SONHOS DE ARGILA & MAIS
SONHOS DE ARGILA I (3 FEV 12)
sonhos de parra e parreira,
sonhos macios de maçã,
romarias de romã,
vide os sonhos da videira!
vazia a esperança vã,
sonhos de pedra e pereira,
louros sonhos da limeira,
verdes sonhos da hortelã.
vesgos sonhos vão embora,
sonhos tecidos na franja,
sonhos tesos de tesouro,
sonhos de amor e de amora,
meus sonhos cor de laranja
que eu pensava serem de ouro.
SONHOS DE ARGILA II
não passa a vida de argila,
cozida em forno rachado,
telhas de vidro quebrado,
cacos de sonhos em fila...
a dançarina se anquila,
treme o pintor do seu lado,
todo o beijo é congelado,
mora o príncipe na vila...
perde o atleta a agilidade,
o caçador fica cego,
tem artrite o escultor,
aniquila-se a vaidade,
o martelo entorta o prego
e o banqueiro compra amor.
SONHOS DE ARGILA III
a princesa vira sapa,
sem libélula tornar-se;
vendo o navio afundar-se,
o vampiro perde a capa.
o vereador leva tapa,
não pode o juiz julgar-se,
vai o pescador pescar-se,
a mina se torna em lapa.
quase todo o sonho vai
perder-se na mediocridade,
cai do ninho o passarinho
e no momento em que cai,
vem os gatos em maldade,
e o fazem seu brinquedinho.
SONHOS DE ARGILA IV
sonhos do musgo da terra,
sonhos do musgo do barro,
sonhos do leite no tarro,
sonhos feitos de quimera,
lençóis que a alma descerra,
quimera que desamarro,
coalhado o leite no carro,
o barro em lama se altera.
são cacos de terracota,
a vida é da morte ancila,
poeira grossa que se espana,
louça que as cores embota,
sonhos prensados de argila,
fingindo ser porcelana...
GALANTEIO DO IMPOSSÍVEL I
Já nem sei mais qual seja o teu perfume:
minha narina é cega e sem memória.
Meu cérebro se esforça pela história
relembrar sob o archote do sem-lume.
Mas se limita a lembrar, com azedume,
quão raros foram os momentos dessa glória,
quão escassa sua presença foi sensória,
que até a lembrança da memória esfume.
Mas gravo ainda momentos tão preciosos,
encravados na alma como alfaias,
essas íris de luz que me acalentam,
esses pequenos momentos veludosos,
que guardo no escrínio de horas gaias,
com cujo odor esmaecido me sustentam.
GALANTEIO DO IMPOSSÍVEL II
Pois eu guardo nos circuitos de meu faro
o cheiro cristalino de teus dedos
o sabor de teus lábios em segredos
que comigo repartiste, em instante raro.
Eu tento até esquecer e então eu paro,
pois são fortes demais momentos ledos,
entremeados das iras de meus medos,
agitados por olor assim tão caro.
Apenas duas sombras abraçadas,
por instantes despidos de recatos,
de cuja marca profunda em quase morro.
E sou cimento recém posto nas calçadas,
sempre guardando a marca de sapatos
ou pelo menos, das patas de um cachorro.
GALANTEIO DO IMPOSSÍVEL III
Porque assim marcou-me a alma tua presença:
fui uma lisa prancha de argamassa,
sobre a qual tua sombra apenas passa,
enquanto aguardo, a superfície tensa...
Mas quando se afastou, perdi minha crença
e me submeti a estranha jaça,
fui pisoteado por diversa raça,
minha firmeza demonstrou-se pouco densa.
E assim, fiquei ponteado pela chuva,
cujos pingos a superfície me encresparam
e pelas marcas de quem não desejei;
e enquanto só almejava a meiga luva,
estranhos dedos meu corpo perpassaram,
até que os próprios juramentos quebrantei.
GALANTEIO DO IMPOSSÍVEL IV
Pois é tal o galanteio do impossível,
que estou marcado por alheios pés.
Mesmo levado a estilhaçar minhas fés,
fiel eu permaneço em certo nível.
Noutros abraços há um espaço intransponível
e teu fantasma se ergue em seus sopés
e mesmo no apogeu desses atés
contigo estou, por mais que seja incrível.
E quando me derramo noutros braços,
permanece bem ausente o coração,
porque o levaste contigo e foste embora.
E me acalento contigo nos espaços
que nos separam da real completação,
por me lembrar de ti a cada hora.
GALANTEIO DO IMPOSSÍVEL V
Assim as minhas narinas são a fonte
que me conserva o cheiro mais fragrante.
