DEGELO & MAIS

FACETAS UM – DEGELO & MAIS

William Lagos

FACETAS UM – DEGELO I (07 jul 06)

Cruel como mulher que sabe ser amada

e o coração entrega... mas não já;

mulher que espera o fulgor de uma alvorada

de um novo dia, de um mês, até, quiçá,

pela aurora do ano que pensa avizinhado,

em que tomará posse do reino oferecido,

mas que desdenha agora; tem por assegurado

o futuro, tal qual algo que tenha merecido.

E, no intermédio, fica brincando de donzela;

não que deseje um outro; em geral, é fiel...

mas a si mesma... segura... na certeza

de que basta acenar e a mágoa se cancela

e o jovem namorado daquele doce fel

retorna agradecido, até pela tristeza...

DEGELO II (7/1/13)

Cruel como a mulher que julga ter à frente

tempo de sobra à sua disposição

e que pode escolher qualquer paixão

sem nela se prender inteiramente

e considera cada amante friamente,

sopesando em quanto pode por a mão;

se irá fazer um casamento de ambição

ou se dará em puro amor a pretendente.

Mesmo que saiba a quem ela mais queira,

mais tempo espera para se divertir,

sentir-se amada por muitos cortesãos,

em romântico bando à sua esteira,

que despreza ou favorece em seu sorrir,

com que arranha ou esfacela corações...

DEGELO III

E então descobre que quem ela mais queria

já se cansou de esperar na procissão

e deu a outra sua carinhosa mão,

partido o amor que eterno seu seria...

E então o busca, no ardor que seduzia,

pensando nele despertar nova paixão,

ou ao menos separar dois que juntos são

por sentimentos de mais morna melodia...

E se consegue, então, já satisfeita,

o põe de lado, buscando outro qualquer,

alimentados seu despeito e sua vaidade;

e a outra então nem mais sequer o aceita,

ressentida em seu orgulho de mulher

que viu traída a sua feminilidade...

DEGELO IV

E ela segue, doidivanas, sua carreira,

sem se importar com quem deixa para trás,

mais cruel que antes no amor que se desfaz,

de sua plena sedução dona certeira...

Mas, de repente... Já não é tão feiticeira,

seus pretendentes não se humilham mais,

o seu cortejo a desgastar-se no ademais,

sua vida passa e ainda está solteira...

E então percebe estar sendo descartada

por outras jovens de igual beleza,

porém mais frescas em sua juventude,

embora seja por uns poucos cortejada

para uma noite apenas de incerteza,

cuja importância nem mais sequer a ilude.

DEGELO V

Ou então, ainda em pleno desatino,

ela descobre que o amado mais querido

foi por doença ou acidente destruído,

seu coração partido em talho fino...

E se põe mesmo a lastimar contra o destino,

a maltratar a quem escolha por marido,

ou a se vingar do quanto tem sofrido

em seu cortejo, com ânimo assassino...

Porque percebe que sua alma se travou,

levada inteira por quem ela perdeu,

empedernida para sempre no seu gelo.

Ou a se cobrar mesmo nos filhos que gerou

pela própria insensatez que cometeu,

sem jamais lhes conceder igual desvelo...

DEGELO VI

Ou ainda, no vigor da mocidade,

bem protegida pelo seu cortejo,

sente ela mesma da morte o frio beijo,

a conduzi-la à eterna castidade.

Diagnosticada com moléstia de verdade,

seu tratamento demarcado pelo pejo,

áspera espera pelo final ensejo,

a separá-la de toda a humanidade.

E nesse reino de que tanto havia esperado,

jamais será algum dia coroada:

fiel foi a si mesma, mas deixou partir-se o selo,

mais cruel para si que ao enamorado,

a quem negara a prenda cobiçada,

final fracasso que não mais lhe traz degelo…

DECADÊNCIA I (8 jan 13)

Se alguma coisa me causa desagrado

é a inversão de valores do presente:

essa ênfase que é dada ao deficiente,

em toda parte o mais privilegiado.

Por certo deva ao trabalho ser treinado

e a especial necessidade do paciente

reconhecida em situação bem diferente

e para emprego adequado encaminhado.

O cego, o surdo-mudo e o cadeirante

não necessitam de caridade receber,

pois têm plenas condições de trabalhar,

mas o atual protecionismo delirante

que algumas ONGs querem promover,

no fim das contas só os irá prejudicar.

