FLOR DE URTIGA & MAIS

FLOR DE URTIGA

Nada melhor que a família bem normal

para exemplificar as crueldades

que as pessoas, sem razão real

fazem às outras, as naturais maldades

dos egos mais mesquinhos, afinal,

por inveja e malícia, falsidades,

e toda sorte de inversão sexual

que manifestam, envoltas em bondades.

Comigo foi assim: ouvi também,

sem ousar retribuir a grosseria

com que me haviam brindado sem razão.

E, na verdade, por mais que busque o bem,

é a natureza humana, em zombaria,

que mostra o mal residente ao coração.

BOCEJOS

Mais um livro acabei; dei-me uma folga

de algumas horas, enquanto procurava

pôr em dia as mensagens, que levava

às costas amarradas e o peso amolga

as omoplatas, clavículas, cada músculo

dolorido do esforço em carregá-las,

amolgado também. Tantas escalas

solfejo lento neste meu opúsculo!...

São pesadas para mim tantas mensagens,

pois fui criado em protestante ética

e não me consta que respostas deva adiar.

Se me livrar da carga, minhas bagagens

serão mais leves, em mais alegre estética

e em novos versos irei me espreguiçar...

SIMULACROS IX

Mas se mostrarmos simulacros para nós,

sempre há o perigo, que ao retirar do pano,

o que esteja por trás seja um vazio,

por termos esquecido do que somos.

E a máscara se torne, em viva voz,

a gravação perene desse engano:

não sou mais eu, sou apenas o que crio;

quais fantasmas ignotos nos impomos.

Ao sairmos qualquer vez, durante o sono,

quando deitados, nossos rostos nus,

ao retornar, nem nos conheceremos.

E fica o rosto assim, nesse abandono,

cadáver respirando, em pobre luz,

enquanto espectros reais nos tornaremos.

SIMULACROS X

SE SIMULACRO BEM NO FUNDO É AMOR,

OU, PELO MENOS, AMOR MAIS ALTRUISTA,

APENAS O DISFARCE ENTÃO É EGOISTA,

POIS VALORAMOS NA VERDADE O PRÓPRIO-AMOR.

TODOS FAREMOS, PORTANTO, BEM MELHOR

EM ASSUMIR O AMOR DESSA CONQUISTA

E PROJETAR O AMOR, AMOR FASCISTA,

NUMA DOMINAÇÃO DE INTENSO ARDOR...

PORQUE NO FUNDO, QUEM AMAMOS NÓS QUEREMOS

SÓ PARA NÓS E PARA O PRÓPRIO BEM

OU, PELO MENOS, PARA O AUTO-PERDÃO.

E AQUI VAI O SACRIFÍCIO QUE FAZEMOS

AO DAR AOS OUTROS, SEM QUE NOS DEEM TAMBÉM,

NA BUSCA INÚTIL DA PRÓPRIA APROVAÇÃO.

SOMAS VAZIAS

Quantos segundos existem num minuto?

Serão sessenta ou mais? Qualquer momento

me parecia mais. Nunca a contento

me sentirei, quando tua voz não escuto.

Se numa hora três mil e seiscentos há,

quantos num dia? Mais de oitenta mil,

seis mil e quatrocentos, nessa vil

espera interminável que virá.

E o tempo passa e não se passam dias,

mas sim segundos, milhares de milhares,

agônicos, pesados, dolentes de mistério.

E teu rosto não chega. Igual que não me vias,

não vejo eu mesmo a ti. Quantos azares

viram segundos, sem nunca um refrigério!...

SIMULACROS XI

Serei sincero em todas as mentiras

e revelado em minhas falsidades.

Só não confies, se disser verdades,

pois são os simulacros que me tiras.

E quanto à noite, se no leito viras,

lá estou eu, tolhido em liberdades.

Imaculado em mil iniquidades,

fielmente apegado ao que suspiras...

