IMPULSIVO / CONTRACEPTIVO / RESTOLHOS

IMPULSIVO (3 ago 79)

Eu tive a pretensão transiente de querer

Cortar destes poemas o fluxo por qualquer

Insulto recebido, sem intenção sequer:

Talvez fora melhor parar de fazer versos...

Somente descobri, de novo, sem surpresa,

Que fechar esta eclusa, em perenal certeza,

Não está em meu poder, fragílima tibieza:

Os sonetos que trazem sabores tão diversos

São vivos de per si, estranhas criaturas,

Inquietas, turbulentas, nas intenções mais puras

De só sobreviver nas leis da Natureza

E não se submetem a um gesto de incerteza,

Mas cantam galhardia, alçando-se às alturas

E apenas interpreto seus sonhos de altiveza.

IMPULSIVO II (8 jan 11)

Não foi então. Mas houve outro momento

de ardor mais impulsivo ou falho julgamento,

de mágoa recolhida ou vão ressentimento

e de fato cortei de meu cantar o fluxo.

Não que o tivesse interrompido totalmente:

em ocasião mais meiga ou momentaneamente,

se algo me pediam, assim, bem tolamente,

à indiferente criação me dava ao luxo...

Contudo, passei anos, meu sonho reprimido,

sem nem sequer pensar em fazer o que queria

e para que o fazer, se já tantos tinha feito?

Até que, de repente, por novo ideal movido,

eu fui buscar os versos que algures esquecia

e mil outros encontrei no fundo de meu peito.

IMPULSIVO III

Hoje soa de novo em mim esse coral,

de mil e uma vozes, às vezes desconexas,

umas alegres, outras titubeantes,

umas fúnebres, outras pleno carnaval...

E aceito sempre, qual dote natural,

essas vozes em coro que me indexas,

(se te dás ao trabalho), contrastantes:

só querem se expressar, nem fazem mal...

Mas se tento parar, fazem barreira,

como os recifes australianos de coral

e recusar seu suplicar nem vale a pena!

Embora, às vezes, essa turba interesseira

mais pareça uma serpente, que afinal,

quando me pica, a alma me envenena...

CONTRACEPTIVO I (2 ago 79)

Não é que eu queira parecer bonzinho,

Mas realmente, não sei guardar rancor:

Por mais que alguém me fira em desamor

Minha raiva é sempre fraca e, de mansinho,

Escorre pelos dedos, em saga de ampulheta,

Como se fora o Sol tapado com peneira

Ou água de garimpo, deixando, alvissareira,

Um que outro grão de ouro, em luz secreta...

Sequer desejo dizer me faça bem

Perdoar os outros, em gesto meigo e doce:

Perdoa quem odeia ou teve amor também

A quem por seu amor tão pouco amor lhe trouxe.

Mas ódio para mim não quer qualquer perdão,

que aborta sem apoio me achar no coração.

CONTRACEPTIVO II (8 jan 11)

São dessas coisas... Odiar é cansativo,

requer dose bem grande de energia...

Sou preguiçoso demais e tal folia

me exige muito mais em feio crivo

que a sensação amorosa por que vivo,

feliz ou infeliz em sua energia,

pois me permite reportar com simpatia

as longas fases da vida em que me ativo,

sem custar mais do que o correr da mão.

Escrever sobre o ódio até tentei,

mas com sucesso apenas passageiro,

não mais que temporária exaltação,

que indiferente muita vez fiquei,

olhando a raiva escoando-se ligeiro.

CONTRACEPTIVO III

É coisa igual ao que ocorre com a mentira,

que se apresenta como facilidade,

porém mantê-la traz grã dificuldade:

toda mentira bem depressa estira...

É preciso contar outras, nessa gira:

se reproduz feroz contra a verdade,

tem pernas curtas, porém mais fertilidade:

cada falácia outras falácias mira...

Uma coisa é permitir que a fantasia

descreva o ódio e a vasta falsidade

dessas quimeras que bem posso imaginar...

Porém mentir de fato, a mente fria,

requer sempre aumentar velocidade,

para as mentiras anteriores alcançar...

CONTRACEPTIVO IV

Contudo, sou forçado a confessar

que ao ter notícia de que morreu alguém

que me causou o dano de um porém,

certa alegria perceba experimentar...

