CRISÁLIDAS I & MAIS

CRISÁLIDAS I (2008)

o INVERNO, para mim, é puro ouro,

na FÍMBRIA do global esquecimento:

vou GUARDAR caixas num compartimento,

cheias de FRIO, sem me causar desdouro.

por CERTO, eu trabalho feito mouro,

para REUNIR essa grade de um momento,

antes que se DERRETA, em vazar lento,

em ODRES finos do mais puro couro.

pois ASSIM como guarda mais calor,

dentro de SI, enquanto o animal vive,

o COURO reterá também o frio,

que VENDEREI como ventilador,

em LEMBRANÇA de um inverno que já tive,

agora MORTO pela aridez do estio!

CRISÁLIDAS II

"o OLHAR de quem sabe amar

se UMEDECE quando vem a dor..."

mas como é FÁCIL esse tal calor,

nessa EMOÇÃO tão simples de expressar!...

não que eu a QUEIRA realmente desprezar,

mas é COISA bem mais funda meu amor.

não que REAJA somente ao indolor,

mas NÃO É FÁCIL me fazer chorar.

não CHORO pela morte ou por tristeza:

a dor ALHEIA só me impele à ação:

não se faz NADA perante a sepultura.

mais me COMOVE é ver quando a cultura

é TRANSMITIDA à nova geração,

perante a COISA RARA que é a nobreza.

CRISÁLIDAS III

sou PORTADOR de distúrbio psicológico:

isto é, SEM DÚVIDA, a Síndrome da Poesia.

seus SINTOMAS são vários: me alivia

de PARTICIPAÇÃO no mundo sociológico;

escrevo VERSOS de cunho neurológico,

ao INVÉS de pôr-me de amores na porfia.

quando a ESPERANÇA, em timidez, me espia,

me REFUGIO no universo patológico

dos SONHOS e das velas multicores:

versões PSICODÉLICAS de amores,

reduzidos a ZUMBIS de negra tinta,

espectros RETIDOS nessa finta,

quando, DE FATO, teus reais odores

eu PREFERIA, embora em versos minta.

ÓCULOS DE FARINHA I

Caminho diariamente pelas cinzas

que trilharam meus pais e em que se misturaram.

Não vejo rimas para a cor... Quem sabe,

rimarei cinzas apenas com o gris.

Também um dia, nessas brancacinzas,

eu mesmo mesclarei. Verei que andaram

(quem após mim a vida agora cabe)

e subirei feito pó a seu nariz.

Talvez, como os fantasmas do passado,

(que herdeiro me elegeram sem consulta)

a algum escolha para soprar versos,

que marchará, o andar descompassado,

amarfanhado do sonho que o indulta

do dever de povoar de cinza os berços.

ÓCULOS DE FARINHA II

Eu sei que morro e, às vezes, até quero.

É bem provável que até acolheria

a ceifadora que hoje a mim viria,

se indolor for o trânsito que espero.

Difícil é a vida, dentro da qual me gero,

no mesmo ramerrão, dia após dia;

nem lentas mortes eu desejaria,

mas extinguir-me em pleno reverbero.

Queria ser um Doppler: ressonância

que me transformaria em eco e onda,

apenas um zunido em que me esgoto,

translúcida minha nuvem de impedância,

no quântico ondular da mesma ronda,

em que ao magnetismo me devoto.

ÓCULOS DE FARINHA III

Eu sempre busco, ao menos um pouquinho,

manter-me original. Bem sei que tudo

que havia por ser feito ou por ser dito

já o foi, na longa estrada que passamos.

Sou forçado a seguir igual caminho,

nessa trilha de ossos. E, contudo,

sempre há uma coda ou um refrão bonito,

nessa flauta de tíbia que assopramos.

Já antes afirmei: para ser original,

não é o que se diz, porém o como:

são as hemácias que colorem o poema;

não basta uma guirlanda senoidal

de sístoles e neurônios, mas eu somo

meus leucócitos do sangue ao velho tema.

ÓCULOS DE FARINHA IV

Porém me sinto cada vez mais deslocado,

nesta época em que há tanta inversão:

os deficientes é que louvados são,

enquanto o inteligente é desprezado.

Na verdade, já estou acostumado:

desde menino que sofro rejeição:

sempre fui diferente, com razão,

pelo pecado de ser superdotado.

Até hoje, se me olham com respeito,

bem lá no fundo, não me aceitam totalmente

e quanto faço, não traz admiração.

Bem ao contrário, detecto um trejeito

de malícia e de desprezo nessa gente,

que preferia ver-me dentro de um caixão!

ÓCULOS DE FARINHA V

Já estou morto e enterrado de algum modo.

Meus dedos coalescem de além-túmulo.

Minhas cinzas se espalharam mas o acúmulo

de memórias e lembranças trago a rodo.

Crio dedos de poeira, em meu engodo,

para escrever nos vidros. Tenho estímulo

para deixar teu nome em cada cúmulo

que o vento sopra pelo céu. E o lodo,

em vez de passos, te mostrará minha face,

não torturada, nem alegre, mas contida,

a demonstrar que controlo o turbilhão.

Mas é somente meu rosto que renasce,

em dedos de água a te banhar despida

ou que em teu sangue te beija o coração.

ÓCULOS DE FARINHA VI

Envolto em pensamento, marcha Deus,

na polvadeira imensa da matéria.

E a cada passo, a consequência é séria:

surgem estrelas: a seus pés crescem os céus.

São universos revelados nesses véus

de mil posteridades, nessa egéria

meticulosidade aleatória,

que multiversos distribui aos léus.

Nos quais constelações, assim minúsculas,

conscientes de si próprias e inocentes,

se refletem no arrancar do malmequer.

E todos somos tais gotas arenícolas,

que escorrem em contínuos diferentes,

para forjar os mundos que se quer!

TERMO (12 ago 79)

Subitamente, amor fez-se viável,

nessa promessa feita tão secreta,

qual resguardado óvulo em proveta,

ao sêmen se revela vulnerável.

Mais do que antes, no ventre da menina,

que um defeito qualquer deixara morto,

sem à fecundação dar seu conforto,

da boca a consumar brilhante sina.

E como um feto que não mais aborta,

de nosso amor o fruto do embrião,

raízes já espalhou no coração

de nós os dois: seremos dois gestantes,

nessa alegria que não mais se importa

de ser placenta para dois amantes.

TERMO II (23 jul 10)

Que amor, quando é amor, é mútuo amor:

se te fecundo, em mim geras também

uma impressão que levarei além,

enquanto vivo for, de tal calor.

Amor não é passagem de um ardor

que cintila e se esvai num vaivém:

no amor não existe mal para ninguém,

amor é igual corisco de esplendor.

Por isso, ao te encontrar em meu caminho,

não decidi a busca da conquista.

De fato, foi o oposto: em ti se avista

o porto acolhedor de meu carinho

e em cada beijo teu, há novo enlace

que inteiramente a alma me perpasse.

TERMO III

Amor nasce depressa, num corisco

pois brilha intensamente esse cometa

e nem consegue a ocultação da meta:

amor quer ser amor em firme visco.

Platão falava desse estranho disco

de criaturas que rolavam, em dileta

completação de si mesmas, em secreta

abolição de sentir da ausência o risco.

Mas, por vaidade, lançaram desafio

ao Olimpo soberano, em seu orgulho:

foram desfeitas após um só assalto.

Porém Zeus, de seu trono de cobalto,

não as matou, somente, em sábio esbulho,

cortou-lhes em metades todo o brio.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 18/10/2011
Código do texto: T3284299
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