RESTOLHOS

RESTOLHOS I (2 DEZ 11)

Não quero remoçar. Se bem queria

retomar o meu aspecto aos quarenta,

mas não apenas por fora me contenta,

quero a saúde toda que possuía:

quero todos os dentes desse dia,

minha vesícula e ainda me aparenta

fosse melhor a figura dos sessenta

se conservasse os cabelos que eu havia...

Mas não posso me queixar, pois, fora disso,

tudo funciona igual que antigamente,

mesmo que as juntas sofram seu desgaste,

que ainda posso andar, sem ser omisso

o meu cérebro e o coração bate igualmente,

faltando muito para ser um traste...

RESTOLHOS II

Mas tampouco pretendo me gabar:

o que possuo é um bom metabolismo,

que me conserva o humor em preciosismo

e não permite em brigas me enfiar...

Ao mesmo tempo que posso caminhar

e conservar saudável o organismo,

de meus músculos tenho um certo saudosismo:

há pouco tempo para me exercitar...

Mas considero, afinal, que se aproximam

os meus setenta anos e não posso

esperar o mesmo tipo de vigor

daqueles a quem os anos mal ensinam;

e de fato, não desejo ser mais moço,

na inexperiência tímida do amor.

RESTOLHOS III

Na verdade, nem um pouco me incomoda

ter deixado para trás a juventude;

a mocidade alheia não me ilude

e muito menos busco seguir moda,

pois não pinto meus cabelos, como à roda

vejo essa gente, que a aparência mude,

para que a tanto sua vaidade se desnude:

pobre ilusão que tanta gente engoda...

O meu orgulho sempre foi da mente

e não me deixo envolver por amargura:

quantos jovens vejo aí a se matarem

com drogas, ou correndo velozmente,

presas inermes da inadequação mais pura,

sem jamais maturidade conquistarem.

RESTOLHOS IV

Não foi comigo assim. Eu aprendi

bastante cedo, não que me ensinassem,

embora coisas erradas me contassem

e só aos poucos libertar-me consegui.

Eu me eduquei foi nos livros em que li

ideais de amor que neles se narrassem,

li Kierkegaard, sem que mo recomendassem,

li Spinoza e, apesar do que sofri,

fui deles retirando meus preceitos

e a eles fui fiel pelos menos anos,

se bem que é cedo para meu testamento;

tudo reunido, eu conto meus malfeitos

nos dedos de minhas mãos; mas meus enganos,

nas mil redes neurais do pensamento...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 03/03/2012
Código do texto: T3533641
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