Aí vejo a natureza a se mostrar,

nesse rancor de quem ódio não tem,

mas que de fato não deseja que ninguém

de sua justa punição possa escapar...

É lá no fundo que mora o preconceito,

contra qualquer que nos prejudicou;

não se deseja sua morte abertamente,

mas permanece na alma esse defeito,

uma tolice, afinal, que nos marcou:

nada se lucra com a morte dessa gente!

RESTOLHOS I (31 ago 79)

Eu nada quero desmanchar, entendes?

Prefiro por em risco o meu carinho

Do que teu beijo terno, de mansinho

Furtar a quem comprou, sei me compreendes.

Tu pertences a outra por promessa

E ela te ama, eu sei. Maravilhosa,

Em sua meiguice é violeta e rosa

E de magoar seu coração não cessa,

Porque te ama tanto ou mais que eu,

Toda a sua vida, enfim, te concedeu:

Se eu a busco, assim hei de insultá-la.

Somente de assentar-me nesta sala,

Que não é minha nem tua e que ela encheu

Desse amor mesmo que a alma lhe avassala.

RESTOLHOS II (31 AGO 79)

(para Jussara Tamborindeguy)

Eu quero agradecer num verso, apenas,

Por teu abraço meigo e teus olhares,

Permeados de ternura, nos milhares

De simples ocasiões, maçãs morenas,

Que partilhas conosco, petiscadas

Em doações sinceras, domingueiras

Ou em alta madrugada, hospitaleiras,

De vinho e gasolina marchetadas.

No mesmo proteger, leve e perfeito,

Que exige o preço apenas do respeito

E se derrama em véu de castidade,

Num tutelar sorriso, qual se ela

Fada-madrinha fosse e a Cinderela

Vestisse de condão por amizade!...

RESTOLHOS III (07 ago 79)

Estranho há pouco tempo celebrasse

O transluzir da carne de minhas filhas

Num soneto casual e logo estilhas

A essa própria carne estraçalhassem.

Como em assomo de hubris repentina,

Melhor eu fora deixar de meu orgulho,

Antes que o golpe sentir de tal engulho

Na carne pura e fresca da menina,

Que assim sofreu por mim, por ser vaidoso,

Não de mim mesmo: desgostos bem secretos

Eu tive sempre ao corpo escandaloso,

Mas do corpo infantil, sonhos diletos,

Que abracei de ideal tão prestimoso:

Duzentos filhos quis: fiz mil sonetos!...

RESTOLHOS IV (21 ago 79)

Alguns há que reprovam ligações perigosas

Que dizem estou tendo, tão só por malefício.

Eu cá, bem quereria ciranda de bulício

Me circundasse agora em voltas tão fogosas,

Que pudera esquecer os anos sem malícia,

Que tive em ligações somente cuidadosas,

Meus anos pervertidos somente a colher rosas

De puro trescalar, estéril pudicícia!...

Que as ligações de agora talvez me tragam vida!

Que todo o meu desgosto levassem de vencida

E o tédio me afastassem em gosto de romã,

De cidra e tamarindo, damasco e rosmaninho,

Que nestes olhos loucos fremera do carinho

Que só se pode achar no amor da barregã!...

RESTOLHOS V (31 ago 79)

No fim das contas, eu até que gosto!

Percebi de repente, num sorriso,

Que adoro esse teu dar-se de indeciso,

Apenas aos golinhos, doce mosto,

Que me entregas nos lábios, gota a gota.

É como se nós dois adolescentes

De novo fôssemos e vezes infrequentes

Tivéssemos trilhado a antiga rota!...

E tudo vem de novo, renovado,

Qual eu queria sempre, descuidado,

Irresponsável mesmo, num portento...

Que apenas nos toquemos, nos beijemos,

Que sensações apenas provoquemos,

Sem completar nosso carnal momento...

RESTOLHOS VI (31 ago 79)

E existe mais ainda: em ser maduro,

Sabendo que és mulher e que me queres,

Que tudo me darás, quando puderes,

Sem que eu precise demonstrar-me duro,

O que não sou, por certo... E precisara

Fingir de ser, fingir mais experiência,

Para mostrar ser homem, ter potência,

Se adolescente eu fora e me encantara...

Posso entregar-me ao gozo do momento,

Numa delícia em brando julgamento,

Sem ser escravo tão só da sensação,

William Lagos
Enviado por William Lagos em 22/06/2011
Código do texto: T3049789
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