CULLODEN MOORE

CULLODEN MOORE I (19 FEV 12)

Em cada dia, tenho vinte e cinco horas,

uma delas à meia-noite comprimida:

a raça humana dela foi banida

e poucos são os que contemplam tais emboras.

Eu sou dos que percorrem as desoras,

trago no bolso a luz do sol perdida,

a chuva em mil diamantes recolhida,

meu sono ferve no banho das demoras...

Nos verões, é mais difícil. Tanta gente

caminha pelas ruas, no frescor

e a meia-noite se perde num segundo.

mas quando chega o inverno, é diferente:

recolho nessa hora todo o amor

e a escuridão disfarço em mar profundo.

CULLODEN MOORE II

Às meias-noites, me projeto para fora

da órbita da terra e voo ao espaço,

onde o Sol brilha mais e ali me faço

conhecedor de mil reflexos do outrora.

A luz do Sol me toma em seu regaço

e me dá a recolher frutos que doura:

são frutos desse antanho, que então cora

e de novo enlanguesce, em seu mormaço...

É assim que colho os fantasmas do passado,

esses eventos das vésperas da história,

as mil batalhas de sangue derramado...

Essas torturas aplicadas, a merencória

visão do povo pelas pestes assolado,

em mil ruínas de desvalida glória...

CULLODEN MOORE III

Mas também vejo meus avós enamorados,

vejo a plêiade garbosa dos pintores,

aplicados a colher os estertores

da formosura de corpos já fanados...

Eu vejo os escultores consagrados

e a multidão de artífices menores,

nos rendilhados de mármore, condores,

acantos e pavões representados...

Eu vejo a construção das catedrais,

suas pedras transportadas uma a uma,

os servos mourejando nas pedreiras...

Eu vejo as fortalezas triunfais,

nos parapeitos e ameias me ressuma

a proteção dos feudos e das freiras...

CULLODEN MOORE IV

Eu vejo os camponeses, em labuta,

a suplicar bom tempo às divindades,

na semeadura a suspirar saudades

desse cereal nascido de outra luta,

que tantas vezes à fome se refuta,

pois mais valem as sementes enterradas

que dar pão preto às crianças esfaimadas,

à cabeceira das quais a morte escuta.

Eu vejo os mil pastores de rebanhos,

sobrevivendo em passas e azeitonas,

levando o leite das fêmeas aos senhores.

E vejo os peregrinos mais tacanhos,

a demandar a mui distantes zonas,

em penitência por pecados multicores...

CULLODEN MOORE V

Vejo os torneios, quais contos de fadas,

cheirando ao esterco e suor de seus cavalos;

vejo escudeiros a lhes lavar os falos,

em sua imundície de roupas mal lavadas

e vejo as damas, todas perfumadas,

para aos odores dos corpos disfarçá-los;

proibia a igreja dos banhos os regalos,

suas sedas sujas de alfazema borrifadas.

Que os camponeses banhavam-se até mais,

pelo menos no verão e primavera:

a água é escassa nos palácios e castelos

e nos conventos, só há banhos nos finais,

quando termina da vida a longa espera

e os cadáveres são lavados com mil zelos.

CULLODEN MOORE VI

Então eu volto à Terra, carregado

desses reflexos dos antigos sóis;

o astro-rei canibaliza os arrebóis,

nesse espaço exterior desperdiçado...

Assim as meias-noites, com cuidado,

vou revestindo destes meus faróis;

penduro minhas imagens com anzóis

e sou por elas de novo contemplado.

Porque mais busco é captar reflexo

de mim mesmo, em meu andar atribulado,

as milhas percorrendo ao meio-dia

e tomo todo o palmilhar sem nexo

para acender meias-noites do meu lado,

nas longas horas de minha louca fantasia.

O CHIFRE DOURADO I (27 out 11)

De Bizâncio certamente não há ruínas,

foi totalmente demolida sob as sinas

das ordens imperiais.

Essas que existem são de Constantinopla,

e tudo quanto é descrito nesta copla

não lhe pertence mais.

Existem de Teodósio ainda as muralhas,

de Constantino as palaciais mortalhas

e igrejas mortas.

Mas do porto de mar de antigamente,

resta talvez um alicerce indiferente,

de pedras tortas.

