espio da janela do meu quarto
essa placenta de nuvens que pulula,
sem que a cortar o seu cordão me atreva!...
CALMARIA I – 15 FEV 13
Nesta vida de intensas negociatas
A gente busca sempre outro mister
Que venha após o que já se fizer:
É necessário enfrentar as novas datas,
Em que nos chegam as contas insensatas
A nos tirar bem mais que o receber;
Algo de novo é preciso então fazer,
Por mais que sejam tarefas caricatas.
É delas que provém o nosso pão,
Cada côdea reunida com esforço;
Por mais desagradáveis, são benditas
E se agradece quando vêm em confusão,
O tempo a empregar em seu escorço,
Deixando estrofes para ser jamais escritas.
CALMARIA II
Mas às vezes, por razões desconhecidas,
Vão diminuindo as solicitações;
Quais os motivos para tais desilusões
Escondidos entre as nuvens recolhidas.
Alguma angústia ou raiva concebidas
Por tais ausências sem explicações,
Mas sem causar reais devastações,
Que sempre surgem atividades mais queridas.
É tempo de escrever com intensidade,
Enquanto o barco fica no estaleiro,
Sem que haja carga para completar o frete;
E os marujos percorrem a cidade,
Buscando brigas, diversão de marinheiro,
Ou acolherados com alguma periguete...
CALMARIA III
Mas chega a carga e para bordo voltam,
Retomando seus deveres nas caldeiras,
Nos tombadilhos, nas vigias corriqueiras;
Erguem as âncoras e para o mar se soltam,
Com saudade dos abraços em que rebolcam,
Das arruaças e das loucas bebedeiras;
Não há no barco tais coisas brejeiras
E mansamente, ou às claras, se revoltam.
Depois, já de volta às suas tarefas,
Postas de lado as curtas diversões,
Resmungam do rigor do dia a dia,
Mas depois de recolhidas as sanefas,
Em outro porto de aborrecidas ilusões,
Logo se põem a reclamar da calmaria...
CALMARIA IV
Comigo é assim: com menos traduções,
Tenho mais tempo para escrever poesia,
Porém reclamo da paz e calmaria,
Pela míngua de tais compensações...
E envolto nelas, se acumulam, aos montões
Os meus originais, poeira vazia:
Tenho saudade do tempo em que escrevia
Sobre o teclado as suas finais versões!...
Mas se acaso se escasseiam as encomendas,
Tenho saudade igual de sua aridez,
Sobre o balanço de alheios pensamentos,
Cada um dos quais exige suas prebendas,
Na oscilação entre o muito que se fez
E as exigências constritoras dos momentos...
MUDANÇAS I – 16 FEV 13
Aos poucos se transformam as cidades:
do mesmo modo que alargam as paisagens,
são as pessoas consumidas por voragens,
que o tempo mostra, em geral, raras bondades.
Quando se mudam para outras paragens,
quer passem bem ou por necessidades,
sua aparência sofre deformidades,
ficam melhores ou piores suas visagens.
Porém entre os que ficam, há mais dor,
pois divisamos suas faces com frequência
e as divergências que nelas vão surgindo.
E é por isso que nos causa mais fragor
a convivência que os efeitos de uma ausência,
porquanto os rostos, lentamente, vai sumindo...
MUDANÇAS II
Causa surpresa e, talvez, desapontamento
encontrarmos esses rostos conhecidos,
tão diferentes dos amigos já perdidos,
como se fossem passageiros do momento.
Vemos crianças, na luz desse portento,
transformadas em adultos bem nutridos,
só pelos olhos ou a voz reconhecidos,
que estranho choque o seu amadurecimento!
Vemos adultos em velhos transformados
os rostos belos ora feios e enrugados,
os rostos feios de alguns enobrecidos.
E se indagamos, como coisas naturais
sobre algum outro, as sensações são irreais
se então nos contam que são desaparecidos.
MUDANÇAS III
Porém andando pelas ruas da cidade,
damos falta dos rostos costumeiros
e então sabemos, pela boca de terceiros,
que já se foram para a eternidade,
bem mais real é sua mortalidade,
quando passamos seus constantes paradeiros
e não os vemos em seus pontos costumeiros:
sobrevivência tem um preço, na verdade.
Guardamos as lembranças, não obstante,
boas ou más, casuais ou aleatórias,
de um ano, um dia, talvez uma semana,
sua imagem na mente ainda constante,
no lento desfazer de suas memórias,
enquanto os rostos viraram porcelana.
MUDANÇAS IV
A passo e passo se mudam as lembranças,
fixadas apenas por fotografias,
gravadas na memória, em que nutrias
velhos momentos de amor ou de agravanças,
que tais retratos nos servem, em abastanças,
e nos protegem das impressões mais frias
do lento envelhecer que percebias
e das mortalhas nos permitem esquivanças.
Não há animais que mudem como nós,
a casca, as penas os protegem, como o pelo
e quando partem, se conserva a imagem,
enquanto a morte humana é mais atroz,
no desgaste veloz de um corpo belo:
melhor cremá-lo, em momento de coragem...