OSSOS DA ALMA & MAIS

Ossos da alma I (24 nov 12)

De nossa alma os ossos são memórias,

Que lhe permitem caminhar ereta;

Cada lembrança triste ou mais dileta

Forma vértebras e tíbias peremptórias.

O que seria da alma, sem histórias

Que a deixassem destarte mais completa?

Cada vivência mais a alma nos afeta,

Mais a enrijece para novas glórias.

Uma alma sem ossos só rasteja,

Qual uma ameba amorfa em seu contorno,

Sem reagir aos acontecimentos;

É das lembranças que, aos poucos, relampeja,

Cria arcabouço e pode andar em torno,

Sem ser rolada no sabor dos ventos...

Ossos da alma II

Existem ossos de formação disforme,

Quando moldados por efeito da indolência

E existe alma esmagada de impaciência,

Perante os fatos da vida desconforme;

Existem almas a que o amor informe,

Constituídas com perdão e com leniência;

Outras surgiram feitas de imprudência,

Mais cartilagem que seu formato adorne;

Mas seus passados são glóbulos vazios

Incapazes de agir ou de se erguer,

Pelos corpos facilmente apisoadas,

Em Suas fraquezas de caracteres frios,

Que pouco ou nada sabem empreender,

De seu passado totalmente desligadas.

Ossos da alma III

Se encontram almas feitas de algodão,

Que se mantêm em pé só com arames,

Não obedecem ao arauto dos conclames,

Porém seguem a indiferença e a escravidão.

Existem almas de um ácido carvão,

Que nada escutam, por mais que lhes reclames;

Outras possuem de flores os estames,

A perfumar seus ambientes sem paixão;

E ainda há aquelas que esqueceram o passado,

Ou que surgiram desprovidas de memória,

Olhos vazios o mundo a contemplar,

Em sua vivência sem fim determinado,

Numa existência tão só perfunctória,

Sem sequer ao próprio corpo governar...

Ossos da alma iV

Melhor então a memória das tristezas

Que os ossos forjam com feroz tutano

E o periósseo conformam como um cano

Por onde marcham tropas de incertezas,

Do que um viver amorfo e desumano,

Na busca fútil apenas de altivezas,

Sem desafios ou combates de vilezas,

Qual em exoesqueleto de inumano

Inseto que só vive uma estação,

Come, Cresce, se reproduz e morre...

E quantas almas encontras hoje assim?

Sem um caráter, sequer em brotação,

Mal animando um corpo, que percorre

Sua vida às cegas, até encontrar seu fim...

HOSPEDARIA – 18 nov 12

(para Rafaela Ribas)

Quem é essa gente na minha estrebaria?

Pensa o burro, paciente, contemplando...

E pensa o boi ao lado, ruminando,

placidamente, nessa noite fria:

Quem é a mulher com olhos de magia?

Pensam ovelhas, na palha se ajeitando:

Quem é esse José, que a está chamando

pelo nome suave e simples de Maria...?

E vêm pastores e anjos, a cantar,

sob as seis pontas da singular estrela

que os magos seguem, de casta ternura...

Pois de toda a adoração, em sua candura,

nesse presépio da manjedoura bela,

foi a desses animais sempre a mais pura...

VENTANIAS I (19 NOV 12)

Por longo tempo conservei saudades

que se foram esgarçando, lentamente,

cada saudade um pouco incongruente,

saudades de esgarçadas veleidades,

insufladas pelo vento a eternidades,

que as ia transformando, calmamente,

até alcançarem formato imprevidente,

eram saudades de inconsequencidades...

Lembranças de lembranças, tão somente,

às que busquei devolver o antigo acento,

mas que escorreram para a opacidade;

tentei conter seu voo indiferente,

porém não pude peneirar o vento,

que carregou minha última saudade...