Quiçá se encontrem no mar os velhos ossos

dos pescadores ou, no fundo de alguns fossos,

carcaças de navios.

Restos de mastros, talvez, antigas bilhas,

enterradas no lodo, já em estilhas,

passados desafios.

Quiçá fantasmas, lá no Chifre Dourado

ainda espiem, com seu olhar gazeado,

à luz do pôr-do-sol.

Metáfora de um corno, totalmente,

ondas brilhando sob a luz do Oriente,

em crepúsculo e arrebol.

Fantasmas de fantasmas, nada mais,

reflexos perdidos no jamais

do antigo paganismo.

Seu Posêidon já de há muito abandonaram,

Nereu e suas Nereidas se afastaram,

perante o Cristianismo.

O CHIFRE DOURADO II

Ainda existem as cisternas desse antanho,

algumas permanecem no tamanho

dos velhos memoriais.

E guardam água nos seus velhos dutos,

suplementando o fluir dos aquedutos,

de ruínas triunfais.

Ainda se vêem os velhos calabouços,

mas de Blaquernas só restam os esboços,

já bem dilapidados.

E das casas que os antigos habitavam,

sem a glória dos palácios que miravam,

só há traços isolados.

Tudo que existe é constantinopolitano,

aquilo que deixou o gênio romano,

tingido em bizantino.

Ao redor desses vestígios há escadas,

podem galgar as pessoas mais airadas,

em desafio ao destino.

Eu escutei a voz da companheira

e não galguei à Anemas altaneira,

talvez por covardia.

Ou por prudência, quem sabe por cansaço.

Só foi minha filha a receber o abraço

do vento que zunia.

Mas eu não fui e estranha nostalgia

a minha alma recobre, na ironia

de não ser imprudente.

Os meus fantasmas talvez soprasse o vento

e uivassem cantochão no ouvido atento,

nas ameias do Poente.

O CHIFRE DOURADO III

Ainda ali está o Patriarcado,

Ortodoxo, sem ter sido condenado

por ordem do Sultão.

Embora seja a maioria muçulmana,

a própria shariya não chega a ser tirana

da antiga comunhão.

Ali se encontra a Igreja da Panágia,

contém ainda a Fonte de Hagiasma,

sua água benta.

Ainda existe ali o Hágion Lousma,

aberto às vezes ao banho de uma chusma,

que com ele se contenta.

São Salvador de Chora hoje é museu

igual que a Hágia Sófia, e ali morreu

o antigo monastério.

Famoso pela vasta biblioteca,

pelos afrescos de sua pinacoteca

e seu Eremitério.

Pantocrátor é um conjunto de mosteiros.

"Tudo Governa o Senhor", desde estrangeiros

a ortodoxos fiéis.

Zeyrek o chamam turcos; há um hospital,

um asilo, uma capela funeral

e túmulos de reis.

Pammacaristos de Santa Maria,

Zoodocos Pege e os peixes d'ouro que trazia

de seu milagre antigo.

E São Sérgio e São Baco, amostra pura

da mais legítima bizantina arquitetura,

dos mosaicos o abrigo.

O CHIFRE DOURADO IV

Diante do Bósforo, a fortaleza de Rumeli

não se abre ao público, mesmo que se apele

para ver o interior.

A Igreja de Metal se ergue em Balat,

de Santo Estêvão o Búlgaro, do combate

celebra ainda o valor.

Não me agradou o Bazar de Especiarias,

na confusão de aromas, fugidias

suas contas vivas.

E só acompanhei, sem entusiasmo,

essa excursão pelo oriental marasmo,

cores esquivas.

Dele não trago sequer recordações,

só o vento junto à porta e as sensações

leves que foram.

Mil vezes preferi o arsenal de prata

e a elevação da Torre de Galata,

que os djinns douram.

Na verdade, será justo confessar

que foi a Apolo que tive de apelar

a orientação.

Pois certamente ele foi canonizado

e como novo santo entronizado,

com devoção.

Mas outros versos sei de mim esperam...

São Baco e Dionyso não quiseram

soprar nenhum...

E desses deuses antigos destronados

ouvi apenas ressonares compassados,

sem canto algum.

ASLAN I (28 OUT 2011)

Os palácios e as mesquitas de Istambul,

em sua realidade altissonante,

não foram realmente o que esperava.