Guardo no olfato a sombra expectante,
guardo um tesouro que, enfim, não há quem conte.
Quebra-cabeças que não há quem monte,
um labirinto de fado itinerante,
a buscar pelos meandros o constante
perfume para o qual não vejo a ponte.
E é como se achasse só pinguela,
ponte pênsil a cruzar desfiladeiro,
troncos redondos amarrados por cipós.
E que se apenas eu cruzasse sobre ela,
esse perfume me encheria o corpo inteiro,
enquanto em cada margem estamos sós.
GALANTEIO DO IMPOSSÍVEL VI
E assim espero, no canto da alvorada
e assim aguardo, num canto de minha mente
e assim atendo, em minha mudez descrente
deste canto que, afinal, conduz a nada.
E assim espero, na prisão dourada,
de cujas grades sempre estás ausente.
É apenas teu perfume onipresente
que me consola durante a madrugada.
Não é somente a memória de teus beijos,
nem de teus braços a consolação,
mas esses quase impossíveis galanteios,
essas lembranças de sutis ensejos,
em que perdi a redolência da emoção
pela tola imposição de meus receios.
fumarolas roxas i -- (jan 2009)
quero a tristeza que me dás. mais rica
que qualquer mostra de tua indiferença.
atribuirei a ela uma valência
que lentamente, como amor implica,
com doces pontos de alegria salpica
o lenço da saudade. e sua presença
imporá pouco a pouco e, nessa crença,
felicidade e um tanto mais significa.
porque outra letícia não conheço
que relembrar as horas que me deste
por mais me transbordassem desvalia.
e por isso, a tristeza te agradeço,
mais que momentos em que nem sequer soubeste
que tinhas para dar melancolia.
fumarolas roxas ii - 19 set 11
melancolia é uma fumaça roxa
que brota de malignos incensários,
disfarçados em turíbulos solidários,
volutas que se enroscam em minha coxa.
melancolia é como incenso em trouxa
um amarrado de perfumes tão contrários
em sua manifestação, tão multifários
que o olfato lançam em voragem frouxa.
melancolia é a dança dos pecados
que não se cometeu e se queria.
quem deseja lançar-se no vulcão
e só levou os passos descuidados
à margem da cratera que se abria,
mas foi retido pela própria hesitação.
fumarolas roxas iii
minha tristeza é fumaça em cor mostarda,
coisas mofadas de que já desisti,
mas insistia em guardar. porém descri
dessas palhas de desejos que se aguarda
e revesti minha toga de outra farda
quando a outro destino me acolhi
dentro da própria alma, em que acendi
a lenha dessa chama. e que me arda
o olfato perante o auto-de-fé
de minhas memórias já desperdiçadas,
que lancei indiferente nas calçadas.
não mais meu peito lhes servirá de sé.
minhas tristezas secas e espalhadas
por sob as solas de quem anda a pé.
fumarolas roxas iv
é vermelha a fumarola indiferente
de quem apenas me saúda de passagem
e me destrata, sem qualquer vantagem,
embora reconheça e cumprimente.
é vermelha a fumarola do indecente
que afronta a indiferença com coragem
e sofre os choques de maior voltagem
a cada nova experiência deprimente.
as fumarolas sobem, simplesmente,
sem o menor interesse nos passantes,
réstias de cinza em simples rodopio.
e nos envolvem em seu dançar, somente
porque passam seus giros triunfantes,
igual que as pedras que perpassa um rio.
fumarolas roxas v
também é roxa a que sai da desvalia,
porém de cunho bem mais pernicioso,
pois não denota um coração ditoso
esse fumo que das ventas se desfia...
porque essa fumarola sem magia
se expande das entranhas, em doloroso
espalhar-se pelo mundo, em espantoso
evolar-se ao redor de quem não o via.
e é maligna em sua transfusão,
que influencia àqueles que a respiram,
que se submetem a tal contaminação
e que nos mostram amizade e até suspiram,
quando, de fato, deviam-se afastar,
para a si mesmos não se envenenar.
fumarolas roxas vi
mas é azul a fumarola da alegria,
embora muitos a pretendam rosa.
ela se expande, tênue e deleitosa
e se espalha ao redor, meiga euforia.
a despertar sorrisos em quem a via,
talvez inveja, porém pundonorosa,
que se comente, no meio de uma prosa,
já pintalgada por gentil melancolia.
mas é azul a fumaça de um amor,
porque o rosa é reservado para dois,
enquanto olhares refletem a cor do ar.
pois seja sempre azul teu bom-humor
e para quem o vir, tenhas depois
um pingo de carinho a lhe emprestar.