VENTANIAS II

Por longo tempo conservei lembranças

às que me devotava, ao entardecer,

mas, pouco a pouco, as vi esmaecer,

no transmutar constante das nuanças;

com outras se mesclaram, longas tranças

de memórias pela senda a recolher;

memórias minhas mescladas ao sofrer

de outras memórias de perdidas lanças;

e o vento, enfim, não me deixava distinguir

quais tinham sido as minhas verdadeiras

e quais memórias de antigas remembranças,

nesse farnel superposto em almofariz,

em que as lembranças de recordações primeiras

se haviam intercambiado em poeira e giz.

VENTANIAS III

Por longo tempo pus no colo as esperanças

de realizar meus sonhos e quimeras;

mas esperanças não são mais que esperas

e toda espera incerta em suas bonanças;

pois veio o vento a soprar desesperanças,

que se encaixaram como sombras veras

a devorar ilusões em suas esferas,

gulosamente, como as carnes de crianças...

Ai, como o vento os sonhos embaralha!

No fim, já nem se sabe o que sonhava

quando era verde e ingênua essa aguardança!

Morre a saudade e o recordar me falha

ante esse turbilhão que me enlaçava

em seu sutil arco-íris de esquivança...

VENTANIAS IV

E que me resta, senão os redemoinhos.

os tornados de esperanças esgarçadas,

os corrupios de lembranças desfiadas,

esses demônios de areia comezinhos;

toda saudade desfeita em passarinhos

que fugiram das gaiolas derrubadas

e que o vento carregou em revoadas,

para onde quer que pousem os mesquinhos!

Espero então que o vento me levante

e me conduza para um pouso igual,

em que de novo comerei as minhas lembranças

e encha um cálice de saudade rebrilhante,

de que possa deglutir um novo ideal,

em salomônicas colunas de esperanças...

REALIDADE I (8/7/2006)

Não sei bem definir as coisas que hoje sinto,

mas desde que partiste o tempo suspendeu-se:

é como se estivesse em névoa de absinto,

vagueando em sonho falso, que em torno entreteceu-se.

Eu já sentira antes, em parte, o que ressinto:

parece-me vivia somente as poucas horas

passadas a teu lado, instantes que, pressinto,

ligavam-se bem firmes, zombando das demoras -----

E agora eu sei que espero apenas o momento

de te encontrar de novo; e meu pressentimento

é ver clarear depressa os dedos do nevoeiro.

Que os olhos me pressionam, em muda brincadeira,

tal como se afastasse pesado reposteiro,

no instante em que te saiba de novo verdadeira.

REALIDADE II (20 NOV 12)

Quando estás perto e longe no presente,

meus dedos lambem o perpassar das mágoas,

minha língua toca o ferro frio das fráguas

e meu espanto mente à alma, indiferente,

por que motivos a indiferença se apresente,

para agitar da ausência oleosas águas,

filetes de surpresa em brandas tréguas,

nessa presença que a solidão consente -----

Pois é na ausência que se alimenta o sonho

e na presença se desfaz toda a ilusão,

numa gaitinha que se faz de serpentina,

meio esperança de um presente mais risonho,

meio desejo de ausente assombração,

hárpia de cobre a devorar-me a sina.

REALIDADE III

Pois te percebo, às vezes, sombra morna,

que se revolve a meu redor, corpórea,

conquanto a mente, perdida na memória,

fica encolhida, enquanto o corpo torna.

Uma outra vida então, talvez, enforna,

bem diferente em som dessa estentória

saudade de si mesma, peremptória,

que de seu pranto num colar se adorna -----

Nesses momentos, pressinto que nem vê

a minha própria presença do seu lado:

quiçá seja a sua ausência que aqui está,

no embaçamento que em seu olhar se lê,

um outro invólucro a seu redor fixado,

no qual espaço para mim não há.

REALIDADE IV

Mas no momento em que a visão se afasta,

porque seu corpo está, de fato, ausente,

em minha quimera mais se faz presente

e com seu som e cor então me empasta.

De certo modo, a ausência mais me basta

que tal presença que a solidão alente,

que o temporário beijo indiferente

que a esperança lixa e assim desgasta -----

E então retorna aquela com que sonho,

desse insondável mundo em que se achava,

num apagar do tempo transcorrido

igual que o espanto fora só bisonho

e retraída nunca se encontrava,

sem por instante sequer ter-me esquecido...

no berço do desejo I (21 nov 12)

qual é o desejo de teu coração?