Só vi por fora essa Mesquita Azul,

talvez por dentro seja deslumbrante;

achei simpático o prédio que se alteava,

com seus mosaicos.

Fabricados em Iznik, já famosos,

na opulência dos seus seis minaretes,

a única a ostentar tantos no Islão.

Seus alpendres exteriores são formosos,

revestidos de miríade de confetes

e os rendilhados de cunho cristão,

bastante arcaicos.

Já a Mesquita de Rysten Paxá,

projetada por Sinan, o arquiteto

de Suleiman o Magnífico, tem graça

tipicamente islâmica e lá está;

Beira o Grande Bazar, tão indiscreto,

o maior souk do mundo, junto à Praça

do Sultão Ahmet.

Rysten Paxá era só o Grão-Vizir

do grande Suleiman, mas fez erguer

essa grande estrutura por piedade,

conforme seu constante proferir,

mas seu motivo para tanto dispender

não mostrava devoção e sim vaidade,

que Alá o aceite!...

Sentado em banco junto à lateral,

vi, no entretanto, a cena comovente

desses fiéis lavando mãos e pés,

após o rosto, antiquíssimo ritual,

observado há séculos pelo crente,

decerto herdado de mais antigas fés

do velho Oriente.

Existe aquela fila de torneiras,

com assentos dispostos a intervalos.

Descalçam os sapatos, tiram meias,

lavam-se bem na água, quais ribeiras

e se calçam novamente, sem regalos.

Por que sujar os pés noutras areias

do chão ardente?

Mas o bando de turistas e infiéis

não é aceito na hora da oração.

É uma honra partilhar de tal segredo,

são aos crentes reservados tais farnéis.

Que aguardem estrangeiros no portão!

De um fiel mendigo vale mais um dedo

que os reis descrentes.

E permanecem assim, sob as arcadas,

sem pedir bakshish, porque é proibido...

Só vi em Istambul uns três pedintes:

duas velhas com seus dentes desfalcados

e um garoto, sorridente e atrevido,

insistindo em receber, com mil acintes,

nossos presentes.

ASLAN II

A Mesquita de Eyip é a mais garrida

e contém a sacra tumba do sultão

do mesmo nome, que foi porta-estandarte

do Verdadeiro Profeta, na investida

que pelo mundo difundiu o Islão

e aqui morreu, lutando por sua parte,

Eyip El-Ensari.

Quando tentaram tomar Constantinopla,

do século sétimo ainda ao decorrer.

Bordos antigos e pombos nessa praça...

É o terceiro mais sagrado, diz a copla,

dos santuários do Islão a percorrer,

após Jerusalém e a imensa graça

que em Meca paire.

Em Miniatirk se veem as miniaturas

de otomanos e mouriscos monumentos,

de todo o mundo que abrange o Islamismo,

emolduradas por essas rochas duras,

albergando os mais antigos sentimentos

de santuários do próprio Cristianismo

de antecessores.

E de permeio aos belos dioramas,

ainda se veem representações humanas,

judeus em sinagogas, cavaleiros,

vendedores de flores (e de chamas),

bizantinos a usar togas romanas,

ferroviários, popes e guerreiros,

velhos senhores.

Existem mais centenas de mesquitas,

porém fechadas a todos os descrentes.

O plástico a envolver os seus sapatos

não impede que dessacrem frases ditas.

E não gostam sequer que estranhas gentes

olhem de fora para tais recatos:

rompem as preces.

E Alá não ouve os rogos que lhe fazem,

é preciso começar tudo de novo.

Mas a cidade é bem mais cosmopolita,

dedicada ao comércio que lhe trazem,

aos lucros dos turistas para o povo,

que a teu redor, com avidez, se agita,

se às praças desces.

E nos museus escondidos nas mesquitas,

mostram-se armas de soldados otomanos,

suas armaduras e, em três dimensões,

um ator convocado de suas fitas,

para vestir-se qual em antigos anos,

às escondidas a zombar das multidões

de mil viagens.

Noutro museu há condecorações,

as comendas, coroas e turbantes,

um conjunto de jóias valiosíssimas,

e lá no meio de tais ostentações,

esse que chamam rei de todos os diamantes,

lapidado de suas gangas antiquíssimas,

em fiéis clivagens.

