POLISPERMIA & MAIS
POLISPERMIA
Ao toque do pistilo, meus estames,
de almíscar na corola protegidos,
deiscentes se abriram, revestidos
da alegre cor dos sonhos que mais ames.
E, nesse gesto de opérculo encantado,
também aberto teu régio meristema,
em pura pétala de sonho sem dilema,
desfez-se a antera em pólen perfumado,
estranho efeito tendo em minha vida:
esperava que de ti brotassem flores,
mas foi meu o canteiro assim semeado.
Tu continuaste meiga e desvalida
e eu... me esqueci do afã de meus amores,
brotando em versos teu pólen fecundado.
FOICE I
Tempos atrás, sonhei sonhos de outono:
inesperados foram, sem sentido;
em cada pobre sonho achei olvido,
nesses sonhos de amor, sonhos sem dono.
Cada um deles vivi em desabono
de outro sonho meu, outrora tido;
igual que o outro, foi sonho vencido,
não mais que fragmento de meu sono.
E até os persegui... Andei na estrada,
gastei meus passos, sem chegar a nada,
mas sem deixar o sonho no abandono...
Chegou o inverno e o sonho dissipou-se...
Com a família de outros sonhos viver foi-se,
que não passaram de ilusões de outono...
FOICE II
Também um dia sonhei sonhos de inverno.
estimulado por toda a frialdade,
arrebatado pela tempestade
de meu sonho secundário e subalterno.
Sempre em tempo de frio mostrei-me terno,
disposto a agasalhar a humanidade,
infenso a toda a animosidade,
projetando ao exterior o mundo interno.
Mas aquelas que, no tempo do infortúnio,
vieram me buscar, no plenilúnio,
apenas demonstraram, por externo,
um amor que, de fato, não sentiam...
Quando se foram, os meus sonhos viram
que não passavam de ilusões de inverno...
HÉGIRA IV
Todas as vezes em que fugi na vida,
mais por temor que por real motivo,
somente redundaram redivivo
pretexto para a mesma dolorida
memória que causara minha fugida
retornar em contorno bem mais vivo
e me fazer passar de novo ao crivo
desses carrascos que não têm contida.
Fugir de nada adianta, tudo volta
e mais que antes serve de tormento
que se tivéssemos parado a enfrentá-los,
pois sempre temos como nossa escolta
esses fantasmas de puro pensamento
que nos ajudam assim a dissipá-los...
HÉGIRA V
Quando se foge assim do amor escasso,
sem grande esforço para conquistá-lo,
sai-se do fosso para o interior do valo,
onde se encontra mais exíguo espaço.
Pois não se quer a negação do abraço
e, contudo, não se faz por alcançá-lo,
ao invés de corda, surge novo abalo
e se acaba por tombar com estardalhaço.
Porque é só de nós mesmos que fugimos,
ou para dentro de maior loucura
ou para fora, a sombra em nosso encalço.
Lá no fundo, a nós mesmos perseguimos:
é o coração desnudo de candura
que lança a nossos pés cada percalço.
MIRAGEM ESPÚRIA I
O que lastimo é que te veja agora,
sem perceber aquela estranha graça
que um dia, pelo olhar, jóia sem jaça,
me penetrou feroz, na esgarça hora
em que te percebi, mulher de outrora,
como premonição futura, ainda baça,
de meu destino mesclado com tua raça,
de forma inextrincável, muito embora
perceba a flor de então qual desatino,
que me venceu somente em cego instante
e emurcheceu, porque não foi regada,
por lágrima sequer, em repentino
palpitar que tal magia delirante
fora somente por mim mesmo imaginada.
MIRAGEM ESPÚRIA II
Quando te vejo agora, de perplexo,
escondo os olhos na máscara cordial
de quem muito te quer; mas não real
amor sinto por ti, tão só reflexo
do que senti um dia, em vão desejo,
quando teu rosto rebrilhou-me assim
qual cimitarra e degolou-me, enfim,
na sombra escura do primeiro beijo.
E como essa ansiedade me feriu!
Dominou-me total, completamente,
mesmo que olhasse e não te achasse bela,
pois foi tua alma que a mente me invadiu,
gerando em mim um dote equivalente
à centelha febril de velha estrela...
HÉGIRA VI
Pois vou fugir de mim e retornar
de novo para ti, sabendo ainda
que a réstia de esperança não é finda,
enquanto houver sendeiro a palmilhar...
Durante a noite, eu venho te buscar:
sombra de vento marcará minha vinda;
o poema se faz jóia, a noite é linda,
quando tua bênção rega meu olhar...
Bem me bastava poder-te ver um pouco,
nua de escrúpulos ou de mesquinharias,
disposta a tudo pelo nosso bem...
Mas a sombra da lua, em riso louco,
te reveste novamente em rebeldias
e tal amor com que sonhei, não vem.
HÉGIRA VII
Forjei para mim próprio minhas cadeias;
cada vez mais as busco reforçar:
são grilhões bem polidos a brilhar,
calabouços por detrás destas ameias...
Na busca desse olhar que me incendeias,
por trás da levadiça é meu estar:
não monto o palafrém a cavalgar
até a roca em que entreteces teias...
Fazendo assim, tornando mais potente
a jaula que me prende, carcereiro
sou de mim mesmo, igual que meu carrasco...
No vago eremitério, meu semblante
só se reflete no canto alvissareiro
de tantos versos que diariamente masco.
HÉGIRA VIII
Fugi de minhas artérias para o fundo
do complexo neural mais delicado;
o meu destino foi incinerado,
na evolução do axônio mais rotundo;
fugi para o dendrito mais profundo,
numa rede neural fui afixado;
quanticamente fui reduplicado
e estou em toda parte, no jocundo
reproduzir fractal desta quimera:
sou fantasma de mim, mesmo que queira
ser fantasma de ti, estranho vício,
que me levou à jaula da ilusão,
vazios de sangue mente e coração,
na saga amarga deste meu suplício...
HÉGIRA IX
Quando fujo de meus sonhos, eu me encontro
envolto em adrenalínico esplendor;
então me ergo, em concreto destemor
e parto bravo para tal recontro:
esqueço as ilusões e me demonstro
capaz de pelejar, amplo valor
a refletir, nas vascas do terror
do dia a dia sólido de monstro...
Depois, escravo do computador,
escrevo os cantos puros dos miasmas
emanados dos pântanos da mente...
Quem saberá, no fundo, qual o autor
de tantas elegias de fantasmas,
rabiscadas sem pensar no que se sente...?
HÉGIRA X
Não fui só eu: do tempo tu fugiste
e te escondeste do delator espelho
que te demonstra, no novo rosto velho,
que intacto esse algoz ainda persiste.
Fugir do tempo é reação bem triste,
coisa inútil até, um escaravelho
rolando permanente, sob o relho
do tempo, essa bolinha, em que consiste
sua vida, no esterco conservada,
na qual seus ovos pôr e a geração
preparar para a nova primavera...
Também rolamos, em direção ao nada,
no círculo dos dias, provação
retransmitida aos seres que se gera...
RULES OF LIFE LIV (54)
Quando se ama, se concede independência
e não controle cego e permanente;
se o ser amado quer o equivalente
à liberdade, em toda a sua potência,
não procures tolher, com insolência,
esse desejo de tal modo assente,
quando tua reação semiconsciente
apenas satisfaz a tua impaciência...
Melhor te fora que ele fosse embora?
Ou ficasse contigo, amargurado,
culpando e remoendo seu rancor?