DECADÊNCIA II

Isto igualmente se reflete nas escolas:

surgiu a cultura do ‘pobrezinhismo’,

passam de ano analfabetos por modismo

ou por preguiça dessas gentes tolas

ou muito espertas, a passar adiante as bolas,

buscando a avaliação no numerismo

e não na qualidade; ou em terrorismo,

favorecendo as mais péssimas escolhas.

Os bons alunos são os novos excluídos,

sem receber o merecido apoio,

sendo o ensino cada vez mais sucateado.

Mas nos países mais desenvolvidos

retiram os bem-dotados de tal joio,

tal qual seu mérito cada um encaminhado.

DECADÊNCIA III

E depois ficam defendendo novas quotas,

para esconder a própria deficiência;

e tais alunos querem ter igual leniência

na universidade, sem merecer as notas.

O que irá acontecer, quando ignotas

turmas de alunos de total ineficiência

alcançarem o mercado? Nova urgência

obrigará a contratar suas becas rotas?

E o que será então da sociedade,

nivelada, desde modo, bem por baixo?

Sem qualquer ordem, que dirá, progresso?

Enquanto outros países, na verdade,

formam cientistas em numeroso cacho,

ou técnicos de treinamento mais espesso?

DECADÊNCIA IV

Antes que sejam abertos os empregos

prometidos em tempo de eleição,

que haja ensino de qualificação

não os presentes favorecimentos cegos.

Pois que siga o favor diversos regos,

favorecidos os que melhores são,

por mais que se demonstre compaixão

aos destituídos, em reais apegos.

Que haja um treinamento disponível

principalmente para os mais capacitados,

pois são eles que irão fazer a diferença,

promovendo a habilidade mais incrível,

como os países hoje respeitados...

E então se espere do melhor que vença!

CREPÚSCULO I (9 JAN 12)

Lugares há, consoante a latitude,

em que o crepúsculo, na prática, inexiste;

quando o manto da noite o dia conquiste

será em rápida eclosão de magnitude.

Em outros, tem o dia senectude:

a luz se esvai aos poucos, sem que aviste

o Sol, A luz escassa permanecer insiste,

diluída na atmosfera, em plenitude.

Porém a vida se esvai subitamente,

mesmo havendo a transição de uma agonia:

num instante há vida, no outro se extinguia,

mesmo que haja um prelúdio decorrente,

que a vida humana, em seu vaidoso porte,

é tão só um passo diário para a morte.

CREPÚSCULO II

O fato é, que mesmo no estertor,

existe vida ainda e algum calor

porém, de súbito, já não bate o coração,

logo então cessa toda a inspiração.

Pois não se morre aos poucos. O vigor

vai diminuindo aos poucos, igual que o amor.

Se alquebra aos poucos a melhor canção,

a última febre se esgota sem paixão.

Mas quando chega, a morte é veloz corte,

baixa a cortina sobre toda a vida,

muitas vezes, no meio de um esporte;

e assim se apaga toda a vaidade tida,

num último suspiro sem suporte,

mas de repente tomado de vencida.

CREPÚSCULO III

Pois nossa vida é mais frágil que uma chama,

que ao se extinguir, deixa morrão e fumacinha...

Perante o corpo, resta apenas ladainha

dos que ficaram, rezando algum proclama

de vida eterna, em luzidia flama,

ressurreição, se o paraíso se avizinha,

reencarnação, se é a sansara que continha

essa esperança que a alma ainda reclama.

Mas todo o corpo se interrompe de repente,

sem qualquer dúvida, mesmo conservado

nos aparelhos da moderna medicina;

ou fica, quando muito, congelado,

quando alguém à criogenia se inclina,

mesmo guardado de forma permanente...

FAIXAS DE GELO I (10 JAN 13)

O coração é quente, mas a vida

É coroada por gelados diademas;

A cada dia encontra novas penas

Que a cercam em tiara umedecida.

Cada alegria por desgosto perseguida,

Cada sucesso seguido por condenas.

A lei do ciclo é a balança dessas gemas,

O equilíbrio uma saga assim cumprida.

E nesse círculo, o que vale é o entusiasmo,

Que nos faz atravessar branca planície,

O gelo fino a rachar a cada passo,

Interrompido tão somente pelo orgasmo,

Que nos mantém vibrando à superfície

Do transitório, mas amado abraço.

FAIXAS DE GELO II

Dizer que é a esperança que conserva

A vida inteira é tão só lugar comum,

Mas não se atinge jamais lugar algum

Sem encontrar palidez na verde erva.

Está adiante a felicidade. É serva

De outro sonho, de lugar nenhum.

