AMOR DE SOMBRAS IV
AMOR DE SOMBRAS IV
Meu amor ama a paixão da solidão:
não que paixão amor final revele,
se bem que, em solidão, eu te desvele
o verdadeiro amor do coração.
Não que te ame em clara exultação,
como te amei um dia, mas que anele
poder amar o amor que mais compele,
desvele e vele a mais pura emoção.
Amar amor é real paixão de esteta,
que não deseja real o que deseja,
mas realiza, no ensejo que desliza
a lisa sorte escusa de um poeta,
gastrônomo do odor da solidão,
em que espuma e flutua o coração.
AMOR DE SOMBRAS V
Nem sei se sabes o que queres. Queres
poder dizer que queres o que sabes,
mas o que queres tu não sabes. Sabes
que não queres ouvir e assim me feres,
porque feres a ti. Mas não esperes
saber porque ferir hoje me caiba.
Cabe ferir a quem mais ferir saiba,
mas não te ferirá se um dia quiseres
um lance breve, em que outra dor recaia
no ferimento antigo que nutriste
na aguardança de outra dor que nele caia,
sobre a ferida, em gesto calculado.
Talvez te fira, mas não qual me feriste,
na distração de um amor já congelado. (*)
ABELHAS E ARANHAS I
Eu hoje almocei tarde e fiquei lavando versos,
com detergente e esponja, na pia da cozinha:
a cada dois minutos, eu esforçar-me tinha
para das mãos secar os argumentos dispersos.
Pus cartões no escorredor dos rascunhos imersos,
a pingar as ideias com que a mente engalfinha:
ensaboados os dedos, nessa missão mesquinha,
fui empilhar mil linhas nos cantos submersos.
Por isso, é justo agora que abra minha torneira,
para limpar palavras no fio de água da pia,
deixar que ideias tolas se escoem pelo ralo.
Melhor borrar a tinta que imagem rotineira
incluir nesses cantos que a mente me trazia,
enquanto passo a toalha e em meu cismar resvalo.
ABELHAS E ARANHAS II
Só Deus é compassivo. Nossas almas
são sementes de um velho girassol
que já viveu seu ciclo e, no arrebol,
não mais ergue a coroa, cujas palmas
eram mil pétalas de ouro, nessas calmas
da segurança social, seguindo o Sol,
que a velha vida esmagou-o no crisol
e agora as espalha quais sementes dalmas.
Curva-se a ele a grã congregação:
milhões de girassóis, todos unidos,
em fidelíssima veneração!...
Mas desfazem as suas flores, ressequidos
e espalham-se as sementes. Renascidos
em outros girassóis de curtas vidas...
ABELHAS E ARANHAS III
Meu verso é seco e cheira a pergaminho;
num burel de estamenha me recolho;
tomo um lírio nas mãos, pétalas colho,
que assopro qual fumaça, de mansinho...
Meu verso se umedece de carinho,
ao pensar nela; e vejo que me antolho,
numa ilusão concreta. As mãos com óleo
revisto, numa bênção de azevinho.
Versos estranhos refulgem para mim,
que tento de escrever e não compreendo,
nem sequer eu, o seu significado.
Somente escorrem pelo braço... assim:
para o sonhar dos outros eu me vendo,
no verde aroma de um verso avermelhado.
ABELHAS E ARANHAS IV
Talvez desista de pôr título em poemas.
Sempre se encaixa bem no som alado
de folhas de eucalipto... Ao pronunciado,
o nome se atravanca em mil dilemas.
Melhor fora que tais títulos, apenas,
fossem primeiras linhas, retomado
o atribuído a Camões, num atrasado
esforço de pôr nome em açucenas.
Se o vate antigo não quis, por que legendas,
que capturam o sentido assim tão mal?
Tal cancioneiro soa bem mais natural,
envolto em brumas de rompidas lendas,
que a cada um que o lê, o verso enseja
um melhor título, que em sua boca beija.
ABELHAS E ARANHAS V
Quando tomo o empoeirado original
de cima de minha mesa e os flocos sopro
de farrapos de estrela; ou, com escopro,
a caliça eu removo de cada madrigal
desse antigo desengano ali contido,
uma sombra esvoaça e a mente envolve,
em farripas de sonho, qual ilusão que volve
de um texto milenar mal traduzido...
São limalhas de cérebro e sangue conservados,
são lixo de luar nessa pilha introduzido,
lascas de giz perdidas na ponta de minhas unhas,
consumida a cutícula, os vasos esvaziados
de um ideal ressecado e a cacos reduzido,
como as juras de amor que um dia me propunhas.
ABELHAS E ARANHAS VI
É hora de parar. Tu deves ser
a sombra morta do meu padecer,
causa incausada de todo o meu viver,
o padrão uniforme de meu sonho,
pois nestas linhas, este amor que exponho
não é o amor colérico e medonho,
nem um ciúme polêmico e bisonho,
somente a espuma de meu padecer
por querer tal amor, mas não poder;
poder amor que não se quer querer,
pouco mais que uma fímbria de meu sonho,
que nunca foi feliz, nem foi risonho,
mas ao qual último brinde ainda proponho,
antes que morra em novo alvorecer!...
ARANDELAS I
Meus versos são um ramo de salgueiro,
forjado em prata e sangue de emoções,
em luz cristalizadas; minhas canções
trazem sabor de lima e pessegueiro.
Pelos meus dedos a lavanda flui,
em poemas de anil, no quaradouro:
a luz do sol arrebata meu tesouro,
mas ao som da madrugada, ele reflui.
À luz da aurora é um pássaro canoro,
que prefere empoleirar-se em ataúde:
a chama esfria e o gorjear empalidece.
Ficam metáforas a gotejar no bebedouro
e a cadência dos amores não me ilude
quando me acordo e a luz mais me entristece. (*)
ARANDELAS II
Estiro a alma, como estiro a vida,
a cada vez que recebo a inspiração:
de suas narinas coletei respiração,
que acumulei e nos lábios dei guarida,
como forja de amores, repetida,
uma vez mais, em total desolação,
que os dois sabemos jamais satisfação
encontrará a expiração perdida.
Estiro a alma, que se esfaz ao vento
como um elástico e me aproximo dela:
tem os olhos castanhos minha donzela,
por mais azul que lhe seja o sentimento.
E assim, mantenho aberta minha janela
para acolher no meu seu pensamento.
ARANDELAS III
Existe um gato no fundo do retrato,
branco no corpo e, na cabeça, preto,
gato de rua, acostumado a treta,
mesmo não sendo retrato desse gato,
que só entrou na foto, de gaiato:
vivia aqui metido, atrás de teta,
e minha paciência bem depressa injeta
a presença desse gato, triste fato...
É até possível que tenha já morrido:
a foto tem dois anos e, agora,
o gato maula não tem mais aparecido...
Depois que me cansei, se foi embora,
quem sabe já encontrou onde é querido,
e se disponham a jogar comida fora...