“eu quero ser feliz,” é o que se diz,

porém quem diz que deseja ser feliz

até que ponto define essa ilusão?

felicidade é pura inquietação,

uma pluma de ouro em almofariz,

centelha dessa luz que mais se quis,

logo amolgada aos golpes do pilão.

quando se tenta impedir, a gente vê

que esse pilão é um de nossos dedos:

é o próprio toque que a faz virar em pó.

buscar felicidade o povo crê,

mas é no próprio desvendar de seus segredos

que ela se esgarça em rede de filó.

no berço do desejo II

qual é então a fonte do desejo?

felicidade já se viu ser intangível,

mas se o desejo permanece inexaurível

será a felicidade esse lampejo?

esse leve reluzir em frio arpejo,

não mais que um eco que se faz audível,

harmônicos apenas do impossível,

no perpassar adocicado de um ensejo?

qual é a fonte, afinal, do teu almejo?

algum momento de parusia sexual,

em si fisicamente transitório?

ou o fantasma, apenas, de algum beijo,

que na lembrança se faça de imortal,

por mais que seja um som fantasmagório?

no berço do desejo III

para muitos o desejo está na fama

ou na glória instantânea e transitória,

na conquista de uma láurea peremptória

para o reconhecimento que reclama,

pois “faz a fama e deita-te na cama”,

como os mortos falavam pela história;

mas toda fama é tão só perfunctória,

servida entre rancor e envolta em lama.

sempre há alguém que a busca conspurcar,

que a maioria quer somente se elevar,

levando os outros ao rebaixamento,

numa ardilosa iconoclastia,

qual nesse outro ditado que se ouvia:

“quinze minutos de fama” em um momento!

no berço do desejo IV

ponho meu próprio desejo em outro berço,

como o embalar gentil de uma criança,

durante o instante que sua presença alcança,

não mais que o tempo em que se reza um terço.

é nesse instante que redijo o verso

que permanece nas fraldas da bonança,

seu futuro revestido de esquivança,

mas seu presente inteiro em mim converso.

e quem sabe o que o fadário lhe trará,

qual não se sabe o futuro do nenê,

embora o brinde de um sorriso complacente...

tal qual o verso o mundo enfrentará,

com que grau de aceitação não se prevê,

nada mais sendo que um desejo inconsequente.

FAROLEIRO I (22 NOV 12)

Ele mantém a luz acesa, embora

Se faça ao amanhecer desnecessária;

Mas os rochedos indica, em sua nefária

Espera pelo barco, em ingrata hora.

São meus olhos o farol do meu outrora,

A recordar os escolhos da ordinária

Recordação da escura vida pária

Que afogar-me poderia, sem demora...

Mas igualmente os dois faróis indicam

Diante das rochas, o caminho mais seguro,

Que para cada recife há uma corrente

E sob o toque dos cílios se repicam

E é refragado esse destino escuro

Que de tocaia aguardava, frente à frente.

FAROLEIRO II

Mas quando os olhos olham para trás,

Será que veem tão só escuridão

Atrás de seu quiasma, sem noção

Do faroleiro que lá dentro se compraz?

Será que a sombra intensa se refaz

Quando as pálpebras recaem de sopetão?

Será de dentro que reluz esse brandão

Ou são as setas do Sol, no seu carcás?

São os faróis não mais do que um espelho

A refletir essa luz que vem do alto,

Ou possuem seu interno combustível,

Que os revista de fulgor, no seu conselho

E o mundo inteiro assim tome de assalto,

Em sua investida de fragor irreprimível?

FAROLEIRO III

Qual faroleiro acende os dois faróis

E qual navio com seu luzir protege?

Qual é o passo que impede assim se aleije

Pelo acionar simultâneo desses sóis?

Quando as pestanas descendem seus anzóis

Que as prende à mente, qual a luz que adeje

Para alumiar o caminho que se enseje

Inversamente ao carmim dos arrebóis?