Calor existe em qualquer trago de rum

Que no estômago e entranhas se nos ferva.

Mas cedo ou tarde, a garrafa se esvazia

E a erva à frente inteira amarelece,

Toda a esperança luzes de pavio...

Não obstante, vai em frente a nostalgia,

O gelo enfrenta e se desfaz em prece,

Enquanto resta da vida o menor fio...

FAIXAS DE GELO III

Só o amor nos amortece a sensação

Desse gelo em que a vida nos enfaixa;

Tece amor por breve tempo e tudo encaixa

Na rósea iniquidade da paixão...

E até mesmo se afebrenta o coração

E derrete ao seu redor gélida faixa;

Mas a febre da emoção então se abaixa

E cresce o gelo em rendilhada brotação.

E que tristeza, quando o amor congela!

E se desfaz em pequeninos nadas,

Pois nunca morre em cálida explosão.

E em vão suspira pela flor mais bela,

Que perfumara antigas alvoradas,

Gelada agora em completa murchidão.

FAIXAS DE GELO IV

E assim ocorre com qualquer sucesso.

Por algum tempo nos enche de ventura,

Mas aos poucos se congela em amargura,

Faixa de gelo sempre mais espesso.

E na amizade transcorre igual processo,

Por mais cálida que tenha sido e mais segura,

Esfria aos poucos, quebradiça e dura,

Faixa de gelo que tentar nem meço.

Melhor então é amar o próprio gelo,

Como um sorvete em dia de calor,

Faixa de gelo que nos reconforta,

Envolta em melancólico desvelo,

Qual boneco de neve sem vigor,

Mas que sorri à luz da lua morta.

EXCLUSÃO I (11 JAN 13)

Quantas vezes eu bati, sem ter resposta,

nas portas da cidade e até do mundo...

Meus dedos eu ralei e, rubicundo,

tornou-se o rosto na aflição composta.

E sempre soube o quanto me era imposta

tal necessidade, que nada de profundo

me continha. Porém, no vezo de iracundo,

rasguei meus dedos até a carne exposta.

Tentando ser aceito, desta ou dessa forma,

sentindo ainda assim a mesma rejeição,

pior ainda, quando me elogiavam...

Que eu fosse um gênio era a eterna norma.

Não era humano, portanto, e a situação

Se assemelhava à dos que desprezavam.

EXCLUSÃO II

Fui rejeitado devido à religião

e por política igualmente perseguido,

embora nunca, na verdade, sido

nela inclinado a qualquer tipo de atuação.

Na adolescência, houve outra rejeição,

por ter sido de gordura bem nutrido.

Sempre era uma forma de ser atingido

pelos colegas de menor avaliação.

Podia até ser muito inteligente,

mas lhes era inferior fisicamente

ou, pelo menos, era como me tratavam.

E se voltavam contra mim, constantemente,

e especialmente se os mestres me elogiavam,

faziam “camangas” e juntos me espancavam.

EXCLUSÃO III

Se por acaso alcancei oportunidade,

nunca faltou quem me prejudicasse.

Até hoje nunca faltou-me quem tentasse

tirar-me a chance, por inveja ou por maldade.

Ou indiferença ou egoísmo. Na verdade,

não encontrei a mão que me ajudasse

e de forma constante me amparasse,

por me reconhecer ou por piedade.

Fala-se hoje tanto em inclusão,

pensando em raça ou em deformidade,

tal e qual se exclusão fosse pobreza.

E permaneço na mesma situação,

que ainda me olham e veem superioridade

e então se sentem repelidos, com certeza!

EXCLUSÃO IV

Pessoalmente, superior não me senti,

tinha apenas cultura e boa memória,

peado contra a vida exploratória

por uma herança que nunca escolhi.

Foram os livros os amigos que elegi;

amei a música trazida pela história,

cultura inútil coletando como escória:

boa parte de minha vida nem vivi!...

E embora busque a todos tratar bem

e já tenha ajudado a quantos possa,

ainda me escondo por trás da desconfiança,

em tanto olhar a perceber, também,

por trás do véu de amizade que se esboça,

essa exclusão que encontrei desde criança.

MILAGRURA I (12 JAN 13)

Queria ser o caramujo dessa lenda,

que em pássaro se fez e, logo após,

virou-se em borboleta, junto à foz

de todos os mistérios da legenda.

Demandei ser cigarra na minha senda,

cantando até rachar, da gola ao cós;

libélula presa de uma teia aos nós,

coleóptero inerme em tal prebenda.