Nesses reflexos que te trouxe o vento,

fantasmas intangíveis e concretos,

tornei-me parte de teu pensamento.

Serei sonho e carícia em dons secretos,

na mais sincera explosão do sentimento

que foi soma integral de teus afetos...

SIMULACROS XII

Deste modo, o simulacro enviarei

pelas ondas do vento, desnudado

de toda a pretensão de meu passado:

com meu fantasma, eu mesmo partirei.

A teus ouvidos, de leve, chegarei,

murmurando mentiras, sem cuidado,

sussurrando verdades, apressado,

e apenas em cochichos te amarei.

Mal saberás que estou ali, minha bela,

irás pensar que livre permaneces,

porém eu estarei dentro de ti:

na verdade e na mentira da procela,

parte integral de maldições e preces,

pois nestes simulacros te envolvi.

MOLDADURAS IV

Não sei se já ouviste alguém falar

em mundos paralelos? Muito antiga

é essa noção de complicada intriga:

foram sumérios primeiro a registrar.

Depois, passou a outros povos: sussurrar,

nas longas noites que sua tenda abriga,

até os babilônios... e que assim prossiga,

pelo Talmude judeu a repassar:

"Tudo que o homem pode imaginar,

Deus já criou, em Sua sabedoria."

Assim, há muitos mundos, fora o nosso.

E chegamos a eles, num cruzar

de portal místico, pleno de energia,

sem perceber geralmente seu esboço.

MOLDADURAS V

Alguns destes mil mundos paralelos

diferem deste nosso por detalhes:

para reconhecê-los, talvez falhes,

por diferentes que sejam seus anelos.

Uns são horrendos; outros, muito belos

e, quando os visitares, não espalhes

que de outro mundo vens; e nem os malhes,

para voltares a anteriores zelos...

Pois te dirão que és louca: te conhecem

desde criança: moraste sempre ali

(ou, pelo menos, seus habitantes pensam).

Se de outros mundos vieram, já se esquecem:

e acreditam existir só este aqui,

em que todas as verdades se condensam.

ESTENOSE

Tenho uma amiga, de grande estimação,

a quem eu nunca vi e nem conheço;

isto não serve de pedra de tropeço,

que igual ao dela me bate o coração.

Mas eu sei que é mulher de grã coragem,

que enfrenta as metástases da vida,

sem nem recuar; e nunca dá guarida

a covardia ou desalento em sua bagagem.

Soube correr grandes riscos e venceu:

mostrou-se firme perante dois miomas,

venceu ataques da estenose renal.

Sua tese redigiu e defendeu

contra a banca medíocre, em suas somas

e em sua amizade deu-me honra bem real.

CIRCADIEM

Algo mudou em mim; agora vejo

que meus ritmos circádicos mudaram:

deito mais cedo; as manhãs se transformaram

em longas horas, desde que eu ensejo

levantar pelas quatro da manhã.

Não sei por quanto tempo a moda dura:

costumava aproveitar a noite escura

e só deitar-me às cinco, em temporã

distribuição das horas e acordava

cerca das oito. Mudei, deito-me às duas

ou mesmo à uma e me acordo cedo assim.

Era outro ser talvez que comandava

meus ciclos interiores de horas nuas,

tal qual se um outro ardor vivesse em mim.

DESTINOS PARALELOS I

Hoje percebo tudo estranho a meu redor,

tal como se a passagem de um portal

tivesse atravessado. O mundo atual

é igual e diferente ao meu pendor...

É o mesmo; e não o é. Sinto-me flor

de outra raiz, no estranho carnaval

que anima o corpo todo. É como se o real

tivesse abandonado por máscara de ator.

Não só me acordo à hora em que dormia:

sinto até que meu andar se transmudou.

Sou eu que habito um corpo parecido

ou outro eu que de meu corpo espia

o novo ambiente que se lhe deparou,

quem sabe sem saber que havia morrido?

William Lagos
Enviado por William Lagos em 20/05/2011
Código do texto: T2981596
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.