TRÊS QUATUORS
TRÊS QUATUORS
William Lagos
A ÁGUIA POUSOU I (27 fev 11)
Essa águia acolhida nos seus braços
parece a ponto de pousar, airosa,
sem nada de ameaçador. É prestimosa,
como buscando a paz de tais abraços.
Não traz a fome no rigor dos traços:
encara apenas, altiva e poderosa,
enquanto as garras para o pouso dosa
e a plumagem se apresta para os laços.
É como se, de fato, ela descesse
sobre esse par de mãos que assim a acolhe:
até a sombra de sua cauda é desenhada...
Dedos abertos nessa estranha prece,
nenhum percalço sua descida tolhe,
em arquetípica e pura encruzilhada.
A ÁGUIA POUSOU II
Fico a cismar se a águia está descendo
ou se, ao contrário, a mulher está subindo:
até que grau estão interagindo,
até que ponto se estão comprometendo.
Não sei se estão vibrando e percutindo,
se por magia a águia transcendendo,
se está a mulher seu corpo concedendo,
transmutação para um destino infindo...
Talvez nem haja aqui qualquer pintura,
somente um vezo de puro encantamento,
um toque de varinha de condão...?
Mas ai de mim, que a imaginação tortura!...
Veloz espanto esse ingênuo pensamento
e aceito o gênio de tal realização...
A ÁGUIA POUSOU III
Não me parece ser computação:
há um excesso de cuidado no detalhe,
tudo se encaixa, sem que nada falhe,
nesse grafismo de pura exaltação.
A águia foi pintada em breve talhe,
as mãos ornadas por ampliação,
que a tornaram maior em proporção,
para que as asas com vigor espalhe.
Mas a modelo deve estar deitada,
com os braços bem erguidos, posição
difícil o bastante, um sacrifício
por essa prece à natureza alada,
com que reparte o próprio coração,
nesse bailado de mútuo benefício...
A ÁGUIA POUSOU IV
A que se presta a humana criatura!
Horas sem conta deve ter sofrido,
enquanto a esse pintor é permitido
executar os detalhes da pintura...
Como evitar a muscular tremura
por essa posição! Quase incontido
o cansaço dos braços, só vencido
por grande esforço de singular ternura.
E nada treme... É perfeita a nitidez
dessa foto da águia, em altivez:
veem-se até as leves dobras de sua mão...
E ao contemplar o surpreendente resultado,
meu coração se abre, de encantado,
ante o vigor que mostra a execução!...
CATIVEIRO I (28 fev 11)
Em branco e negro, enquanto masca a palha
de sua própria cama, ele me olha.
Possivelmente, preferiria folha
e não esse restolho e maravalha...
Porém mastiga o que o momento calha,
na dependência de quem algo lhe colha...
E enquanto com saliva a palha molha,
não vai à academia e nunca malha...
Dizem que os pandas, assim como o koala,
só apreciam um tipo de alimento:
vegetarianos, preferem comer cru...
E assim contempla e seu olhar nos cala,
parecendo transmitir o pensamento
de que prefere folhas de bambu!...
CATIVEIRO II
Ora direis, que infeliz bichinho!
Até seus olhos expressam a tristeza,
assim caídos, mostram, com certeza,
sua solidão e a falta de carinho...
Ele vive enroscado nesse ninho
de palha seca e cheia de aspereza!...
Devolvido devia ser à natureza
e não viver de modo tão mesquinho!
Mas essa gente não tem conhecimento.
Não percebe até que ponto o meio-ambiente
é rigoroso com as pobres criaturas;
e se prende a esse falso sentimento,
sem lembrar da extinção subjacente
à natureza, em todas suas agruras!...
CATIVEIRO III
Se o pobre prisioneiro, como dizem,
fosse em qualquer paisagem libertado,
rapidamente seria capturado
pelos carnívoros que uma presa visem.
Além disso, o próprio solo aonde pisem,
bem depressa, o deixaria contaminado
por uma série de doenças. No passado,
já foi quase à extinção; até de impingem
alguns morreram. Pois mesmo essa doença
que parece tão leve, os seus pulmões
afeta facilmente. E o pelo solto
permite o acesso, tal como se pensa,
às bactérias, que pelo ar revolto,
facilmente reproduzem-se aos milhões.
CATIVEIRO IV
E é por isso que o belo animalzinho
sobrevive bem melhor no cativeiro,
alimentado por atento carcereiro,
trocada sempre a palha de seu ninho.
Pois só na foto é que ele está sozinho:
há muitos outros vivendo no terreiro;
motivo existe, decerto bem certeiro,
para que esteja isolado. É filhotinho,
não consegue proteger-se dos mais fortes,
não tem defesas contra os parasitas:
se sobrevive é porque o cuidam bem.
Outras espécies não tiveram iguais sortes:
só permanecem em pintura ou velhas fitas
e assim os pandas se extinguiriam também.
AMOR DE SORVETE I (01 mar 11)
Seus olhos apertados em sorriso,
os dois se fitam, quais namoradinhos.
Trazem nas mãos rosados sorvetinhos,
que irão pingar em instante ainda indeciso,
se não ganharem antes beijo liso
das línguas rosas de ambos garotinhos...
Mas parecem recordar, em seus risinhos,
de algo importante para o infantil siso.
Talvez sejam irmãos, talvez amigos,
mas certamente têm cumplicidade
e não se importam de sujar os dedos
essas crianças de dias tão antigos,
em que tomar sorvete, na verdade,
era um pretexto para troca de segredos.
AMOR DE SORVETE II
A foto é em branco e preto, mas posada;
sua indumentária foi escolhida a dedo.
Talvez seja esse mesmo o seu segredo:
que finjam ser avós em sua morada...
Pode até ser em uma casa abandonada,
em que brincam de fantasmas, sem ter medo.
À luz do sol há um diferente enredo
do que nas horas antes da alvorada...
Eles se assentam sobre o degrauzinho,
um pouco baixo até para sua altura,
pezinhos tortos e os joelhos levantados.
De calças curtas e branco vestidinho,
eles se olham, com malícia pura,
por leve toque de condão tocados...
AMOR DE SORVETE III
Um vaso de metal fica à direita;
um outro, à esquerda, parece de cimento.
Mas nem reparam em seu duro assento:
são os dois membros de privada seita...
A ambientação em torno é tão bem feita,
captado de antanho e sentimento,
que até os odores se percebem num momento
desse verão que o parzinho ainda aproveita...
É um perfume de crianças bem lavadas,
roupas trocadas depois de tomar banho,
mais o cheiro de morango do sorvete.
São os olores das brisas apressadas,
dos vasos feitos de cimento e estanho,
em que o cheiro dos sapatos se intromete...
AMOR DE SORVETE IV
Mas os sorvetes têm de ser lambidos
bem depressa, ou mais depressa escorrerão...
Quem sabe apostaram lamber mão
um do outro, sobre os pingos escorridos...
Porém o instante em que se acham envolvidos
é tão fugaz quanto as crianças são:
adolescentes viram... E a paixão
de outro tipo logo os têm acometidos.
O tempo passa como pó de giz:
eles brigam e choram de mansinho...
E, no final da infância ameaçada,
esse amor lhes escorre do nariz,
como coriza, um fio de ranhozinho,
nessa primeira lágrima tombada...