GÁSTRULA & MAIS

GÁSTRULA

Mas como é aborrecida esta temática

que vem brotando de mim ultimamente!

Preferia o antigo tema subjacente

em cada ação humana e na gramática

das estações do amor, na matemática

que soma um mais dois e finalmente

produz um três e amplia firmemente

as gradações da raça, nessa enfática

troca de esperma e óvulo, em que as trompas

são assopradas no momento asado

e a marcha triunfal da madrecélula

se inicia ininterrupta em remontas,

banhada pelo sangue imaculado

que reveste em nova vida a madrepérola.

REGRAS DA VIDA LI (51)

Aceite as diferenças e se abrace

naquilo que percebe ser comum

ao coração do outro, em que algum

lampejo de carinho se encontrasse;

porque sempre que a pesquisa nos retrace,

vemos que somos tão somente um

e que todos partilhamos do fartum

da mesma carne que o vento dissipasse

e que um relacionamento é uma equipe,

cujos participantes contribuem,

com diferentes dons e habilidades,

em cujo caule se entrelaça a estipe

e as variedades com que ambos se imbuem

são a força central das sociedades.

REGRAS DA VIDA LII (52)

Dê um espaço livre ao companheiro

ou companheira com quem divide a vida;

é quem liberta que dá maior guarida,

porém quem prende destrói o derradeiro

laço que havia amado no primeiro

momento em que a pessoa mais querida

foi finalmente conquistada e compelida

a subir a nosso lado no poleiro...

Se a relação no começo tal magia

nos despertou, foi pela independência,

pela força e poder, não por controle

que nosso par percebemos exercia

e um novo espaço permite que a potência

mais uma vez entre os dois se desenrole.

CARDUME

Vou adotar a mim mesmo como filho,

para cuidar de mim, já que ninguém

realmente se importa com meu bem,

senão quando precisa de meu brilho

ou de minha substância; tal seu trilho:

só me procuram ao desejar também

algo de mim; e sempre de mim têm

satisfação, pois sabem que me ensilho

de uma forma ou de outra e os socorro,

sempre que me é possível; e nem espero

qualquer retribuição por meu cuidado.

Pois vou cuidar de mim, senão eu morro

e a todos por quem tenho amor sincero

serei forçado assim a pôr de lado...

HÉGIRA (partida, fuga) I

Quero escrever de amor e hoje não posso:

já esgotei as metáforas de prata,

de carne e sangue, os ossos da omoplata

serviram como enxadas nesse esboço

de um castelo de sonhos, nesse fosso

de ilusões em que a alma se desata;

não mais se atreve o amor, numa cantata,

a falar, que o sentimento fez-se insosso,

talvez que os feromônios se afastaram

e nada mais me excite realmente,

quando estou só, senão esta veemente

intenção de descrever dor que deixaram,

funda em meus sentimentos nesta hora,

em que estou só e apenas amo o outrora.

CORTE IMPURA I

Nossa mente é um palácio de memórias,

contrafortes e lustres de cristal,

cada lembrança um galhardo pedestal,

em que se erguem as mais antigas glórias,

ou esconso escaninho em que as histórias

que olvidar gostaríamos, em total

escuridão já encontram um real

esquecimento de suas aleatórias

recordações, quando sobem às ameias

e silvam ululantes nos torreões...

E quando as reconduzo ao calabouço

dardejam-me seus olhos de sereias,

que estas mágoas que invadem meus salões

as mais constantes são que ainda ouço.

CORTE IMPURA II

Contudo, de visita a meu castelo,

prefiro abrir escrínios e epitáfios

de sonhos feitos fósseis, cenotáfios

em que somente habita poeira e gelo,

mas nos quais encerrei teu olhar belo

que agora não me fita e nunca mais

se lançará ao meu para os demais

expulsar para os confins do cerebelo;

lembrança desse tempo em que querias

que minhas vistas somente para ti

inda se abrissem e nada mais entrasse;

porém, depois de ver que me esquecias,

guardei na minha masmorra o que sofri,

sem deixar que outro olhar me conquistasse.

CORTE IMPURA III

São justamente as memórias dolorosas

que vêm à tona com maior frequência;

eu as busco ocultar, em grã veemência,

mas elas são potentes e ardilosas...

E quando espero menos, poderosas,

como mensagens de igual potência,

vão emergindo nos mil tons da ardência

e superam as lembranças mais formosas,

cravando ao coração a dor fininha,

que nos percorre com indiferença,

querendo apenas se estabelecer

e tornar-se do consciente a má rainha,

frutificando em plena malquerença,

suas teias pegajosas a tecer...

CORTE IMPURA IV

Percorro os corredores sem escolta

dos calabouços em que o mal encerro:

todas as dores que pus para o desterro,

todas as giestas amplas de revolta.

Algumas vezes, uma sílfide se solta,

roendo as grades e rompendo o ferro,

uma banshee, com seu agudo berro

ou uma lâmia, em falsidade envolta

e vêm me seduzir, as meretrizes,

ímpios fantasmas de um passado oculto,

que tanta vez magoou meu coração.

Então as beijo, na gosma dos deslizes

e chegam a pensar terem indulto...

Porém as reconduzo à sua prisão!...

Esgares - 6/4/2009

Ateu sorriso é o que mostras agora:

um sorriso de pedra, bem tatuado

no contorno dos lábios perfurado,

um sorriso de agulha nesta hora.

Bem mais queria o sorriso teu de outrora:

parecia bem sincero, em revoada,

não se mostrava, se estavas amuada,

tanto chegava como se ia embora...

Mas que fazer, se até meu sonho cansa:

as ilusões não pesam na balança.

apenas pesa o meu penar concreto...

E fico assim, nos ponteiros do sorriso,

sem saber qual convés em que hoje piso,

no ateu sorriso de sabor secreto...

madrugada

prefiro assim: só deito quando canso

e me levanto à hora que prefira,

sem orbitar consoante o mundo gira,

mas conforme meu próprio tempo manso.

e não me deixo levar pelo remanso

de horários marcados, em que insira

atividades ou quando amor inspira

aos ritmos circádicos descanso.

assim a vida conservo independente:

tenho maior controle de meus dias,

mesmo que outros me sejam contestados.

e gero a solidão em que, contente,

ninguém me fere, nem traz alegrias,

exceto meus deveres agendados.

CORTE IMPURA V

São essas jaulas que passo a consertar:

que mais não saiam os fantasmas tristes

que novamente prendi, lanças em ristes,

acorrentados em seu pobre lar.

Mas eles se projetam ao luar,

lançando filamentos dos enquistes:

não se contentam mais com os alpistes

que lhes jogo a comer no seu jantar.

Pois tais fantasmas têm seus apetites:

eles almejam presidir banquetes

e toda boa lembrança devorar...

Quando os algemo, já ficamos quites,

pois me cravaram tantos alfinetes,

que sem remorso os posso torturar.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 18/05/2011
Código do texto: T2977049
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