Nasce um poema quando um sonho nasce
Da inspiração, que é mãe do pensamento.
Asa do sonho, pássaro que ao vento
No coração do poeta vem aninhar-se.
E dele, abrindo o peito, mostra a face
D’alma feliz ou quando em sofrimento
O poeta faz do poema o seu intento,
‘Inda que às vezes seja-lhe um disfarce.
Finge que às vezes vive enquanto sonha;
Sonha que sonha às vezes quando vive,
Bebe do sonho a taça, - último porre.
O poema nasce onde o poeta o ponha
Só nele fica o poeta em que revive
E morre o poeta quando o sonho morre.
- Hermílio -
Honrado e agradecido, aqui ilustro a minha página com a brilhante análise da professora e poeta TÂNIA MENESES
Soneto em Sonho, poema de Hermílio P. de Macêdo Filho
O título, de imediato, remete o leitor a imaginar o poeta em contemplação do soneto inserido em uma paisagem onírica. A cena é apresentada aos leitores, narrada em lances cinematográficos. Em toda a extensão do poema, nota-se que o artífice está focalizando a obra _ assim distanciado, na posição da terceira pessoa do singular: “Nasce um poema...”; “E dele, abrindo o peito, mostra a face”, etc.
O primeiro quarteto apresenta o nascimento do poema, filho do sonho e da inspiração. Nessa passagem introdutória do soneto a beleza do lavor poético ganha um realce importante quando o poeta também reconhece na inspiração a célula mater do pensamento.
É a condição de pensante que faz do ser humano, especialmente do poeta, uma ave de voo possante, a própria “asa do sonho” que lhe permite alcançar a transcendência e, em sua majestade, “No coração do poeta (...) aninhar-se”.
No segundo quarteto, a imponente ave pousa, abre o peito do poeta adormecido e “mostra a face”. Independentemente do sofrimento lírico-poético ou da felicidade que sente, o criador daquela supra realidade reconhece o seu objetivo maior: o poema, “ ‘Inda que lhe pareça um disfarce”.
Provavelmente ocorreu na mente de Fernando Pessoa uma rajada de relâmpagos que o iluminou de tal forma ao afirmar duas coisas. Uma é a de que “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”; a outra, a de que “todo poeta é um fingidor”. Possível é constatar o grandioso voo alcançado nestes versos aqui comentados, próprios de uma alma cujo sentido de estética é um dom natural _ além de firmar-se o artesão no burilamento do verso. Finge o poeta e enquanto finge distancia-se da realidade comum e experimenta a condição de deidade. Sim, poetas são deuses e só a eles é permitido deixar na terra o corpo comum a todos os mortais; e, do que avista com os olhos da alma, em um ambiente cósmico, recolher fagulhas do fogo sagrado com que molda suas peças literárias.
Quando do terceiro momento do Soneto em sonho, o eu poético se permite elaborar a cena na qual divisa esse poder que o torna capaz de dividir-se entre sonho e realidade; e entre realidade e sonho. Essa alternância confere ao poema um movimento de suave ruflar de asas. Depois, o clímax deste bem engendrado soneto captura a figura da metáfora na qual o pássaro, após a sua ação sobre o eu do poema, satisfeito e pleno, “Bebe do sonho a taça _ último porre”.
O porre da poesia é um conjunto de rápidas tomadas da eternidade e de closes da essência que molda o ser poeta. A última estrofe enfatiza e retoma o nascimento do poema. O cineasta conduz a parte final do filme de tal forma a ficar patente a autoridade do ser poeta quanto aos destinos do poema: “O poema nasce onde o poeta o ponha”. E, ali, no campo único e solene de sua obra, reside o transcendental. E somente ali reviverá, continuadamente – tantas vezes seja lido o texto e submetido à pluralidade de interpretações. O homem é finito. A transcendentalidade é o infinito e indefinível ser poético. O poema _ em sua dupla condição de objeto gráfico/sonoro (significante) e anímico (significado), pelo contrário, eterniza _ não o homem, mas o ser especial que o habitou.