Nessa torrente de forma desconforme

fui descobrir, afinal, o meu papel:

não abelha peregrina empós o mel,

porém besouro de élitro disforme;

e escaravelho quis ser, à minha escolha,

para as nuvens navegar sobre uma folha.

MILAGRURA II

Seria minha vida, assim, bem mais pequena

e a mais ninguém eu causaria inveja.

Somente o pássaro a uma lagarta beija,

quando a devora sobre o talo da açucena.

Seria a vida então a pluma e a pena,

fosse a pluma uma semente que se adeja,

fosse a pena uma mágoa que se enseja,

pluma e pena de uma vida que envenena.

Pequena vida, solta no arrebol...

Talvez vivera como uma crisálida

ou como larva... ou mesmo, feia pupa,

todas moídas da morte no crisol,

na mesma dança de existência pálida

que em coletivo estertor então se agrupa.

MILAGRURA III

Talvez vagasse tal qual a mariposa

ou pairasse como a amada borboleta,

que o devaneio humano assim seleta

e a própria alma seria a minha esposa.

Ou me faria em revoada mais idosa

que meu vigor em bando assim excreta.

Teria uma alma de lepidópteros completa,

multicor nessa dança assim formosa.

Mas talvez permanecesse um caramujo,

de fato, lesma negra em labirinto,

a buscar entre as raízes refeição.

Filho da terra, em que me espojo e sujo:

nessa humildade me alivio e consinto,

sem esperar qualquer louvor da multidão.

MILAGRURA IV

Em tal milagre também existe agrura:

tantos bichinhos que morrem sem sentido...

Quiçá algum pássaro tivera assim polido,

macia penugem a lustrar a formosura.

Mas não teria consciência de amargura,

apenas viveria, voaria e, bem nutrido,

seu alimento à Terra sendo devolvido,

sem nem do néctar reconhecer doçura.

Pois, afinal, sempre há agrura no milagre,

numa acerbia de surpresas mil:

são mil agruras no espanto do momento...

Que a milagrura, no entanto, me consagre,

como parte integrante desse anil,

no qual voarei tão só em sentimento.

GARIMPO I (13 JAN 13)

Tentei tecer a teia e a seda pura,

no tear de meus versos, lançadeira

que não parava mais na corredeira,

mas me elançava na mais doce tortura,

até que dia e noite a imensa altura

se acumulasse nessa empilhadeira;

e agora, só me vejo em tal carreira

e quero e já não quero ter a cura.

Eu olho, ela me assusta e então me orgulha;

ao longo das semanas, são milhares,

mas quando os poderei passar a limpo?

E nem sequer recordo o que debulho;

já me surpreendo só de ler esses cantares,

extraídos a mercúrio do garimpo...

GARIMPO II

Chegou o primeiro desses duplos trezes,

que se perfilam ao longo deste ano...

Traz-me o treze alegria ou desengano,

Lenta corrente a devorar-me os meses...?

Treze de abril, nova data desse plano

para a chegada do asteroide Apophis...

Dois mil e vinte e seis, novas estrofes

recalcularam a data em largo afano...

Portanto, caso se cumpra a tessitura,

terá um ano menos, certamente

e meu tear já será antes derretido,

no fogaréu dessa delícia pura,

em que posso sorrir, razoavelmente,

sem precisar ser jamais correspondido.

GARIMPO III

Na verdade, eu não busco inspiração

(mas o inconsciente certamente a busca):

vê em toda parte a pérola que ofusca

e algum diamante sem sofrer lapidação.

Quando eu tecer a teia, a fiação

não será a dessa luz que lusca-fusca,

nem da saliva que fusca e depois lusca:

não é uma teia para alimentação.

Bem ao contrário, busca é alimentar

e se nutre do sangue e das ideias

que escorrem e, aos poucos, me enfraquecem.

Somente almeja a ti capturar

no perlífero oceano da odisseia

dos diamantinos sonhos que padecem.

GARIMPO IV

Porquanto glória e fama não garimpo

e nem ao menos qualquer reconhecimento,

mas tão somente a difusão desse portento

que um olho d’água em mim achou bem limpo.

Pois em cada brotação que surge, sinto

um jato multicor de encantamento,

não destinado a meu arrebatamento,

porém ao teu, cujo olhar aqui pressinto.

Não busco para mim chama qualquer,

porém merece ter um pouco de atenção

essa meada de versos floriformes,

sobrevivendo quando eu já me desfizer,

em chafariz de flamas em botão

que te acalente nos instantes em que dormes.