O que eu queria saber é se meus olhos,

Assim voltados no sentido inverso,

De algum modo surpreendem minha presença

Ou se possuem sob a íris seus antolhos

E nunca veem o faroleiro, assim converso

Em simples lenda, que o esquecimento adensa?

BORLAS DE SANGUE I (23 NOV 12)

Em lágrimas de sangue coagulado,

tornado negro no momento dos crepúsculos,

eu contemplo o estertor desses corpúsculos

que lhe emprestaram seu tom avermelhado;

ou desse outro, também abandonado,

que fora branco nos iniciais dilúculos,

mas agora se reveste de tons rúculos,

no ressecar do processo continuado;

sendo leucócitos menos numerosos

e por redes de plaquetas capturados,

são pela cor das hemácias dominados,

nesses grumos de sangue acarminados,

pobres corpúsculos outrora poderosos,

mas agora simplesmente aglutinados...

BORLAS DE SANGUE II

Cada gota de sangue forma flor

com os respingos da lenta hemorragia,

salpicados ao redor, em fugidia

plantação escarlate e sem candor.

Formam os pingos estrada que luzia

pelo antanho, em suas lupas de rubor,

rapidamente perdendo o seu calor,

em seu deslize para a nostalgia.

E se formam assim borlas de franjas,

num suspiro de fragrância carmesim,

longa rede perdida no passado;

e a cada vez a vida assim esbanjas,

nesse encarnado que te escorre assim,

em mil nuances de negro acastanhado.

BORLAS DE SANGUE III

É qual se fosse a tua vida vestimenta

que te reveste a cabeça com capuz

e te recobre até a planta dos pés nus:

sangue da alma em que quase não se atenta,

de suas franjas a escorrer memória lenta,

cujo esplendor solitário assim reluz,

nessa trêmula acidez de linfa e pus

que um sonho morto aos poucos desalenta.

Borlas de sangue se formam nessa franja

de esperança lentamente desfiada,

num incansável labor de artesanato...

Gotas de sangue em redolente canja

que preparas em tarefa descuidada,

tua alma aos poucos consumida de maltrato.

BORLAS DE SANGUE IV

Pois não nos brota o sangue só da pele,

nem se deixam pegadas só dos pés;

das muitas gotas de ilusão as sés

vão escorrendo, sem que a mente se acautele;

quando a tristeza em coágulo se nivele,

cada rancor das malsinadas fés

suas marcas deixa na senda do através,

até que aos poucos a mágoa se encastele;

e tantas borlas se deixam para trás

que acabam por formar um vasto mar,

vertido aos poucos por toda a humanidade;

e ali teus próprios coágulos acharás,

muito embora, se os tentares recobrar,

já se mesclaram em fímbrias de igualdade.

BORLAS DE SANGUE V

De certo modo, essa imagem me horroriza;

não sei de qual calabouço me brotou

ou qual sussurro oculto me inspirou

essa vertente de sangue, que desliza

e colore de arroxeado a parca brisa

por cada sonho que a morte já levou,

por cada amor que a vida já apagou,

forçando um rosa que à mente se harmoniza.

São essas borlas de sangue o meu tapete,

que me permite palmilhar entre os espinhos.

Se não houvesse esse sangue coagulado,

serpentinas coalescidas em confete,

muito mais ásperos seriam os caminhos

a cada novo sofrimento agonizado.

BORLAS DE SANGUE VI

Que seja o sangue, em borlas escarlates,

na imensa tapeçaria coagulado,

em que encontramos cada antepassado,

entretecido na trama dos combates!

E que importância terá que nunca dates

cada franja do tapete avermelhado

na tessitura encarnada do passado,

em mil nós acarminados dos engates...?

Talvez sejamos nós as próprias borlas

erguidas dessa trama, inesperadas,

e sobre o antigo sangue hoje pisamos,

mas deixamos após nós as silentes orlas

para novas gerações ainda esperadas,

que com as hemácias do olhar ainda visamos.