ASLAN III

Porém nada seus palácios me despertam,

em neoclássico estilo de imponência,

nem otomanos, nem tampouco bizantinos,

somente cópias que ao Islão desertam,

belos exemplos de arquitetural sapiência,

sem majestade.

Como museus, certamente têm valor,

mostram milhares de lustres e jarrões,

vindos da Europa, da China e do Japão,

mais um retrato de ínclito esplendor

da Rainha Victoria, que vastidões

do mundo inteiro dominava então,

em austeridade.

Em Beylerbeyi Sarayi há dois leões,

guardando a entrada, bem autoritários,

contra turistas mal-intencionados.

O Salão Mavi comporta multidões,

contidos gestos mais atrabiliários

por postes e festões bem colocados.

Que nada quebrem!

Há centenas de degraus em escadarias,

mas não se pode tocar no corrimão,

nem se pisar na beirada dos tapetes.

Por que recebem em suas alvenarias,

por que lhes abrem à visitação,

por que lhes mostram haréns e gabinetes,

se eles se atrevem?

São as colunas de estuque revestidas,

parecidas até com escariola...

E a andar tão depressa precisamos

que não há tempo que sejam percebidas

marchetarias com que o forro se enrola,

por entre afrescos que nem observamos

pois nos apressam.

Estão chegando já outras excursões,

os estudantes demonstram disciplinas,

passarinhos em uniformes escolares,

contendo assim suas manifestações,

abafadas no veludo das cortinas,

entre os mármores de sonhos tumulares,

que ver não cessam.

E os guardas, soturnos em seus ternos,

que nem sabem, talvez, o que é sorrir,

nos contemplam com ar reprovador.

Meus galhofeiros espíritos internos,

estimulados por seu vesgo perquirir,

decididos a reagir com mais vigor,

fizeram-me tocar

nas superfícies de lustro proibido,

nas maçanetas lembrando camafeus

e nesse estuque azulado e de mau gosto.

Ninguém me repreendeu por incontido:

deixei a marca destes dedos meus

nesses lugares em que os havia posto,

só por zombar!...

ASLAN IV

Não nos levaram para o túnel ver

nem a piscina de Sari Koshqui,

mas lá se ergue Dolmabáhtche também,

com suas fontes de cisnes a verter.

Yeditepe, contudo, eu nunca vi,

mas seu sopé ainda avistei, porém

só da janela

dessa van que nos levou até a ponte,

para cruzar ao outro continente.

Por breve instante a Ásia visitei...

(Talvez seja melhor que até nem conte.)

Vi a Torre de Leandro ao sol poente,

onde Hele se afogou, mas nem cheguei

a ver sua estela.

Contudo, fui até o Topkapi...

Mais salas e tapetes, mais escadas,

esses quadros pelos longos corredores,

mas que apenas de passagem entrevi.

Não dava tempo, nas marchas apressadas,

em que turistas ofegavam estertores,

seus pés em dores.

Houve excursão ao longo desse mar

chamado Mármara Denizi, mas de fato,

foi apenas pelo Bósforo e o Dourado

Chifre, o turco Halítche, a navegar.

Sobre o Mármara não houve real contato

nem o Mar Negro foi tampouco navegado,

por maus pendores.

Duas barcas de egípcias enfeitadas,

cozinhas permanentes sobre o mar

e as fileiras sem fim dos pescadores,

sobre as pontes, recobrindo as amuradas,

as longas linhas parecendo velejar,

nesse velho festim dos moradores,

vastas miragens.

E outras pessoas, ansiadas por vender

roupas de couro, valor inflacionado,

um rapaz e duas moças os modelos,

sem o lucro conseguir satisfazer

com este grupo pouco endinheirado,

endividado até os seus cabelos

pelas passagens...

E enfim, na bela loja de tapetes,

o proprietário até falava português...

E se esforçou a mostrar o seu estoque,

um após outro, superpostos leques.

Até inclinei-me a tornar-me seu freguês,

mas como iria levar tapetes a reboque

por meia Europa?

Mas realmente, o que me comoveu,

foi um DVD a mostrar banda marcial,

que só assisti uns quantos dias depois...

Tive saudades do que não aconteceu,

de ver Constantinopla ao natural,

de ter Bizâncio só para nós dois,

qual vinho em copa...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 28/04/2012
Código do texto: T3639015
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.