BENARES / HEMITROPIA / KALINDA

BENARES I (2008)

Talvez seja minha culpa. Não dei graças

ao receber o pouco. O muito, assim,

não me escorreu em doçura carmesim

aos lábios secos de provisões escassas.

Talvez devesse aceitar as bênçãos baças

do orvalho matutino em meu jardim,

porém queria mais. Perdi, outrossim,

o pouco que alcançara. Até as desgraças

se evaporaram e só a monotonia

permaneceu comigo. Inócua sina,

sem acidentes ou prazeres. Proteção

indiferente, como a luz de uma vigia

do barco de passagem se destina

a iluminar um distante coração.

BENARES II (29 mai 11)

Que seja assim. Passando por Benares,

as fogueiras se avistam sobre a margem.

Jazem aqui os mortos, em homenagem,

sob a fumaça a escurecer os ares...

E não se faz assim qualquer contagem:

as cinzas se recolhem, sem pesares

e são lançados ao Ganges esses milhares

de hindus cremados na final viagem.

Não dão graças nem lamentam sem razão.

Apenas se praticam os rituais:

queima-se a lenha até sumir a pira...

De longe assisto minha própria cremação,

misturada à polvadeira dos demais

e o Ganges corre enquanto a Terra gira...

BENARES III

E nisto existe maior sabedoria,

que corromper a terra em cemitérios.

Antes no Iran havia eremitérios:

exposto às aves o corpo ali jazia...

Lançá-lo ao fogo não se permitia,

sagrados seus fulgores mais etéreos...

E são, contudo, menores despautérios

que armazenar-nos sob a terra fria.

Portanto, darei graças nesta hora,

por este fogo de meu entendimento

e por amores que não tive ou que perdi.

Darei graças por quanto foi-se embora

e por instantes de quebrantamento,

quando avaliei quão pouco recolhi.

BENARES IV

Eu agradeço pelo pouco que vivi,

nos longos anos que por mim viveram;

pelo que tinha de fazer e me esqueci,

por tantos erros que me sobrevieram.

Não agradeço por escolhas que fizeram,

determinando meu caminho aqui;

decidiram por mim quanto puderam:

profundo sulco à força eu percorri.

Sei não se pode jamais volver atrás,

mas sempre existe nova encruzilhada

e para a margem posso mergulhar...

As cinzas para o mar o Ganges traz,

mas a torrente para mim não é sagrada:

desço em Benares, sem nas chamas me lançar!,,,

HEMITROPIA I (Rotação de 180 graus -- 2008)

Não te aproximes de mim, senão teus sonhos

eu tomarei também para meus versos.

Palavras se não deres, sons dispersos

furtarei de teu olhar, belos, medonhos...

Não me importa quão maldosos ou bisonhos,

eu os vampirizarei, em ardor conversos.

E quando os devolver, serão inversos

nos meus poemas: tristes ou risonhos...

Porque essas luzes que te roubei dos olhos,

em mim transmudarei, cheias de afetos

de meu próprio querer: ouro e ilusão,

pobres cadáveres, que ungi com santos óleos,

renovei-lhes as vidas, vesti seus esqueletos,

com o próprio sangue que rasguei do coração.

HEMITROPIA II (31 mai 11)

Eu não sou plagiador na minha veneta

de tomar esses sonhos que me vêm,

de espelhar esses olhos que me veem

e retorcê-los, em ambição secreta.

O que lançam para mim, numa concreta

expectativa ou distração também,

giro de volta, sem controlar, porém,

os cento e oitenta graus, qual um asceta

talvez fazer pudesse. Não sou mais que um poeta,

maugrado meu, que os deuses me lançaram

a faixa, o manto, a inspiração e a lira...

E quando vejo, em meu pendor de esteta,

um sonho ou sentimento que jogaram,

o acolho em mim, sem que outras almas fira.

HEMITROPIA III

Assim, da multidão dos sonhos mortos,

da turbamulta dos sonhos moribundos,

eu recolho... Quiçá os mais iracundos

e os busco consertar onde estão tortos...

Ou, sem querer, os deixo mais retortos,

na hemitropia dos sonhos mais profundos:

a palidez lhes curo e, rubicundos,

conduzo cada um a novos portos...

Nunca se trata de um roubo verdadeiro.

Vejo nos olhos os sonhos esquecidos,

vejo nas bocas os ideais entristecidos

e procuro reformá-los por inteiro

e os giro totalmente, de inopino,

até lançá-los de volta a seu destino...

HEMITROPIA IV

E quanto a tuas palavras, proferidas,

não te pertencem mais, porém ao vento.

Eu as recolho com as redes do portento

e lhes curo lentamente suas feridas.

Quantas palavras disseste, já esquecidas!

Mas minha memória tem longo agendamento.

Eu lembro quantas te fugiram num momento

e lhes dou vida, em meus sonhos coloridas...

Teus próprios sonhos minhas palavras tecem,

em rede de fagulhas cintilantes,

que lanço ao mundo, mil nuvens de algodão.

Enquanto tuas palavras, que me descem,

tecem meus sonhos em cristais instantes,

como plaquetas coagulando o coração.

KALINDA I (2008)

Furtiva é a hora de proclamar amores:

amor de esconderijo, amor de dissidência.

A farinha nos dedos eu vejo com frequência

de quanto me sobrou na busca dos ardores.

Na verdade, me furtei de passar por estertores,

que envolvam a conquista, a busca ou a paciência.

Há dor nestes meus pés, há bolhas e há ardência,

meus olhos já se fecham aos últimos pendores.

Falando francamente, eu sinto-me perplexo

perante as circunstâncias que afetam esta vida,

não sei qual seja a origem, não lhe descubro o nexo.

É como se um poder estranho me atormente,

e puxe meus cordéis, sem pausa entretecida

às velhas ilusões que o espelho me apresente.

KALINDA II (12 JUN 11)

Furtiva é a hora de proclamar as penas

que não se quer que saibam. Em sorrisos,

mostram-se brancos os dentes incisivos

e se finge ter fingido fingir de amor apenas...

Furtiva é a hora de cantar verbenas,

as janelas bem trancadas, por que risos

não acolham nossos cantos indecisos,

despetalados de murchas açucenas...

Falando francamente, é bem mais fácil

proclamar abertamente uma paixão,

que se pode desmentir com ironia,

do que se admitir, em gesto grácil,

até que ponto se cortou o coração,

desventrado por galhofa e zombaria...

KALINDA III

Furtiva é a hora de proclamar sucessos,

que nem sequer, em penhor de discrição,

se deseja conhecidos, pois serão

motivos para amuos mais espessos.

Furtiva é a hora de sopesar os preços

entre a delícia e a reprovação.

Amores novos são frutos da ilusão,

amores velhos quebradiços gessos...

Falando francamente, sempre existe

certa perfídia em quanto mais se ama:

pesado é o custo de qualquer sinceridade.

Quando em quimera o coração insiste,

e o esconderijo desse amor proclama,

imaculado em sua fictícia virgindade...

KALINDA IV

Furtiva é a hora de proclamar poemas,

escondidos por detrás dos mananciais

destes meus versos, que não param mais

e que atribuo a mil almas ajenas...

Furtiva é a hora de recolher centenas

de palavras empoeiradas de jamais

e digitá-las, ao som de mil jograis,

dançando em torno ao fogo das falenas!...

Falando francamente, é bem melhor

atribuir as decepções e tais triunfos

a quantos pairam em torno de meu lar.

Esses espíritos agitados em labor

de parto manso, a sacudir os trunfos

das cartas rotas e marcadas pelo ar.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 16/06/2011
Código do texto: T3038123
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